Não sou particularmente adepto de maiorias, que sempre são convenientes apenas para quem está no poder. Uma democracia deve pugnar sempre por defender as minorias, daí que uma maioria no poder nunca traz bons resultados, por mais que muitos defendam pretensos benefícios de uma estabilidade. Também nunca apreciei estabilidades, mas isso são contas de outro rosário.
Tivemos três maiorias no Parlamento durante esta nossa democracia, se excluirmos as duas primeiras – por resultarem de uma coligação (as eleições ganhas por Sá Carneiro para a Aliança Democrática, com PSD, CDS e PPM) –, e nenhuma foi particularmente favorável para Portugal. Cavaco Silva, com as maiorias em 1987 e 1991, desbaratou os fundos comunitários – como D. João V esbanjara o ouro e diamantes do Brasil no século XVIII – em obras sem glória, em programas assentes em sinecuras e subsidiodependências e na formação da cultura da negociata. Depois, em 2005, José Sócrates traçou-nos a sorte até à intervenção da troika.
Porém, por paradoxal que pareça, saúdo a maioria parlamentar agora obtida pelo Partido Socialista (PS). Os próximos quatros anos vão fazer muito bem à democracia, apesar da minha falta de confiança em mais um Governo de António Costa. Sobretudo porque, paradoxalmente, os seus últimos seis anos como primeiro-ministro desenrolaram-se em falsa minoria. O PS viveu com a desresponsabilização de compartilhar o poder, legislativo e até executivo, por ser Governo minoritário, mas na prática beneficiou de um poder como se fosse Governo maioritário. Podia assim receber os louros pelas coisas boas; descartar responsabilidades pelas coisas más.
Em 2015, na ânsia de derrotarem Pedro Passos Coelho na “secretaria”, o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP) aceitaram um estranho acordo – que viria a ser baptizado de “geringonça” – para viabilizar um Governo do segundo mais votado partido (PS), mas sem quererem entrar nos corredores ministeriais.
Durante quatro anos, Costa conseguiu assim o melhor dos dois mundos: governar em minoria, gerindo acordos na Assembleia da República, e eliminar à nascença, em reuniões apenas, qualquer contestação social, porque BE e PCP se auto-manietaram.
Com apenas 86 deputados em 2015, na verdade António Costa geriu o país durante quatro anos como se fosse o líder de 122 deputados, tendo apenas que “amestrar” 19 de uma ala bloquista e mais 17 de uma ala comunista.
O desfecho deste casamento de interesse foi glorioso para o PS e trágico para o BE e PCP, lembrando a cópula dos louva-a-deus, em que, no fim, a fêmea deglute literalmente o macho. Com a diferença de o repasto ter sido afinal aos poucos, dentada aqui, dentada ali, até ao golpe final consumado no passado fim-de-semana.
Com efeito, quatro anos depois desse matrimónio, o PS evidenciava já nas eleições de 2019 ter registado melhores benefícios: o reforço nos mandatos eleitorais para 108 – em especial pela atracção do eleitorado do centro-direita e também de uma parte dos comunistas, que perderam então cinco deputados. PC perdeu com o casamento; o BE nada beneficiou. António Costa mostrou então que o seu casamento com a esquerda fora completamente de interesse: a partir de 2019 não quis saber de qualquer “geringonça 2.0”.
Liberto de acordos escritos, sendo-lhe preciso apenas “coligações” pontuais de compromisso, bastando para isso arregimentar um de três partidos (BE, PCP ou PSD), o PS tinha, mesmo assim, a vida mais facilitada.
E depois veio a pandemia. E até aí o PS beneficiou, passando sempre pelos pingos da chuva. Criando-se uma unanimidade nunca vista em outro assunto durante tanto tempo – as leituras dos plenários na Assembleia da República constituem um exercício de pasmo por esse movimento de concordância quase plena –, António Costa não teve qualquer oposição visível nem contestação relevante durante quase dois anos. De mais nada se falava, e se algo mal corria, a culpa era da pandemia. O microscópico vírus teve sempre as costas largas.
Não apenas pelas restrições impostas para conter a pandemia, com o consequente acomodamento da sociedade às limitações de direitos fundamentais – sempre apoiadas por uma diligente imprensa –, como também pelo receio de qualquer partido em simular sequer críticas em matérias sensíveis da pandemia (e dos atropelos às liberdades, direitos e garantias), e que dominaram o país desde Março de 2020.
Portugal esteve anestesiado durante dois anos. E o PS sempre a ganhar em minoria. Mas não era o suficiente no Largo do Rato.
Bastou, por fim, um incidente forçado para, em fim de festa pandémica – com a generalidade da população e da imprensa em loas ao Governo socialista, esquecendo-se o caos no SNS, o despesismo incontrolado e a crise económica e social –, para António Costa comer, finalmente, toda a oposição de cebolada.
O Orçamento de Estado (OE) para 2022 foi o álibi perfeito. Foi chumbado porque o PS quis, e queria mesmo eleições; era o momento ideal para aquilo que está na massa do sangue de muitos políticos: vencer com maioria absoluta, porque negociar custa sempre.
No diferendo da OE, a oposição, e particularmente o BE e o PCP, estaria sempre na célebre condição de ser presa por ter e não ter cão. Chumbando-o, como fizeram, levariam a uma vitimização do PS, como benefícios para este partido, como se viu. Não o chumbando, os partidos da oposição, sobretudo da esquerda, tinham tudo também a perder: confessariam que Costa governava em maioria de facto, embora não in jure. E assim seria até que outra qualquer coisa fizesse cair o Governo, e o PS se fizesse de vítima, para em novas eleições almejar a maioria absoluta.
Como alcançou.
Os partidos à esquerda do PS nunca quiseram perceber que jamais sairiam a ganhar do amplexo da “geringonça”, nem no cenário político após as eleições de 2019, nem na forma como intervieram durante a pandemia.
Nos últimos dois anos, PCP e BE mostraram-se inexistentes, e gastaram mais tempo a perseguir a extrema-direita do que a lutar contra as carências e injustiças que engrossaram, por exemplo, os votos do Chega.
Esqueceram que o partido de André Ventura não tem eleitores saudosistas de Salazar, mas sim eleitores que, pouco se importando com a amálgama ideológica (se é que existe no Chega), se sentem filhos de um deus (democracia) menor. Enquanto a esquerda não perceber que o Chega é um barómetro da democracia – quanto mais justa e equitativa ela for, menor será o peso eleitoral de André Ventura –, as coisas só podem correr mal para ela. Para ela, esquerda; para ela, democracia.
Mas, enfim, temos, portanto, uma maioria absoluta. E ainda bem.
Porque, agora, finalmente, mesmo se aparentemente com mais de metade do hemiciclo, António Costa ouvirá mais críticas no Parlamento, de mais partidos. Terá capacidade plena de tudo aprovar na Assembleia da República e de execução de quaisquer medidas em Conselho de Ministros e nos Ministérios, mas, independentemente da bondade da sua governação (hipótese académica), arcará certamente com mais críticas num mês de maioria absoluta do que num ano de minoria apoiada.
O BE e o PCP lutarão nos próximos anos por mais do que pelas suas causas; lutarão pela sua sobrevivência, porque se o PS for bem-sucedido nestes quatro anos será os seus enterros. IL e Chega não perderão também oportunidade de se ouvirem mais do que antes, pelo peso dos respectivos grupos parlamentares, e o PSD também não poderá ficar atrás.
Nas ruas ouvir-se-ão mais vozes, até porque uma larga franja dos sindicatos não é “afiliada” aos socialistas. Haverá mais pressão. Nas ruas. Mais greves. Haverá maior mobilização social, assim se espera, até porque a saúde económica do país, além da saúde pública, não se compadecerá apenas com bazucas – que aliás serão mais escrutinadas do que todas as negociatas de ajustes directos nestes anos da pandemia.
Enfim, haverá mais democracia. Ou, pelo menos, maior participação democrática.
Exactamente porque sempre acreditei que a democracia se exerce melhor, e de forma mais justa e equitativa, após as eleições – que são um mero, embora importante, acto de eleitores elegerem eleitos, mas não uma “carta branca” para governar. E por isso julgo ser bem-vinda esta maioria.
Será uma maioria absoluta de jure, mas não tão forte de facto, como foram os Governos minoritários de António Costa nos últimos seis anos.
Isto vai fazer bem à esquerda; vai fazer bem à direita. Vai fazer bem à democracia.
Por isso mesmo, saúdo esta maioria do PS, exactamente porque, na verdade, lhe concedeu menor poder do que aquele que teve desde 2015.