O sinistro senhor Tedros, presidente da Organização Mundial de Saúde (OMS), secundado pelo depressivo senhor Guterres, secretário-geral das Nações Unidas (ONU), têm condenado pública e repetidamente a assimetria do fornecimento das vacinas contra a covid-19 pelo Mundo, preconizando mesmo que a dose de reforço atualmente em curso na Europa e América do Norte deveria ser preterida em favor da sua distribuição por África, onde no geral a vacinação não atingiu ainda nem 10% da população.
Trata-se de uma argumentação aparentemente lógica e correta – aliás, apoiada e aplaudida pela generalidade dos especialistas instantâneos que a covid gerou como subproduto, e pelo público em geral para quem a informação que obtém é normalmente veiculada pelo jornalismo mainstream.
Só que, em gestão de saúde – sobretudo se os recursos não são ilimitados e não sendo lineares os efeitos e mecanismos das doenças –, as prioridades não podem nem devem ser vistas de forma meramente emocional, guiada por um compreensível impulso afetivo, mas sim em função dos dados, da Epidemiologia, dos grupos e populações de risco, enfim, da Ciência.
Concretamente, em saúde, os objetivos são o salvar e preservar, com qualidade, o maior número de vidas, e não, como é usual na política, ganhar o maior número de votos e likes.
Ora, até 22 de Janeiro de 2022, altura da minha recolha de dados, qual é o ponto da situação oficial em termos de pandemia em África?
África tem uma população de cerca de 1,4 mil milhões de pessoas (18% da população mundial).
Actualmente, número de mortes por covid-19 neste continente é de 235.000 (4% das mortes mundiais). Por outro lado, na privilegiada Europa contabilizam-se 750 milhões de habitantes (9,6% da população mundial, praticamente metade da de África) e 1,93 milhões de mortes (34% das mortes mundiais por covid-19, mais de sete vezes e meia face aos valores de África). Ou seja, na vacinada, confinada, testada, higienizada, controlada e rica Europa afinal morre-se, proporcionalmente, 15 vezes mais por covid-19 do que em África.
Colocam-se assim, sucintamente, duas questões:
1- Perante estes dados, seria correta a suspensão da 3ª dose na Europa para que essas vacinas fossem redirecionadas para África, como reiteram, entre outros, a OMS e ONU? Ainda para mais tendo em conta que a nova variante Ómicron se expande de forma muito mais rápida na zona europeia devido à incomparavelmente mais intensa circulação de pessoas?
2- Como se explica que a África, com muitíssimo menos vacinados e quase inexistência de medidas anti-pandemia devidamente controladas (máscaras, distanciamento social, evitamento de aglomerações, desinfeção de mãos e das instalações, testes, rastreio de contactos, etc., etc..), tenha uma tão baixa taxa de mortalidade quando comparada com a Europa, América e Ásia?
Não vou responder à primeira, porque não considero necessário, mas obviamente que defendo veementemente que o apoio sanitário a África seja encarado, e sobretudo praticado, de modo muito mais sério, eficaz e honesto.
E não me refiro apenas ao mediático covid-19, mas sim, e principalmente, a permanentemente ignorados flagelos como a malária, sida, avitaminose A, entre outras, que matam muito mais, e nas quais as medidas para as combater – como, por exemplo, o golden rice para o défice de vitamina A – são até muitas vezes bloqueadas por governos e organizações ditas “humanitárias”, como a própria OMS, a Greenpeace e a WWF, entre outros.
No que se refere à segunda questão, existem vários aspetos importantes a equacionar.
Em primeiro lugar, embora em termos políticos a referência a África no âmbito da covid-19 seja frequente, é notório que quase nunca os media, instituições e demais agentes, normalmente bastante alarmistas, citam em concreto os números da pandemia naquele continente. E a começar pelas baixas taxas de mortalidade quando comparadas com o resto do mundo, em especial o socialmente mais privilegiado.
Para quem tem acompanhado todo este processo pandémico, e conhece razoavelmente os meandros, interesses e filtros abafadores ou amplificadores que dominam as nossas sociedades, a explicação é evidente e a habitual: controlo da informação, evitando que o público, em geral, tenha acesso a verdades inconvenientes e/ou lhe sejam incutidos medos e conceitos convenientes.
Nesta linha, refiro também um dos mais perversos efeitos da pandemia: todo e qualquer cidadão, mesmo que especialista em saúde, mesmo que não contestando a gravidade (mas apenas o impacto) da doença, e mesmo que defendendo a vacinação como proteção importante sobretudo para os mais vulneráveis (agora já é permitido dizer que não impede o contágio), corre hoje em dia o sério risco de ser classificado como “negacionista”, o novo epiteto para os infiéis dos tempos modernos.
Para isso, basta ousar criticar, propor alternativas, sugerir soluções, denunciar falsidades estatísticas ou avançar com dados que fujam às diretivas oficiais e dogmas vigentes: é imediatamente incluído no mesmo rol dos terraplanistas, extremistas nazis e demais proscritos da sociedade.
A segunda reflexão tem a ver com as explicações para esta situação aparentemente anacrónica do continente mais desprotegido e castigado em termos de acesso a cuidados de saúde. Não só no que se refere às vacinas, mas a tudo o resto, ser a África comparativamente menos fustigado pelos efeitos da covid-19, ao contrário, por exemplo, do que aí aconteceu e continua a acontecer com a SIDA.
As principais razões avançadas têm a ver, em primeiro lugar, com a idade média das populações africanas, muito mais jovens do que as populações europeias, americanas e asiáticas. Na verdade, enquanto em África a idade média da população é de 18 anos, na Europa é de 42, na América do Norte 35, América do Sul 31, Ásia 31 e Oceânia 33. Como se sabe, é nas faixas etárias mais elevadas (depois dos 70 e, principalmente, 80 anos) que a doença grave e as mortes incidem na esmagadora maioria. E também é nessas idades que mais aparecem as comorbilidades que agravam a covid-19.
Outro fator a ter em conta, embora algo mais teórico, mas lógico, prende-se com a situação comum em África de grande parte da população ter, entre outras, deficientes condições em termos sanitários. Isto, no entanto, propícia um constante estimular do seu sistema imunitário, que estará mais preparado para responder a contactos com diferentes agentes patogénicos.
Finalmente, há que reconhecer que, como aliás já mencionei, a circulação de pessoas entre grandes distâncias no continente africano é muito menos intensa do que nas outras zonas do Mundo, embora, por outro lado, a aglomeração de multidões locais, sobretudo nas megalópoles em constante crescimento, seja assustadoramente elevada e promíscua.
De notar que, como é de esperar, mostra-se natural que exista uma subnotificação dos casos de infeção, dada a baixa testagem, mas já no que se refere a mortes, que é o que está aqui em causa, os números espelham com muito mais fidelidade a realidade uma vez que as causas de morte são oficialmente notificadas.
Um processo de avaliar o impacto das mortes por covid-19 será contabilizar o número de mortes totais acima da média dos outros anos sem pandemia. Nos países onde esses estudos foram efetuados com alguma segurança (África do Sul, Egito e Tunísia) verificou-se um excesso de mortalidade de duas vezes o número referido para mortes por covid-19.
Mesmo que esses dados estejam certos – em Portugal, por exemplo, verificou-se que o excesso de mortalidade foi, na sua maioria, por doenças não-covid –, a taxa de mortalidade em África continuaria a ser muito inferior à europeia (7 a 8 vezes).
Estes factos evidenciam, mais uma vez, e talvez de forma algo inusitada, que as medidas de gestão da pandemia prevalecente no chamado “mundo ocidental” – com todos os confinamentos radicais e rígidos, e todas as limitações à circulação e a contactos que nos foram impostas, e ainda continuam a ser, muitas sem qualquer fundamento lógico ou racional – foram sanitariamente incorretas e desadaptadas, e causaram enormes e trágicos prejuízos, a maioria ainda por avaliar. Tanto no que se refere a mortes por outras doenças e pela própria covid-19 como pelo agravamento da saúde mental e da violência (por vezes mesmo estatal), e pelo desastre para a economia dos Estados e, sobretudo, dos cidadãos.
Na verdade, teria sido muito mais adequado – como a Suécia voluntariamente fez e a África involuntariamente demonstra – incidir e privilegiar os cuidados e eventuais restrições dirigidos e adequados prioritariamente nas populações de risco (em termos de idade e patologias agravantes), libertando da maior parte dos constrangimentos sociais a grande maioria da população, não-idosa e saudável.
E instruindo sem histerias, aconselhando sem prepotências e, coisa que falhou rotundamente em quase todos os países, facilitando o acesso aos cuidados de saúde em tempo útil, tendo em conta que há mais doenças para além da covid-19.
Como hoje começa final e tragicamente a ser claro – sendo o exemplo africano apenas mais uma demonstração –, muitos e graves erros foram cometidos. Por desconhecimento compreensível ao início, mas depois, demasiadas vezes, por conveniências, teimosia, subserviência, irresponsabilidade, e até vedetismo.
Espero, sinceramente, que sobretudo aprendamos com isto. Para já, aqui fica um desejo simples: a partir de agora, os políticos, jornalistas não-especializados e justiceiros das redes sociais deixem de exercer Medicina.
Médico (cédula profissional 22027)
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