EDITORIAL

Como os jornalistas podem acabar com manifestações e com a democracia, e eu não quero

Editorial

por Pedro Almeida Vieira // Fevereiro 19, 2022


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


Durante mais de duas semanas, acompanhei com detalhe, mesmo se à distância, através de vídeos, da análise das redes sociais, das notícias de todo o tipo de imprensa, as manifestações do Freedom Convoy.

Acompanhei-as com a visão de jornalista, mas também analisando o próprio trabalho dos jornalistas, na forma como tratavam ambas as partes em confronto: os protestantes e as autoridades.

Nem sequer vou falar muito da cobertura da imprensa mainstream portuguesa, porque dela não rezará a História – e se rezar, não será por boas razões -, mas da cobertura internacional, incluindo a canadiana.

Os protestos, como se sabe, decorreram durante quase 20 dias num confronto sobretudo de palavras. Perante a invasão dos camionistas das ruas de Ottawa, e de outras partes do Canadá, o Governo de Justin Trudeau respondeu sempre com acusações de se estar perante uma minoria extremista e violenta.

E a imprensa relatava, e até aqui, tudo bem. A posição de uma autoridade é, em si mesma, uma notícia.

Porém, com honrosas excepções, jamais observei os media tentarem confrontar a validade de muitas das acusações governamentais contra os manifestantes, desde a alegada violência até à presença massiva de extremistas, passando pelas ligações a Trump ou ao QAnon, e a interesses nunca bem explicados ao estrangeiro.

Acolhendo como completamente verídicas as acusações do Governo, que sempre recusou dialogar com os porta-vozes dos manifestantes – o que não me parece algo muito democrático num país com os pergaminhos do Canadá -, os jornalistas permitiriam sim a radicalização da postura de Justin Trudeau.

Primeiro, pressionando a plataforma GoFundMe para suspender a angariação de fundos (mais de 1o milhões de dólares canadianos), e depois dando ideia de todos os doadores (mais de 120 mil) estivessem a proceder à lavagem de dinheiro ou a financiar actos terroristas. E, por fim, criando o cenário político e social para a implementação de uma lei de emergência, que basicamente passa por dar direitos especiais aos governantes, retirando direitos aos governados. Basicamente, suspende-se a democracia, que é o que tem estado a suceder desde Março de 2020.

Não tenho dúvidas algumas da elevada probabilidade de existirem, no meio dos protestantes, e até de algumas das suas figuras proeminentes, algumas pessoas com ideologia pouco recomendável. Porém, vai uma grande distância entre identificar, num movimento de cidadãos pacíficos, umas quantas pessoas dessa índole – mas não as vi em actos desordeiros, nem vislumbrei imagens de violência dos manifestantes, gravadas pelas autoridades, que seriam as mais interessadas em apresentar provas desses actos – e considerar, desde logo, que estamos perante manifestantes que devem ser difamados, vilipendiados e escorraçados.

Comecei sim, a ver, mais de duas semanas após o início dos protestos, uma violência de Estado – sim, bem sei que a pandemia alimentou os “instintos” de muitos em se castigar fisicamente quem de si discorda -, com operações policiais musculadas e com detenções apenas porque as pessoas, ali estão, a manifestar-se. E a incomodar.

Ver-se-á, nos próximos dias, nova descarada tentativa de “criminalizar” junto da opinião pública as pessoas que vão sendo detidas, colando-as a determinadas “linhas ideológicas”, para, assim, desmobilizar os milhares e milhares de protestantes que ali estão, apenas (e já é muito) a lutarem pela sua liberdade, pela racionalidade, pela justiça, pelos seus direitos.

Essa desmobilização será um terrível perigo, porque, a ocorrer, será um ensinamento para “governos democráticos” sobre um método eficaz de calarem manifestações futuras, quaisquer que sejam a causa e a razão. Basta que digam, e que seja essa mensagem propalada pela imprensa “amiga”, que os manifestantes são isto, e aquilo, e mais aqueloutro.

Não quero, pessoalmente, como democrata, ver o meu direito de manifestação ou de opinião coarctado apenas porque, num determinado assunto ou movimento, está alguém que ideológica e/ou pessoalmente não merece a minha simpatia, e que em tudo resto, e em questões essenciais, se encontra nos antípodas das minhas posições.

Por exemplo, para concretizar: durante a pandemia, não comunguei muitas opiniões, que considero infantis ou desprovidas de compostura e de Ciência, como aquelas que negavam até a existência do vírus e da doença, e o grau de gravidade em determinados grupos mais vulneráveis, mas isso jamais me impediu de contra-atacar a Narrativa Oficial baseada em manipulação de dados, na subversão dos princípios da Ciência, em alimentação de pânico e na promoção da discriminação.

Sofri, e ainda sofro, dessa “ousadia”, e o próprio PÁGINA UM sofre e sofrerá desse lamentável estigma, que mostra mais a natureza de quem acusa do que a minha. Bem, na verdade, também mostra a minha…

Outro exemplo: eu não quero ter de limitar a minha participação democrática se, em certo dia, num movimento contra a corrupção em que participe, estiverem presentes certos cidadãos, dos quais ideologicamente quero distância, e pessoalmente afastamento.

Não estarei fisicamente a seu lado, mas não quero deixar de estar presente. E não quero, nem mereço, como até agora sucede, ser acusado de seguir uma certa ideologia apenas porque não concordo com certa tese oficial.

Não devo fazer isso como cidadão, e muito menos como jornalista.

Ainda menos como jornalista, repito.

Não aceito, como cidadão e jornalista, e nunca aceitarei, que um Governo, seja o canadiano, seja o português, seja de outro qualquer país, me utilize, utilize jornalistas, para colar ferretes em manifestantes. Não embarco neste tipo de embarcações, ainda mais tendo a oportunidade de viver numa democracia e desejando continuar a viver numa democracia.

A manipulação dos jornalistas, muitos deles por opção ideológica ou por ignorância ou por comodismo, é a mais grave ameaça à democracia nos países ocidentais.

Quando um Governo acusa manifestantes de actos de extremismo e de vandalismo, tem necessariamente de apresentar provas imediatas. As palavras não bastam, até porque têm, devem ter, meios para mostrar essas provas.

Se os jornalistas desistirem de ser os fiscalizadores da acção governativa, de fiscalização dos cidadãos que, circunstancialmente, estiverem com cargos políticos, acordarão, certo dia, numa ditadura. Numa ditadura que eles ajudaram a criar. Mostrarão então que foram sempre pequenos tiranetes. Não deixemos, por isso, que muitos deles, agora já tiranetes, andem vestidos com pelo de cordeiro, sendo lobos.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.

Alterações Mediáticas, o podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como ...