Vértebras

Nada há de mais humano do que a desumanidade

Vértebras

por Pedro Almeida Vieira // Abril 4, 2022


Categoria: Opinião

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Não quero saber, por agora, se é ou não encenado. Se quem fez aquilo foram os russos ou os ucranianos para acicatar o Ocidente a diabolizar ainda mais alguém que é, era e será um diabo enquanto estiver no poder. Há fortes indícios de massacre. Deve ser investigado, de forma independente; não sei se para já. Não sei se se chegará alguma vez à verdade.

A verdade é maleável, depende do poder, depende de quem sai vitorioso de uma contenda. Nem sempre coincide com a realidade. A verdade pode ser imposta. A mentira pode ser tornada verdade, por mais evidências que possam aparentemente existir. A História farta-se de nos dar desses ensinamentos.

Mas importante, talvez sim, seja reflectirmos, desde já, noutro aspecto essencial: aquilo poderá ser real porque é possível? SIM.

Sim, infelizmente é muito, muito possível que aquela situação em Bucha seja real, e que tenha sido causada pelos russos.

brown wooden bench on brown sand during daytime

E mesmo que não seja, nada nega uma invasão, que tantas mortes já causou. E mesmo que sejam militares, essas vidas perdidas não são justificadas nem legitimadas por os corpos estarem vestidos com uma farda. Eram vidas.

E ter acontecido mesmo um massacre de civis, será Bucha inédito, merece uma consternação em êxtase, o nosso estupor perante um horror inaudito, uma inqualificável desumanidade? NÃO.

Lembro-me sempre, desde que escrevi essa frase, da passagem de um dos meus romances em que o narrador, por sinal o diabo, argumenta (cito de cor) que “nada há mais humano do que a desumanidade”.

Bucha deveria chocar-nos não por ser inédito, não por ser uma surpresa, mas exactamente por ser expectável.

Lembremo-nos, apenas para nos mantermos num cenário similar, de Grozny. Não foi assim há tanto tempo. Putin “esteve” lá.

Mas lembremo-nos também que nenhuma guerra, nenhuma outra guerra mata ou matou com contos de fada.

man in black and green camouflage suit holding rifle

Nenhuma das mais de 10 milhões de vidas perdidas em conflitos armados desde a barbárie da chamada II Guerra Mundial, muitos sem ser televisionados, foi através de doces canções de embalar.

Nos últimos dois anos, antes da invasão da Ucrânia, a base de dados do Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED) contabilizou 73.199 mortes no Afeganistão em conflitos bélicos, 38.146 mortes no Iémen, 17.671 mortes Nigéria, 16.704 mortes no México, 14.083 mortes na Síria, 11.723 mortes no República Democrática do Congo, 11.365 mortes no Myanmar e 10.528 mortes no Brasil, que nem sequer está formalmente em guerra, mas onde a violência armada é endémica. Dois anos apenas, e mais conflitos se registaram.

Os mesmo dirigentes políticos da Europa que agora correm a chamar nomes a Putin e a ameaçá-lo com o Tribunal Penal Internacional (TPI) andaram a banquetear-se à sua mesa e à dos seus oligarcas durante, pelo menos, duas dezenas de anos. E andaram a alimentar guerras e conflitos, nem que fosse através da indústria do armamento.

Andaram em jogos perigosos com quem nunca foi de confiança.

Por isso, não se surpreendam, pelo menos se honram a vossa inteligência, com as atrocidades na Ucrânia. Não são de agora nem são só de lá.

Não esqueçam Bucha, não esqueçam Grozny, não esqueçam sobretudo como chegámos aqui.

Porque se esquecerem, haverá sempre mais Buchas, com Putin e sem Putin. Com Zelenski e sem Zelenski.

Haverá sim estas contínuas atrocidades, estas humanas desumanidades, se as democracias ocidentais mantiverem este estilo de virgens surpresas.

E haverá os vossos horrores para amenizarem as vossas consciências. As nossas consciências. Pesadas. Sempre. Como se fôssemos todos culpados. E talvez sejamos, mas por inacção, antes dos conflitos. Por pouco pressionarmos os nossos dirigentes políticos. Preocupamo-nos só perante as monstruosidades, e pouco com aquilo que vai alimentando os monstros. E esses monstros são alimentados pela realpolitik.

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