O silêncio como resposta. Uma semana após o PÁGINA UM revelar que Licínia Girão, actual advogada-estagiária de 57 anos, foi eleita para liderar o órgão regulador e de disciplina dos jornalistas – onde sempre se exigiu “jurista de mérito” –, não há nenhum dos outros oito membros da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista que queira revelar como foi feita a sua cooptação. O currículo desta jornalista freelancer, sobretudo associada à imprensa regional, mostra-se paupérrimo para a exigência da lei: tem dois mestrados, mas o de Ciências Jurídicas terá demorado pelo menos 11 anos a concluir. E nas provas do concurso para a magistratura foi excluída logo na primeira fase com um comprometedor “chumbo”, tendo ficado quase na cauda da tabela.
Oito mensagens electrónicas, cada uma com quatro perguntas, e nem uma resposta. Nenhum dos oito jornalistas eleitos para a Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas (CCPJ) – quatro por sufrágio da classe e os restantes indicados pelos operadores do sector – se disponibilizou durante uma semana inteira para dizer ao PÁGINA UM quem indicou a advogada-estagiária Licínia Girão para presidir àquela entidade.
Também nenhum destes oito jornalistas quis dizer se previamente houve análise curricular desta jornalista freelancer que, como jurista, está longe de ter pergaminhos relevantes, além de ter desenvolvido a sua actividade profissional quase em exclusivo na imprensa regional, mas sem grande regularidade nos últimos anos. Neste momento, o seu nome apenas se encontra na ficha técnica do Sinal Aberto, um projecto editorial que se apresenta como “um coletivo de Jornalismo de interesse público que recusa a informação apressada e procura a verdade, sabendo que nunca será neutro.”
De acordo com a lei que regula o funcionamento da CCPJ, a sua presidência somente pode ser ocupada por “um jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social”, cooptado pelos outros oito membros. E é aqui que se colocam os aspectos centrais: quem, de entre os oito jornalistas (eleitos para a CCPJ), sugeriu para cooptação o nome de Licínia Girão, e como foi esta apresentada para ser reconhecida como “jurista de mérito”? E uma outra, também fulcral: podem os jornalistas, como profissionais que por inerência estão incumbidos de “fiscalizar” a sociedade ao serviço dois leitores, aceitar que se mantenham situações dúbias no seu próprio seio?
Estes aspectos são ainda mais pertinentes porque, ao contrário dos outros oito elementos da CCPJ, Licínia Girão não chegou ao cargo por qualquer eleição ou sufrágio, foi por cooptação, e por supostas razões de mérito.
Ora, a cooptação é um regime de escolha colegial – seguida em muitos casos, como sucede com alguns juízes do Tribunal Constitucional – em que são os membros já eleitos que seleccionam uma pessoa externa. Recentemente, a cooptação do juiz Almeida Costa esteve envolta em polémica, e ele acabou mesmo por não ser escolhido. Também em muitas universidades, a escolha de membros para o Conselho de Escola é realizada por esta via, existindo em todos os casos regras específicas que obrigam a uma análise prévia dos atributos dos candidatos.
No caso da indicação de Licínia Girão para ser cooptada para a presidência da CCPJ, nenhum dos oito jornalistas da CCPJ quer agora assumir a “paternidade” pela colocação do seu nome para votação (e subsequente comprometedora eleição) como presidente.
No fim-de-semana passada, o PÁGINA UM endereçou a cada um dos oito jornalistas eleitos pelos pares e operadores do sector um conjunto de quatro perguntas.
Na primeira questionava-se se tinham “conhecimento de quem propôs /indicou o nome da Dra. Licínia Girão para a presidência da CCPJ”. Na segunda se tinham existido “outros nomes em análise (e votação) aquando da escolha”; e se sim, “qual ou quais os candidatos propostos”. Na terceira questão pretendia-se saber se antes da eleição, tiveram todos acesso ao currículo e actividades profissionais de Licínia Girão. E na última se consideravam que o currículo e actividades da actual presidente da CCPJ se enquadravam no perfil exigido por lei: “jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social”.
Apesar de ter sido confirmada a recepção dos oito e-mails na segunda-feira passada, nem Jacinto Godinho (CP 772), nem Anabela Natário (CP 326) nem Miguel Alexandre Ganhão (CP 1552) nem Isabel Magalhães (CP 1024) nem Cláudia Maia (CP 2578) nem Paulo Ribeiro (CP 1027) nem Luís Mendonça (CP 1407) nem Pedro Pinheiro (CP1440) responderam a qualquer daquelas questões. Saliente-se que, apesar das insistências, o PÁGINA UM não conseguiu que Licínia Girão esclarecesse aspectos fundamentais da sua vida profissional e da sua cooptação para a presidência da CCPJ.
Adensa-se assim um inexplicável mistério entre a classe jornalística, apesar de estarmos perante um organismo formado por jornalistas que supostamente lutam pelo acesso à informação e à transparência.
Recorde-se que, como divulgou o PÁGINA UM com provas documentais, Licínia Girão encontra-se a realizar, aos 57 anos, um estágio de advocacia não-presencial num escritório de Santo Tirso (vivendo em Coimbra).
O seu nome continua sem constar no site da Rodrigues Braga & Associdos, e um contacto prévio do PÁGINA UM revelou que será uma estagiária-fantasma.
Além disso, o seu percurso académico tem pouco de distinto, mesmo se esforçado: terá demorado pelo menos 11 anos a concluir um mestrado em Ciências Jurídicas pela Universidade de Coimbra, uma vez que já aí era aluna em 2011 e apresentou a tese no ano passado. Possui também, desde 2019, um mestrado em Comunicação e Jornalismo com 16 valores.
No entanto, não detém qualquer currículo relevante do ponto de vista académico ou na escrita, se se exceptuar o 2º Prémio Prosa na 1ª Edição do Concurso Literário de Prosa e Poesia 2021 do Centro Comunitário de Inserção da Cáritas Diocesana de Coimbra, ou ainda a Menção Honrosa na categoria Ensaio/Prosa no âmbito dos 13º Jogos Florais da Junta de Freguesia de São Domingos de Rana.
De acordo com a investigação do PÁGINA UM, Licínia Girão candidatou-se este ano ao 39º curso de ingresso de formação de magistrados no Centro de Estudos Judiciários, mas os resultados foram desastrosos, chumbando na primeira fase a duas das três provas, tendo sido logo assim excluída. Num total de 269 candidatos, ficou apenas na posição 230, destacando-se os 5,05 valores (em 20) em Direito Penal e mesmo os 8,50 valores (em 20) numa prova de cultura geral em que se solicitava uma breve dissertação em redor de notícias do jornal Público e da revista Gerador.
Licínia Girão também se candidatou a mediadora de conflitos dos julgados da paz do agrupamento de concelhos da Batalha, Leiria, Marinha Grande, Pombal e Porto de Mós, e do agrupamento de concelhos de Alvaiázere, Ansião, Figueiró dos Vinhos, Pedrógão Grande e Porto de Mós, não se conhecem os resultados.
Além disso, a actual presidente da CCPJ assume-se ainda como “coordenadora da comunicação interna do Instituto de Certificação e Formação de Mediadores Lusófonos (ICFML)”, uma tarefa que poderá ser considerada incompatível face ao estabelecido no Estatuto do Jornalista. De acordo com a alínea b) do nº 1 deste diploma legal são incompatíveis com a actividade jornalística as “funções de marketing, relações públicas, assessoria de imprensa e consultoria em comunicação ou imagem, bem como de planificação, orientação e execução de estratégias comerciais”.
No entanto, apesar do PÁGINA UM ter conhecimento que a CCPJ se tem mostrado particularmente activa na análise do cumprimento de requisitos profissionais, esta questão sensível não deverá ser, certamente, alvo de análise por aquela entidade reguladora e de desciplina. Até porque Licínia Girão acumula, com Jacinto Godinho, o Secretariado da CCPJ, que constitui o primeiro “crivo” para a instauração de processos disciplinares ou contra-ordenacionais, que depois são decididos em Plenário.
N.D. O PÁGINA UM criticou recentemente, com veemência, uma inaudita recomendação da CCPJ, sem enquadramento legal, que visou “censurar” um trabalho de investigação sobre a Sociedade Portuguesa de Pneumologia. Tem também o PÁGINA UM colocado diversas questões à CCPJ, algumas ainda no tempo de Leonete Botelho como presidente. E vai colocar mais, até porque se justificam. Os artigos do PÁGINA UM sobre Licínia Girão, a actual presidente da CCPJ, são de indiscutível relevância e interesse público, e sustentam-se exclusivamente em factos, tendo-se sempre dado primazia ao contraditório. Na nossa opinião, a existência de discórdias, e mesmo de processos que a CCPJ ou outras entidades venham a colocar ao director ou a jornalistas e colaboradores do PÁGINA UM, jamais serão redutoras da nossa liberdade editorial. Será assim absurdo considerar-se que existem motivações extra-editoriais na base destes artigos. Aliás, mal seria se se usasse a regra de “não noticiar” sobre entidades com quem existam conflitos, porquanto abriria porta para uma solução simples: qualquer entidade incomodada por um jornal independente apresentaria uma queixa-crime e, desse modo, accionaria uma espécie de “protecção”. Ora, o PÁGINA UM não acolhe essa lógica. Pelo contrário: quem ataca a imprensa livre merece ser ainda mais escrutinado.