Um erro do Banco Central Europeu, no desenho de uma operação de financiamento aos bancos, resultará numa “prenda” estimada de até 250 milhões de euros de lucro extra para a banca em Portugal. O valor deste lucro que vai cair no colo dos bancos dependerá da evolução das taxas de juro e das condições de financiamento aos bancos. Estima-se que só os cinco maiores bancos em Portugal encaixem até 206 milhões de euros de lucro fácil obtido com o depósito de dinheiro dos contribuintes junto do banco central.
O objetivo era, em plena epidemia, convencer os bancos a emprestar dinheiro às empresas e injetar dinheiro na economia. O Banco Central Europeu (BCE) decidiu passar a pagar aos bancos para se financiarem junto da instituição liderada por Christine Lagarde, com a condição de continuarem a emprestar dinheiro durante a crise.
A taxa de 1% negativa garantia, na visão do BCE, que os bancos teriam um incentivo para aceitarem financiar-se na denominada terceira série de operações de refinanciamento de prazo alargado direccionadas – ou TLTRO III (Targeted Longer-Term Refinancing Operations). O BCE lançou a operação de TLTRO em setembro de 2019 e, inicialmente, a taxa da operação era igual à de depósito, de -0,5%.
Em junho passado, o BCE retirou o incentivo e repôs a taxa de financiamento igual à da taxa de depósito. Em junho, os bancos poderiam iniciar o reembolso do financiamento, até porque tinha desaparecido o incentivo. Mas os bancos travaram a fundo.
É que o BCE errou. Previu uma subida das taxas de juro apenas em 2023. Mas as medidas polémicas e drásticas adotadas por governos europeus, incluindo o português, para lidarem com a epidemia – nomeadamente confinamentos e fecho de atividades – levaram a um desastre económico, que foi agravado pelas consequências provocadas pela guerra na Ucrânia. A inflação disparou, como previam já economistas em 2020. Em resultado, o BCE decidiu começar a subir as taxas de juro mais cedo.
Os bancos perceberam que conseguem lucrar com esta ‘falha’ do BCE. Com a subida da taxa de depósito, calcularam que podem usar os fundos de contribuintes europeus (TLTRO) para os depositar junto do BCE. Isto porque a taxa dos financiamentos é calculada como uma média ao longo de vida útil de três anos dos empréstimos.
A arbitragem que os bancos fazem entre a taxa de juro média da TLTRO III e a taxa de depósito no BCE, gera um lucro chorudo, sem espinhas.
Os bancos podem devolver o dinheiro antecipadamente a cada três meses. Em junho, foram reembolsados antecipadamente 74 mil milhões de euros, muito abaixo do previsto, a espelhar o facto de as taxas de juro estarem a subir, noticiou o Financial Times.
O banco de investimento Morgan Stanley prevê que os bancos europeus podem lucrar entre 4,0 mil milhões de euros e 24,0 mil milhões de euros de lucro extra ao depositar os empréstimos baratos do BCE junto do banco central, desde o mês de junho de 2022 até ao final da operação de refinanciamento em dezembro de 2024.
A estimativa depende da velocidade a que o BCE suba as taxas de juro nos próximos meses, segundo o Morgan Stanley, citado pelo Financial Times.
Mas uma fonte conhecedora do assunto, garantiu ao FT que o valor a lucrar pelos bancos deverá ser inferior ao valor máximo estimado pelo Morgan Stanley.
Banca em Portugal com 41,5 mil milhões nas mãos
No balanço do Banco de Portugal, “as TLTRO III apresentaram um crescimento significativo (em 2021) face a 2020, passando a 41 587 milhões de euros a 31 de dezembro de 2021”, refere a entidade liderada por Mário Centeno, no seu Relatório de Atividade e Contas relativo ao ano passado.
Tratou-se de “aumento de 9523 milhões de euros”, que corresponde a um crescimento de 30%, “corroborando a trajetória de crescimento do ano anterior”, adianta o Relatório. E recorda que “estas operações iniciaram-se em 2019 e têm a maturidade a 3 anos com opção de reembolso antecipado ao fim de dois anos”.
O Morgan Stanley calcula que, se o BCE subir a sua taxa de depósito para 0,75% até ao final de 2022 – o que já o fez ontem -, um banco que tenha subscrito um financiamento via TLTRO em junho de 2020 deverá registar uma margem de lucro de 0,6% sobre o dinheiro que detém até à altura em que o terá de reembolsar, em junho de 2023. Ora, o BCE anunciou ontem a subida da taxa de depósito para 0,75%.
No limite, os bancos em Portugal terão um lucro extra de até 250 milhões de euros, tendo por base o montante de financiamentos via TLTRO registados no balanço do Banco de Portugal no final de 2021. Mas só os bancos saberão, ao certo, quanto irão ter de lucro fácil. É que depende das datas de recurso ao financiamento e dos montantes obtidos.
Partindo da estimativa do Morgan Stanley, ao Millennium bcp, o maior banco privado em Portugal, no máximo, caberá ao banco um lucro de 48,9 milhões de euros. O banco afirmou no seu Relatório e Contas do primeiro semestre deste ano, que reforçou o financiamento via TLTRO III, o que lhe permitiu aumentar a margem financeira na primeira metade deste ano.
Segundo o mesmo Relatório, registou-se na margem financeira do banco “um impacto marginalmente positivo resultante do financiamento adicional obtido junto do BCE, na sequência da decisão do Banco de elevar a sua participação na nova operação de refinanciamento de prazo alargado direcionada (TLTRO III) para 8.150 milhões de euros, em março de 2021, beneficiando de uma remuneração baseada numa taxa de juro negativa mais favorável”.
No caso do Banco BPI, “tem atualmente cerca de 4,9 mil milhões de euros de TLTRO”, disse fonte oficial do banco detido pelo espanhol Caixabank. Calcula-se que os ganhos estimados do banco chegarão até aos 29,4 milhões de euros.
A Caixa Geral de Depósitos (CGD) adiantou ao Página Um que “os montantes de financiamento da CGD via TLTRO-III foram de 1000 milhões de euros em junho de 2020, 2.500 milhões de euros em março de 2021 e 2.300 milhões de euros em junho de 2021”. O cálculo de possíveis ganhos resulta num lucro extra de até 34,8 milhões de euros para o banco estatal.
“Os impactos da manutenção do TLTRO-III dependerão da evolução das condições aplicáveis, pelo que só serão determinados com o reembolso do financiamento”, afirmou a mesma fonte oficial da Caixa.
O Novo Banco detinha no final de junho deste ano 7,954 mil milhões de euros em TLTRO. O ganho possível ascende no máximo a 47,7 milhões de euros.
Quanto ao Santander, “o financiamento obtido junto do BCE, no montante de 7,5 mil milhões de euros, manteve-se exclusivamente em operações de longo prazo e integralmente através do TLTRO III”, segundo o comunicado de imprensa do banco com as contas do primeiro semestre deste ano. Este montante corresponde a um ganho estimado de até 45 milhões de euros.
Não foi possível obter comentários do BCP e Santander Portugal.
Um programa de financiamento para a economia?
Para Filipe Garcia, economista da IMF – Informação de Mercados Financeiros, “a manutenção do programa TLTRO III, pode ser vista como, ao mesmo tempo, uma ajuda à economia e aos bancos”. Isto porque, a seu ver, “pode auxiliar a economia porque cria condições para que sejam concedidos empréstimos a taxas mais baixas, ainda que esteja do lado dos bancos essa decisão”.
Para os bancos, apontou que “o facto de se endividarem a uma taxa abaixo da que podem aplicar sem risco junto do BCE (ou a taxas mais altas junto de outras contrapartes), permite remunerar a liquidez excedentária”.
Lembrou que o BCE em Maio “tinha dado a entender que iria subir taxas a uma velocidade mais lenta, creio que para ancorar as expectativas numa fase em que ainda não era certo que a inflação continuasse a subir”.
Agora, “o BCE parece estar a agir de outra forma, aproveitando a janela de oportunidade da inflação alta e abertura do público e governos para subir as taxas para níveis mais ‘normais’, enquanto a economia não desacelera de forma séria”.
“Só assim se compreende que o BCE tenha ontem subido as taxas numa magnitude recorde, mas ao mesmo tempo tenha reconhecido que o PIB até poderá contrair em 2023”, frisou Filipe Garcia.
Maria Vinuela, analista sénior da Moody’s e responsável pela avaliação dos bancos portugueses, espera que “os bancos europeus mantenham a maior parte de seus empréstimos sob TLTRO do BCE até junho de 2023, como resultado da decisão do BCE de aumentar as taxas de juros em julho e setembro de 2022”.
“Esta decisão mantém uma diferença positiva entre a taxa de empréstimo TLTRO e a taxa média de depósito do BCE, mantendo as oportunidades de arbitragem abertas e, assim, adiando o reembolso significativo de empréstimos TLTRO”, afirmou ao PÁGINA UM. “Como resultado, esperamos que o TLTRO continue a apoiar o NII (margem financeira estrita) dos bancos em 2022 e no primeiro semestre de 2023”, salientou.
Em relação à banca em Portugal, Maria Vinuela frisou que “não existe informação pública sobre os ganhos obtidos pelos bancos portugueses com a arbitragem entre as taxas TLTRO e a taxa de depósito do BCE”.
Recordou que “os bancos portugueses receberam cerca de 41 mil milhões de euros de financiamento das TLTROs no final de julho de 2021, excedendo o total de 32 mil milhões de euros um ano antes, e mais do dobro dos 19 mil milhões de euros reportados em 2018”, um aumento que “reflete principalmente as condições atractivas do programa TLTRO”. “O financiamento TLTRO dos bancos diminuiu consideravelmente em relação ao pico de 61 mil milhões de euros em 2012, quando os bancos portugueses enfrentaram graves restrições de liquidez, e agora representa cerca de 9,4% dos seus ativos”, disse.
Sobre a banca portuguesa, Nicola de Caro, vice-presidente sénior do departamento de ‘Global Financial Institutions’ da DBRS Morningstar, disse que “no primeiro semestre de 2022, o lucro líquido total quase duplicou em comparação com o mesmo período de 2021, com base nos dados agregados dos maiores bancos em Portugal”. Isto deveu-se “sobretudo a receitas mais elevadas e custos de provisões mais baixos, bem como menores imparidades”.
A margem financeira aumentou 14% em termos homólogos, ajudada “por diversos factores mas não limitada ao impacto da TLTRO III”. “Em alguns casos, o efeito positivo da TLTRO representou cerca de 30% do crescimento da margem financeira em termos homólogos”, notou.
Em termos de perspetivas futuras, o analista da DBRS espera que “a margem financeira dos bancos portugueses beneficie da subida das taxas de juro”. “Isto leva em conta a maior exposição dos bancos portugueses a empréstimos com taxa variável”, explicou.
Por outro lado, a DBRS espera “um aumento nos custos de financiamento no mercado grossista”, a que se soma “a persistente pressão da inflação e custos de energia mais altos que podem afetar negativamente as empresas e colocar pressão sobre a qualidade dos ativos” dos bancos em Portugal.
BCE alerta para revisão das condições da operação de financiamento dos bancos
Na passada quinta-feira, 8 de setembro, o BCE anunciou a subida da sua taxa de depósito para 0,75%. Os analistas esperam que aumente mais em 2022 e em 2023. Conclusão: estima-se que os bancos mantenham os fundos TLTRO III até à sua maturidade, em junho de 2023.
O BCE anunciou ontem que o seu Conselho “continuará a acompanhar as condições de financiamento dos bancos e a assegurar que o vencimento das operações da terceira série de operações de refinanciamento de prazo alargado direcionado (TLTRO III) não prejudica a transmissão harmoniosa da sua política monetária).
“As mudanças de condições do TLTRO que foram introduzidas durante a pandemia foram projetadas, projetadas e destinadas a incentivar os bancos a emprestar à economia, que é o que todos queríamos e foi o que foi feito predominantemente”, disse Christine Lagarde na conferência de imprensa após o anúncio de novo aumento de taxas de juro pelo BCE. Lembrou que “o preço TLTRO que foi então projetado foi destinado a esse efeito”.
“É óbvio que, à medida que estamos a mudar para um território positivo em termos de taxas de juro, há múltiplas dimensões dos nossos quadros operacionais, dos nossos mecanismos de remuneração que precisam de ser revistas e isso é uma questão que vamos abordar, que verá alguma resolução ainda não foi debatida por ocasião desta reunião de política monetária em particular, mas é uma revisão geral que obviamente conduziremos no devido tempo”, avisou.
Fontes da banca apontam que uma das soluções a que o BCE poderá recorrer é a alteração do múltiplo referente ao cálculo das reservas mínimas obrigatórias, forçando os bancos a ter mais dinheiro de lado para cobrir a liquidez que detêm. Os bancos teriam assim um incentivo para deter menos fundos e reembolsar o financiamento obtido via TLTRO.