Querido Pedro
Soube agora da morte do teu Pai.
Até parei de escrever, numa parálise de pura tristeza.
O que é que nós podemos fazer? Mandar-te um beijo muito carinhoso e muito solidário, desde já. Mas claro que não chega. Eu já não tenho nem Pai nem Mãe[1], e sei perfeitamente que nunca estamos “preparados“: no dia em que eles se vão embora, na nossa vida há sempre um terramoto.
Eu já perdi praticamente toda essa geração da minha família, todos os tios biológicos e todos os tios que eram os amigos dos meus Pais, e que me ajudaram a crescer em tudo aquilo em que os meus Pais não podiam ajudar.
Ofereço-te a morte que me tocou a mim esta semana, só para te fazer companhia.
Ontem morreu a Joana Bénard da Costa, uma tia que estava sempre a dar-me descomposturas por eu não me vestir “normalmente“, por pôr as maminhas de fora na praia, por não disciplinar minimamente aquela minha enorme cascata de caracóis, e sobretudo por “fazer demasiadas coisas”:
“PÁRA! PÁRA! Não tens necessidade nenhuma de ser jornalista, estudar biologia, cantar num coro, e fazer teatro, tudo ao mesmo tempo. Já fizeste mais em vinte anos do que um africano faz na vida inteira! Assim nunca terás tempo para pensar!” – tudo isto com imenso humor, e com um gozo mesmo cáustico, que foi sobretudo brilhante quando eu me casei com o Meguinha (AKA António Mega Ferreira):
“Então agora vais resolver os teus problemas armando-te em madame? Ó Clarinha, não é assim que os problemas se resolvem. Ainda bem que agora já há divórcio, porque tu não vais aguentar um papel desses. Dou-te dois anos de senhoreca, e já vais com sorte.”
Por acaso aguentei sete, se bem que nos últimos dois já estivesse sozinha em Buffalo.
Ontem a Joana morreu.
Nos últimos anos, já no lar mas perfeitamente lúcida, passava a vida a telefonar-me porque queria estar comigo. Há vinte anos que não sabia nada de mim, nem tinha percebido nada do que me fizera desaparecer, nem sabia o que é que eu andava para aí a fazer agora.
“Olhe, Joana, Saturei-me de Lisboa, sabe? Saturei-me completamente. Achei que ia morrer se continuasse lá. Então olhe, vim viver para Estremoz, e…”
“Para Estremoz? Foste ter com o Zé Filipe?”
“Ó Joana, então? O Zé Filipe é casado e tem filhos!”
“Olha que na tua geração, pelo que eu vejo por aí… Vá lá, ainda por cima com o Zé Filipe… Temos mesmo que falar!”
E eu completamente tesa, frequentemente doente, tudo tão difícil. Eu e os meus amigos com quem cresci bem tentámos trazer a Joana a Estremoz, mas por uma razão ou por outra nunca foi possível. Essa tal última conversa que ainda íamos ter, a conversa em que eu lhe explicava tudo e depois lhe contava tudo do que andava a fazer, e de caminho esclarecia que não andava a fazer nada com o Zé Filipe[2]… a conversa em que ela havia de ser cáustica e irónica como sempre, e fazer-me acordar para o facto óbvio de que nenhuma mulher de 62 anos se veste assim…
… Pois é, íamos sempre a tempo, mas agora o tempo acabou.
Ontem, durante a noite chorei, chorei, chorei, agarrada ao lince de peluche da WWF sonegado ao neto da Didi, que é um purista e da WWF só queria pandas[3], pelo que não ligou nenhuma ao meu lince e eu foi género,
“Ai o menino não quer? Então olhe, quer a tia, quando não estiver ninguém a ver – ou acha que um lince tão lindo ficava aqui para ir para porcos?[4]”
Agora é todo o grupo da minha idade, todos os putos com quem passeei pelas praias, cantei, tive conversas complicadas, vivi aos dezoito anos a minha primeira grande paixão[5] que por acaso era daqui de Estremoz[6] — somos nós, todos os que cresceram com o sarcasmo perfeito da Joana, quem tem pela frente a tarefa hercúlea de ser tão bom perante a vida como os seus pais e como os amigos deles.
Tudo isto para te dizer que estou à disposição, absolutamente, se puder ser útil nalguma coisa. É óbvio que uma expressão tão brutal como the confort of strangers nunca poderia ter sido cunhada ao acaso. Foi cunhada porque os desconhecidos, exactamente porque nada os mancha no nosso passado, nos confortam mesmo. Eu já senti isso na pele centenas de vezes. Passo eternidades em salas de espera relativas a coisas tristes e perigosas.
E, em termos de suavizar as dores de pessoas, eu até sei ser coach, sei fazer Reiki, e sei dar massagens terapêuticas[7]. Recuso-me a dar ou receber Shiatsu, porque não há técnica que deixe uma pobre desgraçada que já estava toda partida ainda mais completamente partida[8]. No Feng Shui, por favor não me peçam que acredite. E a porcaria do Pilates… quando quiseres rir pede-me que te conte a história da minha inesquecível sessão de Pilates, ministrada por uma fufa americana.
Clara Pinto Correia
Estremoz, 12 de Setembro de 2022
[1] …e, como continuava a canção que começava com “É tão bom ser pequenino/ Ter Pai, Ter Mãe, Ter Avós” – a quadra fecha com “Ter confiança no Destino/ E ter quem goste de nós”. Esta última parte ainda é mais difícil de engolir do que a primeira. Por muito que nos custe, sabemos que Pais e Avós hão de ir-se embora. Mas descobrirmos que eles nos mentiram… que é perigosíssimo ter confiança no destino e que não há assim tanta gente como isso que goste mesmo de nós… Ah, caracóis! Isso dói!
[2] Já estou há quase dois anos em Estremoz e nunca mais o vi. Claro que tenho pena. Mas não propriamente pelos motivos que a Joana pensava.
[3] Símbolo da WWF, como se sabe. Mas é verdade, eles agora até já fazem linces, e são lindos! Fica a sugestão para quem tiver netos, ou netos de amigos, menos autistas do que o da Didi.
[4] Há que ver que eu pertenço à geração da Faculdade de Ciências que lançou a Campanha SALVEMOS O LINCE E A SERRA DA MALCATA. E que fui a primeira jornalista portuguesa a escrever prontamente duas páginas sobre o assunto, já que, nos anos 80, o pessoal nem sequer sabia o que era um ecossistema. À minha frente ninguém brinca com o lince. Nem os netinhos fundamentalistas.
[5] O tal Zé Filipe, só podia.
[6] Mais propriamente, dos Arcos. Mas íamos e vínhamos a pé. E foi assim que começaram os meus longos amores com Estremoz, já timidamente iniciados aos 16 anos, com colónias de férias na Serra de Portalegre.
[7] É verdade. Fiz estes cursos em Harvard, para lidar melhor com a dor crónica.
[8] Depois da minha última experiência com o Shiatsu tive que tomar uma daquelas bombas americanas para as dores que têm mais morfina do que qualquer outro componente. Foi o que valeu. Mas, francamente – não é para depois ter que se encharcar em opioides que um gajo vai à massagem!