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Mário Cláudio

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Um conjunto determinável e evidente de grandes vectores pode revelar-se, para quem tenha acompanhado a obra de Mário Cláudio como romancista, na engrenagem poética da sua criação ficcional[1]. Não funcionando todos os que consideramos mais pertinentes ao mesmo nível ou instância de discurso, não se revelando todos no mesmo plano textual, procuraremos apresentá-los de acordo com uma arrumação dentro desses planos. Tal discriminação apenas tem valor de matriz teórica, ou seja, apenas pretende conceptualizar hierarquizadamente um conjunto de mecanismos poético-narrativos pertinentes, que permitam tornar mais clara a formulação epistemológica tal como ela se gera enquanto verosímil na narrativa do autor portuense.

Para uma melhor orientação sistemática de leitura, é segundo os diversos planos, dentro dos quais conceptualizamos o funcionamento dos discursos e dos textos, que congeminamos arrumados os fenómenos mais globais que nos parecem pertinentes na poética de Mário Cláudio, salvaguardando sempre que essa discriminação apenas tem valor heurístico tendo em vista a análise da obra. Quando emergem como efeitos poéticos não é sob essa discriminação, mas sim como enunciados, que significam na globalidade sincrética da dinâmica simbólica e imaginária, que vários códigos regulam, quer na produção quer na leitura. 

Mário Cláudio

No plano a que chamaremos do discurso romanesco (muito próximo daquilo a que Genette chama a narraçã0[2]) destacam-se, como processos dominantes da poética romanesca de Mário Cláudio, a ficcionalização do autor por um lado; e a articulação dos pontos de vista com as vozes que narram, por outro, numa dinâmica que não sendo propriamente a do paradoxo, é quase sempre a do desajuste. No plano da construção da narrativa propriamente dita, destaca-se a hipertrofia do descritivo, em claro diálogo/demarcação com os procedimentos do naturalismo oitocentista, acompanhada por uma usurpação do lugar do narrador linearmente épico por um sujeito poético que comenta e refracta as posturas e discursos das entidades da narrativa – narrador ou personagens.

Do ponto de vista da história ou fábula contada, ganham relevo dois aspectos que são talvez os mais evidentes e fascinantes na produção de Mário Cláudio: o narrado aparece ou sob a caução da personagem histórica, que não é ficcional mas “biografada”; ou como matéria que a narrativa fabula reportando-se, de imediato, à crónica, simulando a clara intenção de construir um discurso historicamente factual, seja a matéria abordada a privada ou familiar, seja a do discurso memorialístico ou do diário, ou seja, ainda,  a do quotidiano que circula na comunicação de massas.

O conjugar destes diversos mecanismos, de forma original e cada vez mais bem regulada, permite a criação de um dispositivo poético a que chamaríamos aparato estético da escrita como espectáculo da enunciação, o qual funciona do seguinte modo: um sujeito enunciativo aborda o documento, pretexto da história a construir, e transforma-o numa equação em que o objecto de ficção se destaca pela relação que mantém com a História do seu tempo, mas sob os efeitos de transformação do discurso poetizante do autor. Completa o efeito da espectacularidade o facto de uma das posturas preferidas de Mário Cláudio ser a da contemplação do álbum (ou do suporte de documentos em geral), compondo a partir do instantâneo fotográfico ora a aura da pose[3], ora a digressão da pequena narrativa anedótica, ora a perífrase da ampliação descritiva.

A espectacularidade estética de que falamos tem em conta, sobretudo, dois factores dominantes na ficção de Mário Cláudio já aludidos acima: a importância da visualidade mesmo quando o discurso é argumentativo; e a passagem do instantâneo à pose e mesmo à composição descritiva por alongamento do discurso (a hipotipose). O início da narrativa que inaugura, por assim dizer, na obra do autor, o “ciclo romanesco[4]” propriamente dito, Amadeu, fornece-nos bons exemplos de ambos os processos segundo os quais a fábula se vai tecendo como romance ainda que, quase sempre, em constante de invenção poética, renunciando a ser linearmente narrativa[5]. Lemos, de facto, logo nas primeiras linhas:

“A Casa é uma teoria volumétrica por entre vegetação, maior do que todo o Mundo, impossível de arrumar. Por torres e telhados se levanta, paredes de cal alternando com panos de muralha, e um bestiário a habita, nela cirandando ou em torno lhe correndo, heráldicos bichos esguios, indistintos da paisagem. Na construção, que não obedece aos caracteres do meio, um pouco ao revés de certa convicção de sangue da família, a vida se concentra na cozinha que ele virá a pintar. É uma quadra enorme e enegrecida, trespassada de aromas que compõem uma história culinária remontando muito além do clã, ao horizonte de raças de loiro baço, olhos de verde sequíssimo, deuses que nas faldas do Marão apenas reclamam exíguos sacrifícios de bagas de arbusto, pequenos mamíferos amedrontados. Amadeu percorre a Casa a grande velocidade, na espécie de tontura que lhe dá a infância, ingénuo do destino a conferir ao fogo que a brincadeira não sabe extinguir” (1993: 11[6]).

Este excerto, que nos limitámos a “colher” das primeiras linhas da obra que nos parece ser fundadora da série que afirma Mário Cláudio como um dos grandes romancistas portugueses contemporâneos, é um perfeito exemplo dos vários mecanismos que estão na origem da arte (ou técnica) de composição que o caracteriza. Em primeiro lugar, é de notar a importância que ele dá à visualidade, patente pela própria abundância de um vocabulário que hiperboliza o visual, quase até à sua glorificação, quer pelo descritivo dominante, quer pelo uso do vocabulário típico das várias técnicas da construção do visual.

Em segundo lugar, patenteia-se a posição privilegiada de uma perspectiva narrativa que nunca se submete à necessidade de sequencializar a acção segundo a exigência de sucessivas actuações ordenadas pela cronologia e verbalmente expressas pelo domínio do pretérito perfeito – ao contrário, dominam as formas do presente e do futuro. Tudo se passa, enfim, como se a voz do narrador, caracterizada por uma forte expressividade linguística e um notável aparato cultural, transmitisse um poder de conhecimento que, em relação ao objecto apresentado, não conhece limites: move-se para a infância da personagem, prevê-lhe o futuro, conhece os fundamentos genealógicos da família, o quadro cultural antropológico e os fundamentos míticos e simbólicos do imaginário que determinarão o futuro da personagem.

Sem abdicar, em nenhum momento, dessa omnisciência de ponto de vista, o privilégio autoral de Mário Cláudio introduz, no entanto, uma imensa variação de sujeitos que colaboram com o narrador autoral, quer aparecendo como vozes independentes, quer fornecendo-lhe pontos de vista a partir dos quais a entidade mais recuada do discurso (a que se confunde com o autor enquanto enunciação primeira do discurso) desenvolve as suas digressões, por vezes em narrativas propriamente ditas, mas,  mais frequentemente, em descrições e discursos argumentativos e avaliativos.

São bons exemplos dessa versatilidade os troços de narrativa em que um narrador homodiegético emerge, como diarista do trabalho do biógrafo de Amadeu que trabalha em Santa Eufrásia de Goivos. Alguns excertos desse diário permitem-nos acrescentar alguns traços esclarecedores relativos ao mecanismo de narração de Mário Cláudio.

“Considera-se um biógrafo. Reúne documentos, ouve quem ouviu do homem, acrescenta a tudo isso estâncias da própria existência. Este meu Tio Papi pretende justificar-se. A vida apenas se lhe torna inteligível na vida de outrem, e é isso quase tudo quanto o move. Falando do pintor Amadeu é de si que fala, por ele viaja até à infância, emerge à superfície das águas trazendo entre os dentes um pequeno tesouro cintilante. Mas é-lhe pouco exacto o itinerário, arrogante também. Vejo-o quando passo no corredor e esqueceu a porta entreaberta, de camisa impecavelmente alva, às vezes ao pescoço o foulard de seda natural, infantil ex-libris, a pena suspendida do papel, o braço esquerdo apoiado no cotovelo e sustentando o cigarro entre o polegar e o médio” (1993:16).

Embora antepostas, as considerações afectam como um comentário o olhar momentâneo: e, obviamente, a ideia de uma imagem captada no instante é apenas a máscara do documento, de um instantâneo divisado pela nesga da porta, que inscreve, de facto, a pose bem elaborada do escritor.

A recorrência do processo é notável, embora variem os mecanismos de perspectiva e os sentidos atingidos sejam diversificados. Por exemplo, em O pórtico da glória, o narrador, biógrafo da própria família, referindo-se ao seu tio-avô, refere-se-lhe como se o captasse numa fotografia de um álbum, tirando os efeitos temporais e de perspectiva mais surpreendentes, inclusivamente pela sugestão dos instrumentos de óptica que apoiam a visão:

“Vejo-o à distância, empenhadíssimo em fiscalizar o funcionamento da fábrica, utilizando os conhecimentos técnicos, proporcionados pelo curso de engenheiro mecânico, intencionalmente abraçado, no afã de corresponder às urgências da acção em que a tribo se implicava. E distingo, reflectidas nas lentes de aros dourados, que nunca abandonaria, o rol de uma estrita lista de encomendas, que não consigo precisar em que época se teria cumprido. A tinta negra, porventura pela mão do defunto guarda-livros Evaristo Nunes, decorre sob o vidro que os aumenta os itens seguintes [e seguem-se seis linhas de enumeração]. E uma mancha de tristeza parece toldar a face de José Bolet, abreviado nome, que reivindicaria, e não logro precisar donde provirá ela, se da folhagem de um plátano que se agita, na tarde de magro sol, se de alguma agrura da alma a qual não achou aquilo que desesperadamente procura, mas que percebe quão inútil lhe será a desistência da frustração” (1997: 168).

Compreende-se que, no horizonte deste processo, se revela a técnica naturalista, sobretudo se atendermos ao facto de que o biógrafo faz a “saga” (ou crónica, como o autor prefere chamar-lhe – e com razão, quanto a nós, pelo que iremos demonstrando) da própria família. Mas logo se patenteia como fundamento desta escrita a deriva para a fantasia através da qual se verifica quanto o processo do documento e da reconstrução do documento é uma impossibilidade para o narrador e um limite para o criador poético. Não teria de ser assim, forçosamente: não obstante as críticas dos seus detractores, o naturalismo procurava ser uma arte de representação do real e um discurso epistemológico de explicação dos factos documentados, exactamente através da descrição.

Seja como for, o procedimento de Mário Cláudio, lançando mão dos mesmos materiais a que os naturalistas recorriam, parece querer mostrar quanto, no documento, o pormenor (a perspectiva do olhar do tio-avô, os óculos, as letras vistas através das lentes, a referência ao guarda livros e a própria enumeração do que essa lista continha) apenas serve de húmus ao devaneio, que se vem fixar no pormenor incerto (a “mancha de tristeza”, equivocamente atribuída a uma folha de plátano), não podendo aspirar a demonstrar nada no plano da realidade referencial.

Quanto a este aspecto, Mário Cláudio, atento herdeiro dos pastiches camilianos, parece aproximar-se mais do espírito do nouveau-roman, fazendo do olhar que encaminha a descrição uma paixão dos sentidos, uma obsessão de onde parte a digressão poética. Curioso é que ela se exerça quase sempre como prospecção do passado, como um devaneio que procura reconstruir a vida como sonho, a partir dos dados que a crónica apresenta como factos na verdade ocorridos. O autor portuense parece estar inteiramente consciente disso, como o demonstram as linhas que em seguida transcrevemos, do romance também pertencente à “crónica familiar do autor”, Tocata para dois clarins, nas quais somos tentados a ver uma revelação, quase, de uma ars poetica:   

“Inclino-me para estes dois retratos, agora, que constituem a prova visível, diria quase imemorial, daquela viagem de núpcias, num papel recortado, que o tempo, apesar de tudo, não tingiu do proverbial amarelo mitológico. E relembro-me, assestando a desmedida máquina «Kodak», em pleno Terreiro do Paço, a fim de colher, da Maria, a imagem que a retenha, em Lisboa, nos finais desse Novembro, soalheiro e frigidíssimo, de mil novecentos e quarenta” (1992: 77).

Será difícil não ver, na sequência do que vimos argumentando, quanto a própria problemática que procuramos desenvolver se torna central no troço da narrativa que acabámos de transcrever: um “cronista” evoca, na presença de uma fotografia, o momento em que ela foi obtida; o acto de captação é visto como uma tentativa de “colheita” de um momento (“instantâneo”) imemorial; no entanto, a atenção do observador é avassalada pela memória, a figura agiganta-se, no conjunto da paisagem, e não só o momento se eterniza numa pose – no recordar! – como a composição aumenta, como se o tempo decorrido, um pouco à maneira da imagem que Proust constrói no final da sua Recherche, incluísse na figura o tempo, tornado volume no espaço; e o devaneio histórico cultural desenvolve-se, nas linhas seguintes, até ao final do capítulo onde, num remate que retoma o instantâneo – já tão evidentemente permeado de observações e juízos de valor – se encerra o instante, e tudo o que o amplia, deste modo, onde se constrói o parêntesis pelo jogo do “anacoluto” narrativo corrigido:

“Ao encerrar este capítulo, porém, de uma espécie de privativa história universal, é como se me implantasse, de novo, defronte da minha noiva, ajustando o diafragma, medindo a distância, prevendo a incidência da luz, dentro em breve crepuscular. À invectiva da Maria, então, «Vamos lá, António, vê lá se te despachas», responderei com um segredo, balbuciando entre lábios, como nesse dia, duas palavras, apenas, «Um beijo», enquanto comprimo a molazinha do obturador” (p.80).

No entanto, como já o dissemos anteriormente, não é só do documento visual que parte o discurso perscrutador deste procedimento de narração lírica. Ainda em Tocata… podemos ver, no capítulo II, o aproveitamento do discurso político do “Estado Novo”, citado como documento, mas lentamente transformando-se, pelo desenvolvimento de uma voz que se neutraliza pelo que nela ecoa de vozes que a glosam, parodiam, parafraseiam e amplificam, numa espécie de estrépito de ideologias em choque, soando em simultâneo.

De algum modo, o documento artístico, em Rosa e Amadeu, sobretudo, e a correspondência pessoal (por vezes inventada), com especial ênfase em Guilhermina, sofrem tratamentos semelhantes como matéria de composição poética. O mesmo poderíamos dizer relativamente aos seus textos mais marcadamente históricos, As batalhas do Caia (1995) e Peregrinação de Barnabé das Índias (1998).

Neles, sobretudo no segundo, não é tanto o documento fotográfico (que, apesar de tudo, está presente na crónica de Eça escrevendo “A Catástrofe” tal como aparece em As batalhas do Caia) que funciona como matéria-prima, mas o discurso da crónica, da História como crónica, seja ela a de um relato inventado (“A Catástrofe, de Eça de Queirós), seja a de um relato de viagem ou diário de bordo (o Roteiro da viagem de Vasco da Gama, ou mesmo Os Lusíadas).

É neste contexto, evidentemente, que perspectivamos a galeria dos biografados. Eles são, tendo em conta o maior ou menor grau de veracidade histórica, documentos, a partir dos quais os discurso poético se desenvolve para interrogar sentidos da existência, dimensionar a problemática do humano como um sistema de tensões representadas como verosímeis – desde as personagens que indiscutivelmente viveram em épocas transactas (Amadeu Souza-Cardoso, Rosa Ramalho, Guilhermina Suggia, Vasco da Gama, Eça de Queirós) ou ainda estarão vivas (algumas das que coexistiram com as personagens historicamente mais recentes, o estudante que matou a namorada, no Porto, em 1994, designado por Henrique, em Ursamaior – 2000), até às que são “autênticas” na história familiar de Rui Barbot Costa, e que Mário Cláudio, personagem autoral[7] de Rui Barbot Costa, transfigura ao romanceá-las dando-lhes novos nomes e construindo um verdadeiro palimpsesto sobre a árvore genealógica real, constante em registos civis.

Interessante, em quase todos os casos, é que à história contada se acrescente, por meandros de variados processos criativos de mundos em coexistência com outros mundos, o conto do contar a história. Assim, de certo modo, todos os narradores, incluindo o autor Mário Cláudio, são personagens sob penas várias, sofrimentos e paixões que, ou dizem respeito directamente às histórias biografadas, ou vêm complicar o processo de contar vidas vividas. Uma imagem esclarecedora desse dramatismo surge claramente na caracterização do biógrafo Papi, que acima transcrevemos. De facto, tudo se passa como se “a vida só fosse inteligível, pela vida de outro” e, desse modo, percebe-se claramente que o acto de enunciação seja um dos centros fundamentais da poética romanesca de Mário Cláudio.

Essa importância dá-se a conhecer em todos os mecanismos já mencionados, a começar pelo processo de construção da espectacularidade estética que foi o que começámos por expor. No entanto, merece uma atenção especial o mecanismo verbal que constrói, em grande parte, essa espectacularidade. O sistema textual dominante para a construção do visual e para o engrandecimento aparatoso do documento é, quanto a nós, o descritivo. Evitando alongarmo-nos muito sobre as características de tal processo em Mário Cláudio, remetemos o leitor interessado para os dois artigos da nossa autoria que apresentamos na bibliografia.

No entanto, convém que sumariemos os efeitos fundamentais que nos parece que a ordem do descritivo instaura nos romances de Mário Cláudio. Em primeiro lugar, parece-nos que, perdendo as coordenadas mais evidentemente textuais da narrativa, os romances do autor portuense esquecem o “objecto que se faz por si próprio”, no encadear das acções, como que comandado pelos feitos que constroem a fábula – a qual se valida como exemplum, minimizando, por isso, o efeito da verbalização – enfatizando, ao contrário, o dizer, pela valorização do comentário. Em segundo lugar, eles esvaziam o sentido da descrição como auxiliar da narrativa, a servir apenas de “quadro” à crónica, ou seja, de fundo secundarizado, à forma significativa das acções encadeadas.

Quanto à primeira consequência, devemos constatar que ela arrasta resultados fundamentais de valorização poética da voz narrativa. Perdido o domínio da fábula – anulado o interesse do encadear de acções cujos resultados ora coroam os esforços, ora desafiam a personagem quando falha, fazendo apelo a mais acções – passa a dominar a surpresa do foco central do discurso: a enunciação. Deixa de interessar o que é contado – porque o narrador constantemente faz gorar as expectativas do leitor – para emergir sobretudo a luxuriância da narração.

Quase se poderia dizer, para usarmos os termos de Lubbock, no seu já clássico The Craft of Fiction, que o telling (o contar) se torna a própria matéria do showing (o mostrar). Isso é evidente, muito especialmente, em A Quinta das Virtudes, o mais romanesco dos romances de Mário Cláudio, não só pelo ambiente oitocentista que, nele, mima o romance na sua época “clássica”, como pelos esboços de intrigas amorosas e de percursos vitais que se representam. Na história de amor de conteúdo mais dramático que o romance contém, de João Manuel e Teresa, verifica-se esse pendor  para minimizar a narrativa, pelo desinteresse que, a partir de um certo momento, o que se punha como horizonte dramático da narrativa, se banaliza numa série de eventos em que não surgem barreiras, não se verificam confrontos, não se desenvolvem conflitos, não se anunciam, como interessantes, nem peripécias nem desenlaces (cf A Quinta das Virtudes, p. 173-189).

O que se avoluma é o sentenciosismo da voz narrativa, o cerimonial da estrutura retórica que apresenta a fábula, a presença, enfim, controversa, mais ou menos ritual, mais ou menos inesperada, do narrador, e mesmo a pomposidade dos actos de enunciação em que o “autor” se dá a perceber. Quanto a essa vertente, não é descabido aproximar Mário Cláudio de Agustina Bessa-Luís – no entanto, não nos parece que a “colheita” do jeito do autor seja directamente feita na prosa da sua actual conterrânea: antes diríamos que ambos têm uma fonte inesgotável numa das mais marcantes entidades do romance oitocentista portuense – Camilo!

Finalmente, devemos acrescentar que esse sentenciosismo não é só o da enunciação de proveniência autoral. Há, nas personagens de o autor de Rosa, um pendor para o dizer de salão, de palco, ou de proscénio onde se enunciam dizeres que se tornam importantes, sobretudo pelo acto declamatório, para a posteridade – deixam de ser usos coloquiais para se tornarem sentenças ou dizeres, para ressoarem, em importância, pela sonoridade e solenidade. O pathos de tais palavras não está tanto no seu conteúdo, ou mesmo na sua forma verbal, como na pose declamatória, pelos silêncios ou vazios por onde irrompem, muitas vezes intempestivamente, ou sem grande relação lógica com a situação.

turned on desk lamp beside pile of books

Os diálogos entre João Manuel e Teresa, no troço de A Quinta das virtudes já referido, são disso um excelente exemplo. Mas ainda é mais notório o efeito barroco da oratória nos discursos das personagens num romance como Ursamaior, que procura representar, pela captação de uma situação dramática das prisões, a dimensão problemática das vivências humanas nos nossos dias. É disso um exemplo o discurso do passante desconhecido que impede Jorge de se suicidar e lhe diz, ao agarrar-lhe no braço: “Não faça isso, jovem, olhe que a vida não são apenas  maus momentos, ainda tem muitos anos à sua frente, Deus é grande, jovem, Ele olha por nós, nunca se esquece de nós, nem nas alturas em que parece abandonar-nos, não pense nessa loucura, jovem, pronto, pronto, já passou” (p.180).

A segunda consequência decorrente do uso da descrição, por sua vez, parece-nos apontar para o relacionamento do autor com a sua própria linhagem literária. Vemos nela, assim, um modo de Mário Cláudio citar, com ecos e consequências variadas, que podem ir do pastiche paródico à busca de linhagem literária, os modelos romanescos do século XIX. Poderíamos dizer, arriscando um pouco um juízo que colocará, eventualmente, importantes questões histórico-literárias que não conseguiremos deslindar aqui, que Mário Cláudio se propõe tomar os modelos do naturalismo, sobretudo os mais problemáticos (e, assim, deliberadamente, a descrição à moda do século XIX – em moldes mais ou menos paródicos, seguindo Camilo, mais ou menos empolgados, seguindo Júlio Dinis ou Arnaldo Gama) para instaurar a modernidade do seu lirismo romanesco. Curioso é que o recurso seja ao processo que, na crítica adversa, era considerado o maior prosaísmo do naturalismo.

O pendor para o pormenor inútil, para o detalhe insignificante, para a minudência algo escatológica torna-se o processo pelo qual a verbalidade se dignifica como objecto estético, criando o espaço onde o acto de enunciação se declara como suprema virtude.

No entanto, é preciso nunca esquecer que a valorização da palavra, a valorização do acto de proferir ou de escrever, instaura fáceis vaidades. Contudo, no fundo, o lirismo de Mário Cláudio não aspira uma pose ostensiva do eu escritor. E isso começa pelo Mário Cláudio que é e não é a entidade autoral.

O jogo do homem autor e das suas faces deliberadamente ficcionalizadas e, em certos momentos, parodiadas poderia encaminhar-nos para a sempre estimulante questão do eu da escrita. E, neste caso, não apenas a perspectiva de um narrador, como toda presença poética do autor e das suas tonalidades mais profundamente líricas. O Je est un autre, de Rimbaud, ganha, na ficção de Mário Cláudio um adensamento de sentido que, por si só, mereceria um aprofundado trabalho e, talvez, exaustivos alongamentos, na busca das implicações que a posição da subjectvidade na escrita, tal como ele a pratica, pode arrastar.

A aparente brincadeira instaurada logo em Amadeu, surgindo, na diegese, através da carta final do amigo do “autor” (qual?) a Mário Cláudio, enviada depois de uma recente ida à Quinta de Santa Eufrásia de Goivos, insere e eterniza a questão da autoria e o limite final da origem do discurso e da sua propriedade ontológica. É claro que, em grande parte, o problema só se pode colocar como paródia: daí que, entre as personagens que rodeiam Papi, “protagonista” parco em presenças na diegese relativa à escrita da “biografia” de Amadeu Souza-Cardoso, se anuncie já a referência a alguém que se prepara para biografar a Guillhermina; que Álvaro apareça como o correspondente do sobrinho de Papi;  que quem conta em primeira mão a história do biógrafo de Amadeu, dirija, em Amadeu, uma carta final a Mário Cláudio com um manuscrito que se adivinha ser o de Amadeu, que esse mesmo Álvaro seja citado  pela voz autoral em Guilhermina, como o autor da “biografia” de Guilhermina Suggia; e que Mário Cláudio lhe dirija uma carta, com a qual encerra Rosa e, mais amplamente, a Trilogia da Mão.

Faz parte da mesma ficcionalidade que se dissemina pelo exterior dos universos diegéticos, o estado confuso em que fica desenhada a entidade autoral, no meio de uma intriga de “roubos” textuais. Assim, em Rosa conta-se como Álvaro afirma que “escrevera ele [..] a rebuscada história de Gulhermina Suggia, violoncelista, de que suspeitava se houvesse outrem apropriado, entretanto, já que nem ousa confirmar a quem pertence o texto publicado, se a ele próprio, se a um certo vampiro de relatos alheios” (1993: 319).

No entanto, também parece certo que, a ser Mário Cláudio tal “vampiro”, não fica linearmente posto ponto final sobre a questão, pela admissão de que, como muitos outros autores, ele se ficcionalizou um tanto, incluindo-se, de modo pouco mais que alusivo, no universo que criou como ficção. Porque, nesse caso, temos de admitir que, por exemplo, esse mesmo Mário Cláudio, é uma entidade mistificatória que, do exterior da ficção – numa entrevista de 14 de Abril de 1985, no Jornal de Notícias, por exemplo –, compromete a verosimilhança de Guilhermina como bibliografia, ao dizer que é “um fantasma em termos de cartas, fotografia, recortes, e outras coisas desse tipo”, admitindo mesmo que usou muito pouco os documentos.

Entre outras coisas, então, Mário Cláudio é uma assinatura pela qual responde a entidade civil de Rui Barbot Costa. Tem o seu copyright sob aquele nome, dá entrevistas sobre os seus livros, escreve crónicas sobre factos aceitavelmente reais, e afirma que a sua segunda trilogia, a de A Quinta das Virtudes, Tocata para dois clarins e O pórtico da glória é da crónica da “família do autor” (cf., por exemplo, Revista Ler Outono de 1990) em peças jornalísticas que apenas referem Mário Cláudio, como autor ou como entrevistado. A entidade Rui Costa apenas assinou um livro, que não é literário nem de crónicas, mas sim um “estudo sobre o analfabetismo”.

Mário, pelo menos Mário, reaparece no último dos seus romances, aquele que não vive da ilusão “histórica”, ou da crónica historiográfica, mas se aproxima, antes, da crónica do quotidiano, Ursamaior. Aí, o preso transformista refere-se a outro preso a quem “o pessoal chamava «o escritor»”, o qual, segundo a sua observação era “um gajo sem nada de especial, nem alto nem baixo, barba grisalha, sobre o forte, mas com aquela barriguinha que aprecio nos homens maduros”. Face a uma gentileza desse «escritor», o transformista Cristiana baptizou o seu dedo do anel (tal como era seu costume – dar nomes de indivíduos de quem gostava aos seus vários dedos) “Mário” (2000: 91).

Sem pretendermos resolver ou adiantar grandes passos relativamente à questão do autor na literatura, em especial no romance, pensamos que é em torno dessa entidade que se desenvolve uma das mais lúcidas buscas de Mário Cláudio, na elaboração de uma poética inscrita na própria prática da criação. O autor, assim concebido, não é apenas um suporte mais ou menos histórico apenso a uma série escrita, revelando o homem, enigma existencial. O autor, Mário Cláudio, é uma construção da escrita, em toda a sua dimensão retórica.

Como tal, o seu ethos não é apenas a entidade civil, o cidadão que suporta, com a sua visibilidade social, política e ideológica o verosímil das suas obras. Ao contrário, a entidade que ganha foros de cidadania é o ente criado do interior da escrita. Não  como poeta visto por outros poetas, como Pessoa foi com os seus heterónimos, mas o ser irreal, fundado como verosímil pela coerência que vai criando ao transitar por toda a sua obra e pelos ecos que dela ressoam noutros actos de escrita e de comunicação.

E é de dentro do virtual da ficção, das linhas do verosímil, que se constrói, aqui, o fundamento de uma ética e de uma praxis – uma voz que institui, com autoridade mas sem autoritarismo, os campos do possível. É aí que se constroem os quadros da crónica, onde é preciso reinstalar a História em cada momento, para que ela não surja como o cristal da verdade, rigidamente feita para sempre, lugar para não ser visto mas para dar a ver o sentido imposto de uma vez por todas.                          

Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


Bibliografia

 O corpus romanesco de Mário Cláudio que tivemos em conta para a elaboração deste nosso trabalho é constituído pelas seguintes obras:

Amadeu (1984)

Guilhermina (1986)

Rosa (1988)

Trilogia da mão (reunião dos três anteriores – 1993) 

A Quinta das Virtudes (1990)

Tocata para dois clarins (1992)

As batalhas do Caia (1995)

O pórtico da glória (1997)

Peregrinação de Barnabé das Índias (1998)

Ursamaior (2000)

Deleuse, Gilles, 1983, Cinema I – L´image-mouvement, Minuit, Paris

Genette, Gérard, 1972, Figures III, Seuil, Paris

Jorge, Carlos J. F., 1991“A ordem do descritivo, na narrativa e a mudança de dominante no registo discursivo”, In Actas do Forum de Literatura e Teoria Literária da UTADT 1991 – “La Description depuis le Naturalisme: un Changement de Dominante dans le Discours du Roman” (A Quinta das Virtudes, de Mário Cláudio – complemento da anterior) In Dedalus n.º 1, (actas do Seminário O Pós-modernismo na Literatura Europeia)


[1] Temos em conta, aqui, apenas a produção de Mário Cláudio a que se tem chamado romanesca, até pela designação paratextual que acompanha, na capa dos seus livros, ou na bibliografia que antecede a obra. Não ficamos impedidos, no entanto, de citar o resto da sua produção, sobretudo quanto a aspectos que na crónica, no teatro ou na poesia se podem mostrar elucidativos dos traços que consideramos mais marcantes da sua ficção romanesca,  

[2] cf. Genette, 1972: 72

[3] Usamos aqui, de modo abreviado, os conceitos de instantâneo e de pose tal como Deleuze os desenvolve a partir de Bergson em Cinéma I  –  Límage-mouvement (cf. Deleuze, 1983: 13-15)

[4] Apresentamos no final do artigo a lista das obras que assim designamos. Fica desde já esclarecido, no entanto, que tal lista é composta por aquelas produções que Mário Cláudio publicou como “romances”, de Amadeu (inclusive) em diante.

[5] É de registar, no entanto, que o processo da visualidade como valorização do ponto de vista é extensível à produção de Mário Cláudio, sendo notável desde os primeiros momentos da sua produção – em Um verão assim, por exemplo – e parece-nos um dos mecanismos mais evidentes na sua poesia.

[6] Citamos no texto as datas da bibliografia efectivamente utilizada. Apresentaremos, no entanto, no final a lista das obras que são objecto central deste trabalho segundo as datas da primeira edição. No presente caso, a data remete para a edição de Amadeu incorporada no volume Trilogia da Mão, publicada em 1993, na qual estão também incluídas Guilhermina e Rosa. Estas obras, embora agrupadas por vontade do autor num título de conjunto, continuam a constituir, para nós, romances independentes, pelo que as citamos sempre em itálico.

[7] No seguimento deste nosso trabalho, a designação que aqui usamos ficará devidamente esclarecida.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

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