PÁGINA UM recebeu ontem relatório que culpa festas de Junho por 330 mortes

Aqui há gato: Instituto Superior Técnico com pressa em “destruir” original do “esboço embrionário” para impedir confronto de documentos

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A Ciência costumava ser aberta e transparente, mas o Instituto Superior Técnico tem estado a escrever vergonhosas linhas sombrias. Um simples pedido de envio de um relatório em Julho feito por um jornal, transformou-se numa “recusa infantil” enviada pelo smartphone do presidente da instituição universitária. O caso acabou no Tribunal Administrativo de Lisboa, onde a defesa do catedrático Rogério Colaço garantiu estar-se perante não um relatório, mas sim um “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”. Agora, feita a sentença, que o PÁGINA UM ainda aguarda esclarecimentos, o Instituto Superior Técnico enviou apressadamente o suposto relatório (que recusara em Julho) e não perdeu tempo a requerer a retirada do processo do suposto original que fora obrigado pela juíza a enviar em envelope lacrado. Se a juíza concordar com este expediente, apaga-se a prova de um eventual crime de fraude científica.


Tem 11 páginas, um sumário, 12 gráficos, uma breve conclusão. O PÁGINA UM recebeu ontem pela manhã, por correio electrónico, o famigerado Relatório Rápido nº 52 do Instituto Superior Técnico, que em Julho do ano passado “responsabilizou” as festividades de Junho (festas populares e festivais de música) da responsabilidade por 330 mortes. Mas esta autêntica “novela científica” está ainda longe do seu epílogo.

A sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, assinada pela juíza Telma Nogueira na sexta-feira passada, concedeu razão ao PÁGINA UM quanto ao considerar a existência do direito de acesso aos relatórios elaborados pelo Instituto Superior Técnico numa parceria – que até teve apresentação pública – com a Ordem dos Médicos. No total, terão sido realizados 52 relatórios.

Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico, quer ver destruído documento enviado ao Tribunal Administrativo de Lisboa para evitar confronto com a cópia que foi remetida ontem. Não deu sequer tempo para o trânsito em julgado. Tanta pressa e falta de transparência alimenta legítimas suspeitas de se estar perante uma fraude.

Porém, a juíza ter-se-á esquecido de decretar explicitamente que o Instituto Superior Técnico teria também de enviar os outros relatórios, bem como os ficheiros com os dados que permitiram a elaboração das previsões e dos gráficos para se garantir não se estar perante uma fraude científica com objectivos de alarme social ou outros fins menos nobres. No requerimento do PÁGINA UM constava explicitamente esses pedidos, que permitiriam uma avaliação independente do rigor científico, uma tarefa considerada normal e até banal em debates científicos.  

No entanto, sem sequer aguardar o trânsito em julgado – e, portanto, o direito de o PÁGINA UM requerer a consulta do processo e tomar outras diligências, incluindo recurso ao Tribunal Central Administrativo Sul para satisfação integral dos direitos de acesso aos outros relatórios e aos ficheiros informáticos –, ontem mesmo os serviços jurídicos do Instituto Superior Técnico requereram à juíza Telma Nogueira o “desentranhamento” (retirada e devolução) do original do documento que fora obrigado a enviar em envelope lacrado.

Última página do relatório nº 52 enviado ontem pelo Instituto Superior Técnico. O conteúdo será similar ao documento enviado à juíza? Existiria em Julho de 2022?

O envio desse original ao Tribunal teve como objectivo saber se o polémico relatório rápido número 52 era ou não um “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”. Se fosse assim considerado pela juíza, então não seria um documento administrativo e o Instituto Superior Técnico estaria livre de continuar a esconder esse documento ao PÁGINA UM e ao público.

A solicitação, feita de forma inaudita e tão lesta, para a retirada do suposto relatório original – a única pessoa fora da instituição universitária que, até agora, o viu e analisou foi a juíza Telma Nogueira –, alimenta e sustenta fortes e legítimas suspeitas de o dito original não ser semelhante ao relatório ontem enviado ao PÁGINA UM.

Se houver deferimento da juíza, algo ao qual o PÁGINA UM já se opôs por requerimento, o Instituto Superior Técnico conseguiria, para todo o sempre, apagar a “prova do crime”.

Este caso absurdo, aliás, mostra-se ainda mais suspeito, porquanto, apesar do relatório enviado ser de qualidade paupérrima – por não justificar cientificamente qualquer número e conter afirmações pueris do género “Neste momento ter excesso de confiança é o risco que Portugal corre (…)” –, pela sua estrutura nunca poderia ser considerado um “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”. Quando muito apenas um mau relatório.

Aliás, durante o processo de intimação, a defesa do Instituto Superior Técnico acabou até por defender que as suas conclusões, que permitiu serem divulgadas com grande destaque pela imprensa em finais de Julho passado, ” “não se vislumbra[va] também qual a utilidade que um documento incompleto, ou seja, por concluir, possa ter para o requerente [PÁGINA UM], pois tratando-se de um ensaio de projeção/ estimativa, ” pode não conter informações exatas e precisas, para que o requerente como jornalista possa depois difundir, podendo até sugestionar interpretações contrárias à verdadeira pretensão.”

Ao longo dos últimos seis meses, a instituição universitária tudo fez para não ser obrigada a divulgar o documento ao PÁGINA UM, o que incluiu até a sugestão de ser ouvida uma testemunha, algo que a juíza considerou não ser necessário.

A instituição liderada actualmente por Rogério Colaço, integrada na Universidade (pública) de Lisboa esteve intensamente envolvida em actividades de investigação e de parcerias empresariais durante a pandemia, contando com pelo menos 14 projectos em áreas tão distintas como a produção de viseiras, desinfectantes e zaragatoas até um jogo de computador para boas práticas sociais relacionado com a covid-19, passando por modelos de simulação e previsão e até por sistemas de detecção do SARS-CoV-2 através da fala.

Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes, na sede da Ordem dos Médicos, em Julho do ano passado, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico diz que não houve um acordo escrito desta parceria, mas foram elaborados 52 relatórios, sem que nunca se tenha visto ainda os ficheiros de dados

Além destes projectos, não se conhecem ligações directas dos investigadores do Instituto Superior Técnico a farmacêuticas, mas no famigerado relatório número 52 tecem-se considerações muito elogiosas às “vacinas de nova geração”, mesmo se o foco do estudo não mede indicadores de eficiência das antigas e novas versões. Por exemplo, na página 11 do relatório 52 diz-se, sem se vislumbrar qualquer base científica que “se a hipótese da perda de imunidade se verifica, estas vagas [de infecções] vão-se suceder de forma periódica ao longo dos anos”, concluindo que “a única forma de quebrar estes ciclos será com vacinas de nova geração”.

Recorde-se que o processo de intimação do PÁGINA UM veio no decurso de uma tentativa informal, em finais de Julho, para que a equipa do Instituto Superior Técnico, supervisionada pelo próprio presidente Rogério Colaço, disponibilizasse o relatório, os dados e a metodologia de um relatório divulgado em exclusivo pela Lusa – e que “viralizaria” pela imprensa mainstream, que nunca o viu. O suposto relatório responsabilizava o levantamento das restrições por 790 mortes atribuídas à covid-19, das quais 330 devidas às festividades de Junho.

Essa conclusão (supostamente científica de uma prestigiada instituição universitária pública) contrastava, porém, com a realidade: ao longo daquele mês até se observara uma redução dos casos positivos e da mortalidade por essa doença, mesmo a despeito dos grandes ajuntamentos de eventos como as festas de Santo António de Lisboa e do São João do Porto e também de alguns festivais de música.

Investigadores do Instituto Superior Técnico responsabilizaram festividades de Junho pela morte de 330 pessoas e culparam o levantamento das restrições por 790 óbitos. Números constam do relatório ontem enviado ao PÁGINA UM, mas surgem “caídos do céu”.

Na verdade, tendo havido uma descida de casos – ao contrário de uma previsão anterior dos investigadores do Instituto Superior Técnico, que apontavam para valores mais elevados –, mostrava-se impossível individualizar um efeito negativo das festividades. E muito menos apontar a responsabilidades directas por mortes, quantificando-as mesmo.

Apesar de o PÁGINA UM ter como prática a máxima transparência dos documentos recebidos, no caso do relatório enviado ontem pelo Instituto Superior Técnico aguardaremos esclarecimentos do Tribunal Administrativo de Lisboa, estando ainda em análise outro tipo de medidas.


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