a deriva dos continentes

A felicidade é um conflito de interesses

por Clara Pinto Correia // Fevereiro 10, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes

Devemos amar aqueles que tentam alcançar o impossível
J. Wolfgang Goethe
AS AFINIDADES ELETIVAS, 1809


Se calhar sou um bocado irritante na insistência com que repito isto às pessoas de quem gosto, e claro que, sendo humana, “penso que nada do que é humano me é estranho[1]”, e portanto às vezes também me irrito; mas, de facto, irrito-me pouco. Escrevo estas linhas ao completar 63 anos e não tenho a menor dúvida de que, quanto mais passam os anos, mais a vida me diverte, mais as pessoas me comovem, e mais tudo o que seja minimamente bom é infinitamente precioso. Por isso, hoje, a minha prenda de anos para o mundo é a história verdadeira do que eu e o ZL nos rimos numa madrugada ainda escura, num Inverno distante em que os meus dois filhos se portavam todos os dias como os mais acabados bandidos, e eu acabava de perder não só o emprego como tudo o que ainda pudesse considerar-se um bem material: a casa, o carro, a conta bancária, o cartão de crédito, enfim. Nada disto[2] me parecia uma desgraça assim tão grande como isso, porque ao menos sempre era uma desgraça que, por esses dias, andava a acontecer  a metade do País. E, ainda por cima, nessa noite acabava de jantar pela primeira vez com o ZL, que me tinha feito rir o tempo todo, e ainda por cima me deitava uns olhares algo torpes que não deveria estar a deitar, porque, a levarem a algum lado, levariam a um declarado conflito de interesses. Como quando nos puseram na rua ainda ficámos imenso tempo à conversa diante das escadinhas que levariam à minha rua, e depois ainda viemos à beira do rio ver nascer o dia por entre o nevoeiro[3], acabámos por fazer feliz também uma jovem que apareceu ali muito triste. No outro dia esbarrei com ela aqui, em pleno mercado[4]; ela explicou às amigas que eu era aquela pessoa que a tinha ensinado a ser feliz[5]; e foi assim que voltei a lembrar-me de todo este episódio memorável.


O ZL começou a aconchegar-me muito nele por causa do frio da madrugada[6] e eu recordei-lhe que mais um milímetro de proximidade e aquilo já seria conflito de interesses.

Antes conflito de interesses que pecado, patroa, sussurrou-me ele ao ouvido, carregadíssimo de intencionalidade.

Eu resmunguei que, pela maneira como ele olhava para as mulheres, não parecia nada que desgostasse de pecados, o que lhe permitiu esclarecer que nessa noite por acaso tinha reservado esse género de olhares para mim, e acrescentar que a propósito, se eu queria mesmo saber, os tais olhares que me tinham sido destinados, e de que eu estava a queixar-me com a maior ingratidão deste mundo, não eram nem um pecado nem um conflito de interesses, porque esses olhares eram um verdadeiro projecto. E, com esta, abraçou-me pela cintura e puxou-me para si, com toda a leveza e simplicidade que só costumamos sentir nos nossos velhos amantes. Passou um gajo de boina por nós, que devia estar de mal com a vida porque nos mandou ir para a pensão.

Rimo-nos tanto, ficámos tão agarrados, e aquilo era tudo tão bom que, mais conflito de interesse menos conflito de interesse, no fim fui eu quem lhe saltou ao pescoço e lhe aplicou um beijo de ventosa a todo o vapor[7].

Ele reciprocou, e começou a dar um uso de assumido conflito de interesse às mãos, ao mesmo tempo com muita doçura e com imensa avidez.

Clara e Sebastião demonstram uma forma muito simples de ser feliz
ZL já não é nem seis nem meia dúzia, mas transformou-se numa espécie de irmão gémeo e assumiu prontamente o papel de padrinho de Sebastião, pelo que continua a integrar activamente o conjunto dessa felicidade.

Passou uma professora do segundo ano com uma expedição de meninos pequeninos que iam em visita de estudo atravessar o Tejo num cacilheiro e percorrer o Cais do Ginjal. Não nos mandou ir para a pensão, mas tossicou, e logo a seguir entoou um delicadíssimo,

por favor, meus senhores,

que nos fez interromper a transgressão, olhar para trás, e ver vinte e oito carinhas lindas e rosadas fixadas em nós, de olhos redondos de espanto, porque quando os filmes dos pais estavam quase a mostrar cenas como a nossa, o raio da cota agarrava no comando e passava a televisão para a porcaria dos bonecos didáticos, e de queixos caídos de emoção porque tinham finalmente conseguido entrar num dos filmes onde os cotas nunca deixam entrar meninos. O nosso conflito de interesses devia ter-se tornado mesmo indecente, porque, além disso, os meninos tinham ar de quem não só apanhou finalmente um dos tais incríveis filmaços proibidos, mas ainda por cima teve a sorte de apanhá-lo em directo e ao vivo, e já em plena luz do dia.

O amor é a coisa mais bonita do planeta e a única que poderá ainda salvar-nos, e ver pessoas assim tão apaixonadas como vocês, e ademais na vossa idade[8], fez-me sentir muito feliz,

continuou a professora, sempre muito delicada.

Mas por favor compreendam-me, é pedagogicamente tóxico fazerem tudo isso que estavam a fazer com tanta volúpia à frente destas crianças, que vão estar aqui paradas no cais ainda mais dez minutos, ficarão absolutamente confusas, acabarão a fazer-me perguntas que eu própria terei dúvidas sobre qual a melhor estratégia de resposta, chegarão a casa a falar aos Pais do que viram e a fazer ainda mais perguntas, e se eu não vou saber como responder, bem, imaginem os pobres encarregados de educação.

Já se tinha percebido que o ZL era um grande engatatão, mas a rapidez com que ele me largou a cintura e passou o braço pelos ombros da jovem triste foi impressionante.

Ó minha querida, mas por que é que se lembra de continuações tão tristes para inícios tão felizes, numa manhã tão bonita, rodeada de tantos meninos lindos? Então conte-me lá, como é que se chama?

Eu posso ter contribuído para ensinar esta jovem a ser feliz. Mas o primeiro passo, honra lhe seja – este truque do braço e do nome, eu aprendi com o ZL,

nessa triste e leda madrugada[9].

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


[1] Citando o dramaturgo romano do século II AC Publius Terentius Afer, mais conhecido como Terêncio, sendo a forma original da frase “Homo sum, humani nihil a me alienum puto“, utilizada na sua peça HEAUTON TIMORUMENOS. Estando Portugal pejado de parolos, já ouvi esta citação ser atribuída a tout le monde et son père (Ha! Kulturens Skonhed!), incluindo Fernando Pessoa. Nem se percebe para que é que os parolos pensam que serve a Wikipedia.

[2] À excepção da bandidagem dos meus filhos, bem entendido. Mas mesmo essa não era minimamente tão triste como as histórias que eu ouvia muitos outros pais contarem, porque os meus filhos, mesmo nos seus piores momentos, sempre foram muito meus amigos – e eu deles.

[3] É verdade que foi numa madrugada de mais um Inverno, quando são sete da manhã e ainda está escuro, pelo que podemos assistir ao espectáculo do dia a nascer por entre o nevoeiro do rio. Mas claro que não era um Inverno gélido como este. Se fosse, talvez nunca tivéssemos chegado a passar tantos anos divertidos a desobedecer às questões de princípios mais básicas de uma sociedade decente. Enfim, nesses anos ISTO também não era uma sociedade assim tão decente como isso.

[4] Nem sei como é que ainda não esbarrei com a minha vida inteira no mercado de Estremoz. É impressionante.

[5] Injusto, porque o ZL ajudou muito.

[6] Não era este frio, mas era suficientemente frio para fazer sentido que as pessoas se aconchegassem. Eu não ia meter aquele gajo, assim sem mais nem menos, numa casa onde só existia a minha cama; e ele não podia ir com o carro para lado nenhum, porque tínhamos bebido como se o branco fosse água gelada e a BT estava estacionada mesmo ali diante da Alfândega.

[7] Foi, foi.

[8] O ZL não achou grande graça àquela do “na vossa idade”, mas enfim. A professora era mesmo uma jovenzinha, e ele próprio era uns aninhos de nada mais jovenzinho do que eu, que agora, quando me lembro do nosso conflito de interesses, acho que era uma jovenzinha nessa altura.

[9] Camões, OK? Sai no exame do 12º ano. É uma questão de serviço público, em benefício dos supracitados pobres encarregados de educação.

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