CINEMA MEMÓRIA

Blade Runner: a genialidade já tem quatro décadas

por Bernardo Almeida // Julho 8, 2023


Categoria: Cultura

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Lançado a 25 de Junho de 1982, mas estreado em Portugal apenas em Fevereiro de 1983, Blade Runner é considerado um dos melhores filmes de ficção científica de sempre. Baseado na obra do escritor americano Philip K. Dick, “Do Androids Dream of Electric Sheep?”, publicado em 1968, o filme foi realizado por Ridley Scott, e tem como protagonistas Harrison Ford, Rutger Hauer, Sean Young e Daryl Hannah.

A história, pelo menos à superfície não parece muito complexa. Num futuro próximo, em 2019, que na verdade agora já passou, a Tyrell Corporation constrói uns androides (denominados de Replicants), Os Nexus 6, para trabalharem como escravos e substituírem os humanos em todos os empreendimentos espaciais, nomeadamente nas colónias.

Quando um grupo de replicants mais avançados forma uma rebelião e matam várias pessoas para retornarem ao planeta Terra, é chamado um ex-polícia, que tem por nome de código Blade Runner, agora na reforma, para os encontrar e eliminar.

Aquilo que torna Blade Runner num filme intemporal é um conjunto de temas e estéticas.

Primeiro, Blade Runner apresenta uma visão do século XXI como uma distopia onde as corporações estão no topo das pirâmides decisionais e literais, conforme se vê logo no princípio do filme.

Esta distopia combinada com a ideia de inteligência artificial, a estética de pobreza combinada com a tecnologia, patente nas ruas da cidade de Los Angeles, conferem o elemento cyberpunk que muitos consideram ter tido início precisamente neste filme, o que o torna num arquétipo.

Por outro lado, temos os elementos de film noir, que trazem mais uma dimensão a este filme uma vez que em 1982 o género de ficção científica era parco no que toca à estética e temáticas desse género. Deckard (Harrison Ford) é uma espécie de detective com ambiguidades morais, alcoólico que acaba por salvar Rachael (Sean Young), uma replicant que assume o papel de femme fatale, com as convenções típicas de Noir, cigarro, discurso e pose agressiva, baton e roupas escuras.

Finalmente a decadência urbana, a noite, e o chiaroscuro, a convenção cénica mais conhecida da estética Noir. Na cena onde Deckard avança na sua ambiguidade e beija Rachael, (que apesar de femme fatale é um robot), a luz e a sombra vinda das persianas são postas sob a cara do actor que expressa a prisão moral onde a personagem se encontra ao sucumbir ao desejo.

Ainda é de destacar o Bradbury Building como local de filmagem de Blade Runner, mas que é uma homenagem a um dos mais icónicos e clássicos de Noir, Double Indemnity.

Mas Blade Runner apresenta ainda temas como os opostos raciais e sociais. O multiculturalismo é anexado à pobreza das ruas onde se veem várias raças e a azáfama constante. No topo dos edifícios (a pirâmide simbólica) apenas existem caucasianos, vê-se o pôr do sol e não se ouve barulhos citadinos.

Outro tema e outra dualidade são os arcos desenvolvidos por Deckard e Batty (Rutger Hauer) ao longo do filme. O ponto de partida de Batty é o desejo de viver e o de Deckard o trabalho de eliminar. Este segue as ordens dos seus superiores e embora os replicants tenham uma vida curta de modo a não poderem desenvolver empatia, é Deckard que parece mais maquinal e implacável na sua missão imposta pela hierarquia. Desse modo, há como que um paradoxo entre o robot que quer ser livre e viver e a frieza laboral do suposto humano que os persegue, e por isso a inversão dos carácteres das personagens.

É certo que este paradoxo é um ponto de partida que se flexibiliza ao longo do filme, pelo remorso de Deckard após eliminar uma mulher replicant e o peso dessa mágoa que no fim o faz salvar Rachael, a robot fatale.

Batty começa num registo mais emocional à procura de uma forma de prolongar a sua vida e a dos seus, como uma espécie de protector da sua classe. No entanto, ao perceber que isso não é possível, vinga-se e mata o seu criador, Tyrell e de uma forma visceral, contrapondo a sua construção em que é supostamente um autómato. É mais tarde, antes da sua morte que Batty se redime ao salvar Deckard da sua morte. Batty entende que a vida e a empatia são os valores mais importantes e assim transmuta-se de robot para humano.

Estas personagens, que se vão transformando ao longo do filme, encerram uma questão filosófica à volta do que é ser um humano e de que é feita a natureza humana. Se existe um pré-determinismo ou se são as nossas escolhas que nos fazem quem nós somos e somos livres para escolher.

Nesse sentido este tema recai no Existencialismo e Pós-modernismo como pano de fundo já que as personagens principais parecem condenadas a uma consequência, mas como indivíduos escolhem o seu próprio caminho negando as grandes narrativas que lhes são impostas. Os superiores/ criadores que as impõem assumem o papel do discurso dominante veiculado para uma sociedade autoritária que quer tornar o indivíduo numa ferramenta, a que este se rebela.

O assassinato de Tyrell tem ainda outra conotação tanto religiosa como “Nietzchiana”. Se este é o criador e Batty o criado, a morte de Tyrell simboliza a morte de Deus ainda que num ser imperfeito. A morte do Pai é a ascensão do filho, mas é também a ideia do ubermensch, o super-homem de Nietzsche, já que enquanto estão vivos, os replicants são uma forma melhorada do ser humano por serem mais rápidos, mais fortes e mais capazes, que desejam a liberdade acima das restrições morais.

O tema da religião reaparece na mão de Batty, quando é pregada, e assim assume a posição de um Jesus (ainda que androide) que morre pelos seus e mostra aos humanos a transfiguração do robot em algo mais.

Apesar de todos estes temas e estéticas, Blade Runner não teve nem o sucesso nem a importância que hoje lhe é indiscutível. Custou 28 milhões de dólares e teve um retorno à escala mundial de apenas 41 milhões. Foi mais tarde que lhe seria conferido o estatuto de filme de culto, já na fase do DVD. Ainda assim este filme tem algumas versões posteriores ao seu primeiro lançamento.

É hoje mais consensual que a versão 2007 Director’s Cut é aquela onde o realizador Ridley Scott tem mais liberdade para a sua edição e é por isso aquela que é considerada a melhor versão.

Seja que versão se veja o que é importante para qualquer amante do género, o melhor é ir ver se ainda não viu, ou então rever esta obra-prima num mundo cinéfilo cheio de primas de obra.

Blade Runner é sem dúvida um filme à frente do seu tempo e influenciou grandes êxitos do género da ficção científica como por exemplo Matrix ou Quinto Elemento.

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