Recensão: Salvar o fogo

A mística e a mágica das labaredas

por Maria Afonso Peixoto // Agosto 27, 2023


Categoria: Cultura

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Título

Salvar o fogo

Autor

ITAMAR VIEIRA JUNIOR

Editora (Edição)

Dom Quixote (Abril de 2023)

Cotação

16/20

Recensão

Depois do seu romance de estreia, Torto arado, ter ganhado o Prémio LeYa em 2018, o baiano Itamar Vieira Junior estabeleceu-se como um dos escritores brasileiros mais reconhecidos da actualidade, e das últimas décadas. 

Alcançando um sucesso estrondoso, Torto arado valeu também ao autor, em 2020, o prémio literário mais importante do Brasil, o Jabuti de Literatura, e o prémio Oceanos. Em 2022, Vieira Junior lançou ainda o livro de contos Doramar ou a Odisseia, também editado pela Dom Quixote.

Com Torto arado, o autor cravou indelevelmente o seu nome no mundo literário transportando o leitor para a realidade de um Brasil rural, assolado pela pobreza e vítima de relações de poder e velhas estruturas opressoras que se perpetuaram no tempo. Em Salvar o fogo, replicou a receita (recuperando até uma personagem) –, e saiu-se bem. Não tendo conseguido exceder a “obra-prima” anterior, o que nunca seria tarefa fácil, solidificou o estilo com que se apresentou ao público.

A história deste seu segundo romance passa-se nos anos 1960 e tem como protagonistas Moisés e Luzia, dois irmãos que vivem numa comunidade rural na Tapera do Paraguaçu, como inquilinos de terras detidas pela Igreja, e obrigados a pagar, todos os meses, impostos à instituição – uma injustiça aos olhos de Mundinho, o pai, que se recusa sempre a cumprir com os pagamentos. 

Mundinho trabalha na terra, de sol a sol, e é dependente do álcool, ficado o peso da educação de Moisés, o “caçula”, para Luzia, cuja idade dista uma grande distância do seu irmão mais novo. Vivem apenas os três juntos, já que todos os outros irmãos abandonaram a aldeia assim que tiveram oportunidade; e a matriarca da família, Alzira, faleceu antes de Moisés poder sequer recordar o seu rosto.

Luzia, por isso, assume o fardo de cuidar do “Menino”, como lhe chama, para além de trabalhar todos os dias como lavadeira da igreja do Paraguaçu, de forma abnegada e devota. Entre os dois, há um amor maternal profundo, mas raras vezes exteriorizado: Moisés anseia por afecto, mas a irmã educa-o de rígida e friamente, nunca se permitindo expressar actos de carinho. 

Os dois primeiros capítulos são narrados na primeira pessoa, sendo o primeiro contado pelos olhos de Moisés, e o segundo por Luzia. É neste último que se revela ao leitor um dos grandes segredos do romance, e que se compreende, finalmente, a atitude sempre ríspida e amarga de Luzia. 

A Igreja surge, ao longo do romance, como um símbolo da opressão – sobre ela e através dela, contam-se muitas histórias. Essencialmente, é retratada como uma fonte do “Mal”, do que é profano e perverso, de agressão e subversão. As dores e os traumas que o mosteiro da aldeia provocou a Moisés – o único da família que frequentou a escola –, levaram-no a abandonar a sua casa, a irmã e o pai, e a rumar à cidade, com apenas 15 anos.

Depois de um incêndio reduzir o mosteiro a ruínas, e o estado de saúde de Mundinho se deteriorar, os irmãos que há muito tinham virado costas às margens do rio do Paraguaçu, regressam para um reencontro familiar. O reencontro, já 15 anos após a partida de Moisés, reacende os fantasmas de um passado que, longe de enterrado, continua vivo e “efervescente”.

Ao longo da história, há uma aura de mistério que envolve as personagens principais e que se vai adensando, enquanto vão, também, sendo desvendados alguns dos seus segredos.

Luzia é tida por toda a comunidade como uma “bruxa” e acusada de práticas de feitiçaria, sendo por isso ostracizada, vilipendiada e alvo de chacota. A corcunda que, estranhamente, desenvolveu ainda em adolescente só cimentou, entre a população supersticiosa, o mito de eventuais poderes sobrenaturais. 

Moisés, por sua vez, nascido nas águas do rio em noite de Lua Cheia, cresce e vive com muitas dúvidas em torno das verdadeiras causas do desaparecimento precoce da sua mãe e das circunstâncias em torno do seu nascimento.

Salvar o fogo é sobre desigualdades e abusos de poder de instituições seculares perpetrados sob um manto de boas intenções, mas, mais do que isso, é sobre a complexidade dos laços familiares e os dramas subjacentes, a força do feminino e da Natureza – e, claro, do fogo, literal e metafórico, que tanto consome e destrói como aquece e eleva.

Sobretudo, é um romance que nos abre as portas a uma dimensão mística e mágica da vida, contrastando-a com a singeleza de vidas aparentemente “comuns” e simples, iguais a tantas outras que vieram antes. 

A escrita é melodiosa e envolvente, embora fazendo-se por vezes uso de expressões que soam um pouco a clichés, já muito “repisados”. 

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