CAPÍTULOS 10-12

A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

por Lourenço Cazarré e Pedro Almeida Vieira // Novembro 5, 2023


Categoria: Cultura

minuto/s restantes


Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


10 – Ganância, inveja, ingratidão e loucura

O português piscou indeciso. Não sabia se eu falava a sério ou se estava de gozação. Quando falam com brasileiros, os lusos partem sempre de uma premissa: este gajo está a engambelar-me. Ou a endrominar-me, como dizem eles, do outro lado do oceano. Batota sacudiu a cabeça para recuperar-se do golpe e perguntou:

– Andas armado, ó estupor?

– Não. Ando mal de numerário, mas confesso que ainda não pensei em assaltar.

– Num país com tantos criminosos, como o Brasil, devemos andar sempre com uma arma à mão. Andam por aí bandidos à solta pelas ruas aos milhares, matando e assaltando. E, no final, fica tudo na mesma. A polícia não os prende. Inconcebível!

– Não seja tão trágico – ponderei. – Olhe a questão pelo meu ângulo. Preciso desses assaltos e assassinatos. Escrevo sobre eles. Em troca, o patrão me dá um dinheirinho para sobreviver até o final do mês. A isso, a essa rotina, eu chamo vida, minha vida.

Sou assim mesmo, bastante sardônico. Minhas frases sempre escondem um tantinho de horror por trás das brincadeiras.

O gerente do Imperial moveu-se inquieto na cadeira:

– A tua rotina, patife, é apenas um fragmento insignificante da grande tragédia humana. Fazes parte de um espetáculo maior, embora me pareças um mau ator. Já ouviste falar em Shakespeare?

– Qual era a área do sujeito? História em quadrinhos?

Ele nem me ouviu. Melhor assim.

Rei Lear é a peça dele que mais aprecio. Ela escalpeliza os traços mais marcantes dos homens: a ambição, a inveja, a ingratidão e a loucura.

Manoel Joaquim Batota levantou-se bruscamente da cadeira. Mas isso não o ajudou: ele continuou baixinho. Lenta e teatralmente, enfiou a mão no bolso interno do paletó e dele retirou um canivete.

Não era um canivete comum, desses que as pessoas usam para tirar sujeira das unhas ou para desmanchar tabletes de maconha prensada. O imenso canivete era daqueles que têm, além da lâmina, saca-rolhas, abridor de garrafa, termômetro, bússola, tesoura, relógio, calculadora e radinho de pilha.

A lâmina que saltou do miolo do canivete remeteu-me à minha infância. Lembrei-me do gigantesco facão que era usado pelo nosso açougueiro lá em Canguçu.

Vagarosamente, o gerente do hotel caminhou na minha direção, recitando um poema de João Cabral de Melo Neto:

O que em todas as facas

é a melhor qualidade:

a agudeza feroz,

certa eletricidade,

mais a violência limpa

que elas têm, tão exatas,

o gosto do deserto,

o estilo das facas.

Parou a dois passos de mim, ameaçador, teatral:

– Vais confessar, antes de morrer, o verdadeiro motivo que te trouxe até aqui? Vieste para me matar ou para jogar uma bomba no meu hotel? Percebi logo que, embora parvo, és um verdadeiro criminoso.

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11 – Mentira para assustar babacas do terceiro mundo

Naquele baita canivete estava a confirmação da demência que eu vislumbrara, logo na primeira mirada, nos olhos de Manoel Joaquim Batota. Das paixões humanas, citadas há pouco, a mais pronunciada neste cidadão lusitano era a loucura.

Com o enorme canivete apontado para o meu pescoço – que, como todo humano pescoço, não tem osso –, ele continuou:

– Que te parece preferível, pancrácio, o impacto seco de uma bala nos duros ossos do teu crânio ou o suave deslizar de uma lâmina afiada na tua rubra e cálida garganta?

A extensa frase era mesmo assustadora, mas, convenhamos, o estilo poético não era dos piores. Como sou especializado em manusear pensamentos tolos em horas impróprias, pensei o seguinte: com um fraseado tão elegante, este portuga, se quisesse, entrava na hora para a Academia Brasileira de Letras. Pensei e disse:

– Se o senhor Batota pleiteasse uma cadeira na ABL, talvez ficasse com a 23, que foi de Machado de Assis, com a benção de Quincas Borba.

– Cala-te energúmeno! Como podes brincar com coisas sérias? Não sabes tu que a cadeira 23 pertence ao grande Jorge Amado, autor da maior novela humorística brasileira, que é A morte e a morte de Quincas Berro D`Água?

Não respondi porque o gigantesco canivete seguia a perigosos cinco centímetros da minha carótida, presumo que para me desaconselhar o emprego de chufas, motejos, pilhérias, chistes e assemelhados.

Com gestos ainda mais demorados, mas sempre sem tirar os olhos de mim, o português virou-se ligeiramente de lado e, com a mão esquerda, abriu uma gaveta. Dela retirou um revólver. Na verdade, um mísero calibre 22. Talvez aquela arma não fosse capaz de acabar com a minha raça, mas certamente me causaria algum dano.

– Escolhe, cão dos infernos! – berrou ele. – Bala ou faca?

Finalmente, compreendi a pergunta dele em toda a sua plenitude: altura, largura e profundidade. Aparentemente, ele não estava brincando. Queria mesmo saber se eu preferia morrer degolado ou fuzilado. Não era um dilema filosófico que me atraísse muito. Prefiro sempre discutir questões de menor transcendência. Como, por exemplo: por que o condicionador acaba sempre antes do xampu?

Naquele momento, pela primeira vez na vida, achei que realmente corria o risco de ser mandado para o beleléu.

Aí, me perguntei: que vim eu, descendente da brava estirpe dos centauros dos pampas, fazer nesta terra de árvores enfezadas e retorcidas? Vim para morrer nas mãos de um doido, de um lusitano lunático, de um lusitanático? Se vim para isso, por que gastei tanto com a passagem de avião? Por que não peguei um ônibus?

É assim mesmo. Quando se defronta com a morte, a gente faz um monte de perguntas. Por que não passei uma cantada na minha prima, aquela gostosa? Por que não fui morar em Florianópolis, que é a cidade preferida dos maconheiros gaúchos? Lá, pelo menos, tem praia.

Suspirei fundo.

Com um insano sorriso pendurado nos lábios, Manoel Joaquim Batota aguardava minha resposta. Faca ou bala? Nas provas da faculdade, eu não gostava de questões desse tipo. Preferia as de múltipla escolha, com possibilidade de três opções.

Pigarreei para ver se tirava da garganta o medo pegajoso que tomara conta dela ou de mim:

– Se pudesse escolher um tipo de morte, eu optaria pelo atropelamento, seu Manoel. Gostaria de ser esmigalhado por um caminhão carregado com pedras. Seria uma morte indolor.

– Indolor e sem graça, estúpido! Não passas de um simplório. Não te seduz o crime intrincado, ardiloso e requintado? O crime que faz jus às nossas origens latinas? A casca de banana na sala da velha perneta. O etanol na botija do cachaceiro. O cidadão claustrofóbico preso no elevador de um prédio comercial durante o fim de semana. O excesso de medicação dado pelo enfermeiro negligente. A sabotagem nos travões do carro.

Entusiasmado como político diante de câmera de televisão, o luso não parava:

– Pensa nos homicídios que nem chegam à polícia e nem aparecem nos jornais. Todo dia, no mundo todo, milhares de crimes perfeitos são praticados por pessoas comuns. Na verdade, não há nada mais excitante do que cometer um crime e nada se pagar depois…

– Aqui no Brasil não é bem assim – contestei. – Os ricos, é certo, sempre livram o pescoço. Só a chinelada vai em cana.

– Não se trata de dinheiro, lorpa! – atalhou-me. – Estou a falar-te de inteligência assassina. Conheço mulheres simples, lavadeiras ou faxineiras, que moem vidro para colocar no feijão-com-arroz dos maridos infiéis. Outras ateiam fogo aos barracos onde eles cozinham as bebedeiras. Tivemos uma camareira aqui no hotel que matou o marido com veneno de rato na farofa. Como ela moía muito o feijão, o desgraçado nem percebeu… Por acaso, já notaste que no Brasil o número de viúvas é mais expressivo entre as mulheres mais pobres?

– Não! – respondi, verdadeiramente surpreso.

– Pensa um pouco, palerma, naqueles crimes maravilhosos relatados pelos engenhosos escritores de livros policiais. Os assassinatos em série. O crime do quarto trancado à chave. O morto assassino. As crianças diabólicas. Os objetos com vida própria, que se movem.

– O senhor tem razão – disse eu, já francamente bajulador. – Realmente, a morte pode ser uma coisa de extremo bom gosto e sofisticação.

– Então, como podes tu, meu grande bobo, preferir a sensaboria de um camião carregado de pedras?

– Por causa da minha origem, doutor Batota. Nós, gaúchos, amamos a simplicidade até mesmo na hora da morte. Uma facada no bucho, um tiro na testa, uma paulada no cocuruto, uma capação sem anestesia. E pronto.

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12 – Argumentação a favor do serial killer

– Sim, Campestre, sei que os gaúchos são uns primitivos! Todo o mundo sabe! Porém, eu, nascido na pátria de Gil Vicente, Luís Vaz de Camões e Fernando Pessoa, sou um homem refinado. Por exemplo, para me deliciar com tua agonia, eu poderia agarrar-te pelo pescoço com a mão esquerda e, simultaneamente, com a direita enfiava teus dedos na tomada

– Sim, mas, nesse caso concreto, o senhor tomaria o choque junto comigo.

Às vezes, principalmente nos momentos menos indicados, sinto a tentação de ser didático. Quando permanece dentro de mim, sem ser compartilhado, o conhecimento me sufoca. Na verdade, amo a humanidade, gosto de dividir com ela minha inteligência. Ali, por exemplo, eu falava com conhecimento de causa. Formei-me rádio-técnico pela Escola Técnica de Pelotas e possuo razoável noção de eletricidade. Levei uns dez choques terríveis.

– Pois, palerma… Então amarrava-te os braços e as pernas e depois cortava-te os pulsos. E arrematava com golpes pequenos, porém profundos. Ficarias a esvair-te em sangue. Quantas horas pensas que seriam necessárias para ficares sem pingo de sangue?

Decidi, pensando estar já livre de funestos tormentos, dar trela ao gerente do Imperial Hotel da República. Como se sabe, todo maluco gosta de papo. Decidi espichar a conversa com ele até que aparecesse alguém para me socorrer.

– O senhor Batota tem toda a razão. O estilo é tudo em um criminoso. Mas eu, pela minha humilde extração, sou um bronco. Morte por morte, prefiro a bomba atômica. Uma só explosão leva milhares de pessoas desta pra uma melhor. Sem gritos, sem sofrimento.

– Deixa-te de parvoíces, meu estulto! Só ingênuos acreditam na existência da bomba atômica. Isso é mais uma das mentiras dos russos e americanos para assustar os babacas, como vocês dizem, do Terceiro Mundo.

Olhei espantado para Manoel Joaquim Batota. Aquela ideia era interessante. Sem dúvida, ele era um biruta acima da média. Prossegui:

– O que o senhor Manoel acha dos serial killers? – indaguei.

– São uns reputados imbecis que acabam apanhados e sempre mortos. A parte mais doce de um crime é justamente o momento posterior, ou seja, é o prazeroso usufruto da impunidade.

– Gosto dos serial killers porque sabem transplantar a eficiência americana para os morticínios em massa. Ninguém mata mais gente em menos tempo, gastando menos projéteis, que um americano,

Sem perceber a agudeza da minha argumentação, Batota virou o pulso que empunhava o revólver e consultou o relógio. Aproveitei para olhar o meu também. Estava curioso para conhecer a hora exata da minha morte, se ele decidisse afinal disparar. Faltavam dez minutos para as três da tarde.

Um calafrio percorreu-me a coluna cervical. Teria aquele bigodudo assassino predileção pelas horas redondas para praticar seus crimes?

– Vamos lá embora. O nosso Congresso está para começar – disse, de repente, o português e, empertigando-se, guardou o revólver na gaveta. – Passaste no meu teste de coragem. Sendo tu mais um tolo, nem és dos mais cagões.

Em seguida, num gesto rápido e elegante, ele recolocou o canivete gigante no bolso interno do paletó.

Uma onda de raiva subiu-me à cabeça. Maldito portuga! Tudo não passara de brincadeirinha. Pensei em baixar o braço nele. Mas desisti logo porque ele era – como dizem os gaúchos – mais reforçado que sapato de padre, mais pescoçudo que touro de exposição, maior que geladeira de açougue. Um armário, repito, como dizem em português de discoteca.

Durante o tempo todo da brincadeira eu permanecera firme, mas, no desfecho, aliviado, veio-me uma formidável frouxidão nas pernas. Manaram suores por todo o meu corpo e eu senti a urgente necessidade de recolher-me a um local privado.

– Cadê o banheiro? – perguntei. – Há um por aqui?

– Ali!

Batota apontou para uma porta onde se lia: “Perigo. Depósito de Produtos Químicos”.

Minutos depois, ainda mais aliviado, de barriga vazia, em companhia do gerente do hotel, deixei aquele maldito escritório.

– Quer dizer que vai haver mesmo esse tal Congresso? – perguntei-lhe, no corredor. – Pensei que não passava de um trote em cima do pobre Medalhão.

– A pensar morreu um burro da tua idade. Fui eu quem deu a informação ao Medalha, a esse grande camoniano, um excelente cidadão e cristão convicto. Nunca o enganaria.

– Sem dúvida, ele é um homem muito sensato e comedido.

Chegamos ao saguão de entrada.

Vários dos sujeitos engravatados tinham resvalado para o sono sonoroso.

– Estes pobres diabos aparecem de todos os cantos do país para tratar aqui em Brasília de problemas de seus municípios – disse Batota. – Mas nem sempre conseguem audiências nos Ministérios, e vão ficando. Vês aquele ali, com cara de índio? Vai fazer um ano que aqui está. É o Zé Tapajós, Veio de Macapaiutubanarema, ou coisa parecida, no Amazonas. Ouviram falar por lá que foi inventada a penicilina, O Tapajós quer umas doses, mas parece que o encarregado dos remédios no Ministério da Saúde foi para Inglaterra fazer um doutoramento.

Nem sei bem para que estava me contando aquilo.

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(cont.)


Sobre os autores (actividade literária)

Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

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