Durante cerca de dois anos, Helena Ferro de Gouveia acumulou funções de administração na Lusa e da Global Media, e ainda de directora de comunicação do Grupo Bel, mas deixou de estar nas graças do empresário Marco Galinha. A meio deste ano, a presidente socialista de Almada deu-lhe a mão e mais 3.075 euros de avença mensal. O PÁGINA UM quis saber o que faz a conhecida comentadora da CNN Portugal em terras almadenses, mas Inês Medeiros não explica, enquanto Helena Ferro de Gouveia ficou de indicar, mas sem concretizar, o contacto do advogado Rogério Alves para esclarecer as dúvidas sobre um contrato para fazer não se sabe bem o quê. Uma veniaga, em toda a sua aparência. Ou esplendor.
Na riquíssima língua de Camões, seria um esperdício – que também admite assim ser escrito, sem o D inicial – simplesmente catalogar com o corriqueiro ‘tacho‘ o cargo sacado na Câmara Municipal de Almada por Helena Ferro de Gouveia, a conhecida comentadora da CNN Portugal e ex-administradora da Lusa.
Em linguagem mais erudita, dir-se-ia até mais barroca, por ser coisa comum em tempos de antanho, poderíamos optar antes por prebenda, mas este termo, além de melhor se aplicar a benefícios eclesiásticos, terá, no país-irmão, o significado de tarefa sem préstimo, desagradável ou trabalhosa – o que não aparenta ser o caso das funções alegadamente desempenhadas por Helena Ferro de Gouveia, previstas por ajuste directo, em assessorar a edil socialista da Outra Margem, Inês de Medeiros. O mesmo para o uso de conezia, porquanto só por derivação pejorativa se usa em emprego rendoso e de pouco trabalho, uma vez que originalmente se associa à renda do canonicato de um cónego.
Enfim, as opções em português culto são imensas para qualificar o trabalho decorrente do contrato autárquico de Helena Ferro de Gouveia – depois que afastada foi, no início deste ano, da administração da Global Media e da direcção de comunicação do Grupo Bel, do empresário Marco Galinha. Todas, porém, com o risco de serem confundidas com outras acepções.
Por exemplo, se se considerasse que o contrato nº 11/2023, saído de um despacho de 7 de Junho deste ano da secretária-geral da Câmara Municipal de Almada, se tratava de uma tribuneca, logo viria alguém dizer que o termo é depreciativo quando referido a um tribunal ou periódico ordinário.
Restando assim outros termos similares, entre as quais mama e mamata – que sempre seriam pouco cavalheirescos –, acabou por se escolher, para título, a palavra veniaga que, podendo referir-se tanto a mercadoria como a comércio (legal e ilegal), também significa “emprego remunerado, de pouco ou nenhum trabalho”. Ou seja, encaixa na perfeição nas funções de Helena Ferro de Gouveia como assessora de Inês Medeiros na autarquia almadense. Além disso, sempre suscitará maior curiosidade aos leigos que só lêem títulos a buscarem o significado desta palavra num dicionário – isto no pressuposto de não pensarem que o título da notícia contém gralha.
Independentemente de tudo isto, vamos ao assunto. O ajuste directo celebrado pela autarquia de Almada em Junho passado com Helena Ferro de Gouveia, por um prazo de 884 dias e um preço contratual de 89.175 euros (IVA incluído), tem todas as condições para se transformar numa perfeita veniaga, na quarta acepção do termo explicitado no Dicionário Priberam.
De acordo com a cláusula 1ª, a actual comentadora da CNN Portugal terá de prestar “serviços de Apoio Técnico/Assessoria, na área da Comunicação ao Gabinete da Presidência”, mas “visando a satisfação de necessidades não permanentes”, e ainda mais “em completa autonomia técnica e sem subordinação nem sujeição a horário de trabalho”. Sem horas mínimas e sem horário. E sem tarefa concreta que se vislumbre.
Além de tudo isto, remetendo para um caderno de encargos que não surge, como deveria, no Portal Base, Helena Ferro de Gouveia, que vive numa freguesia de Odivelas, nem sequer precisa de atravessar a ponte de 25 de Abril: tem liberdade para trabalhar onde lhe indicarem, podendo a avença – com a remuneração mensal de 3.075 euros (IVA incluído) – resultar também em tarefas a serem realizadas por “telefone, correio electrónico ou outro meio acordado”, o que, não se excluindo, admite, em hipótese académica, o uso de sinais de fumo ou pombo-correio.
Tendo já decorrido quase cinco meses desde que Helena Ferro de Gouveia assessora Inês Medeiros – daí tendo já resultado o pagamento de quatro meses no valor de 12.300 euros –, o tempo poderia ter conseguido dissipar dúvidas sobre as funções em concreto desta antiga jornalista em terras de Almada. E, por esse motivo, o PÁGINA UM procurou, em detalhe, algumas provas do trabalho da assessora de comunicação de Inês de Medeiros, através da pesquisa das acções de Almada divulgadas na rede social Facebook.
E, de facto, nas inúmeras aparições em acção política da presidente socialista daquele município, pode-se ver a comunicadora a assessorá-la presencialmente por duas vezes: a sorrir enquanto Inês de Medeiros faz festas a um cachorro, em visita ao Centro de Recolha Oficial de Almada, em 28 de Julho; e numa foto de grupo numa limpeza de plásticos numa das praias da Costa da Caparica, em 18 de Setembro.
Para melhor esclarecimento, o PÁGINA UM enviou na passada terça-feira a Inês de Medeiros um pedido para que fossem indicadas “as funções, em concreto, que Helena Ferro de Gouveia já desempenhou desde o início do contrato”, e se o “seu trabalho tem sido [sobretudo] presencial, ou de outra forma”, e se se circunscreve à presidência ou também à vereação da Câmara Municipal de Almada. Não houve resposta.
[vd. adenda, em baixo, com mensagem enviada pela autarquia de Almada, dois dias após a publicação da presente notícia]
Contactada Helena Ferro de Gouveia, a actual comentadora da CNN Portugal, diz que não exerce aquelas actividades como jornalista, garantindo que, no contrato com a autarquia de Almada, “não há qualquer ilegalidade na prestação de serviços de assessoria”. E acrescentou ainda que, “em caso de persistirem dúvidas terei todo o gosto em indicar-lhe o número do meu advogado, Dr. Rogério Alves [antigo bastonário da Ordem dos Advogados], que lhe poderá prestar todos os esclarecimentos adicionais que possa necessitar”.
O PÁGINA UM, por considerar que seria necessário “esclarecimentos adicionais”, pediu a Helena Ferro de Gouveia que indicasse então o contacto de Rogério Alves, mas tal não foi feito, aguardando-se ainda essa informação.
Recorde-se que a saída de Helena Ferro de Gouveia da esfera dos negócios de media de Marco Galinha – que a levaram à administração da Lusa e da Global Media, dona do Diário de Notícias, Jornal de Notícias e TSF – fez-se com algum estrondo, tendo chegado a trocas de ‘galhardetes’ na rede social X em Setembro passado.
Helena Ferro de Gouveia escreveu então que a sua “posição relativa à guerra da Ucrânia custou-me o emprego” (na Lusa, Global Media e Grupo Bel), o que levou o empresário, seu ex-patrão, a ameaçar divulgar e publicar “as razões todas” para o seu despedimento, e acusando-a de “mentiras e falsidades”.
A comentadora da CNN Portugal ripostou, aludindo a um “processo de assédio moral e laboral” que lhe terá sido movido por discordar de Marco Galinha, e garantindo que não seria silenciada.
ADENDA: Na segunda-feira, dia 13, pelas 15:48 horas, seis dias após terem sido pedidos esclarecimentos, o PÁGINA UM recebeu a seguinte mensagem, por e-mail, de Bruno Gabriel, chefe de gabinete de Inês Medeiros, presidente da autarquia de Almada: “No seguimento do pedido de informação infra, informo V. Exas. que a Assessora do Gabinete de Apoio à Presidência da Câmara Municipal de Almada, Helena Ferro de Gouveia, desempenha as funções de Assessora de comunicação e imprensa, neste gabinete. As referidas funções de assessoria incidem, especialmente, na preparação e acompanhamento das intervenções públicas da Senhora Presidente da Câmara, ou quaisquer outras indicadas por esta. O trabalho prestado assume um caráter presencial, ou à distancia, variando consoante as necessidades identificadas.” Ou seja, nada mais acrescenta ao que consta no contrato e à notícia do PÁGINA UM.