a deriva dos continentes

Antes de mais nada, R-E-S-P-E-C-T

Closeup Photography of Chameleon

minuto/s restantes

Deus dá-nos as nozes mas não é Ele quem as parte.

Provérbio transmontano


Homenagem a Maria Antónia Fiadeiro,

Onde se contam as histórias

Ocultas até hoje


Convocámos este título inconfundível porque, já que aqui chegámos, aproveitamos a embalagem e, de caminho, homenageamos também a Grande Arietta Franklin. Pode não ter queimado um único sutiã, mas exigiu respeito a vida inteira. Tinha a voz perfeita para isso, e a legitimidade de um passado em que os avós eram escravos. Nunca militou por causas especificamente feministas, mas – ah. Que grande sobressalto causava a sua presença enorme em palco. Era o tipo de presença que nenhum homem poderia alguma vez vir a ter. Era o tipo de presença que ensinou à nossa geração umas lições muito sérias que nós, felizes e estouvadas, bem precisávamos de aprender. Porque era o tipo de presença que só podem ter aquelas que, como Arietta Franklin, ergueram o queixo e, muito naturalmente e muito assumidamente, foram m-u-l-h-e-res muito grandes. And hey, now you deal with it[1].


Quem muda seja o que for no mundo racista, chauvinista, paternalista e sexista da música soul está evidentemente a mudar alguma coisa no mundo. Sendo assim, claro que o mundo foi mudado por esta mulher enorme que entra em palco de visom comprido, seguida por um coro de Gospel. Vai sentar-se ao piano, solta de lá aquela voz rouca de timbre assombroso que já tinha aos catorze anos, canta até chegar ao clímax final, começa a subir com o coro por trás e vamos lá, “you make me feel like a natural woman – a woman – a woman – a woman – a wo-o-o-o-man!” – e, na batida em crescendo da música, franze as sobrancelhas, salta do piano, agiganta-se de pé no palco, levanta os braços, e – ó momento! – despe e atira para o chão o seu casaco de vison, enquanto o coro explode em harmonias atrás da sua voz sempre firme. No camarote presidencial, Carole King[2] vai ter um AVC a qualquer momento. Michelle, nessa noite linda de morrer, levanta-se sobre o voo do casaco e desata a aplaudir como quem dança. O Primeiro Presidente Negro dos Estados Unidos encostou a cabeça ao espaldar do cadeirão e secou uma lágrima[3].

Arietta foi aqui chamada como termo de comparação para a portuguesa Maria Antónia Fiadeiro, que eu ouvi cantar várias vezes quando ela se juntava ao meu bando nas nossas noitadas ocasionais de aventura pós-laboral conjunta[4]. A sua voz também era rouca, as suas harmonias também eram certas, as suas notas também eram firmes. Quando íamos aos fados vadios mandávamo-la para a frente nas desgarradas, e as suas quadras de improviso tinham sempre um duplo sentido latente, promissor e ardente[5]. Íamos sentar-nos no alto das colinas, a ver as luzes dos barcos no rio, e ela nessas noites punha sempre uma boina. Até que houve uma noite particular, numa esplanada enorme que existia nessa altura ao cimo do Bairro Alto, onde já chegámos todos completamente mocados e nas duas horas seguintes nos estivémos a deliciar com muita cerveja, muita conversa boa, e muitos peixinhos da horta inacreditáveis que se serviam ali naquela altura.

Maria Antónia Fiadeiro (1942-2023) numa entrevista à RTP em 2003.

Nessa noite, e apenas nessa noite, tinham aparecido mesmo no fim do espectáculo alguns Portugueses Muito Importantes. Os outros Portugueses estavam a bater-nos palmas quando se ouviu dizer que íamos fazer um encore para os recém-chegados. Ficou mais gente, entrou mais gente, nós não percebemos nada mas éramos miúdos – repetimos tudo. Fomos para os peixinhos da horta estafados e felizes, comemos e bebemos e falámos, a Fiadeiro presidiu com graça e sabedoria, e por fim toda a gente bazou.

Estava a nascer uma linda madrugada.

 Foi quando ela me piscou o olho com um sorriso quase tramado mas quase infantil, e me falou quase ao ouvido.

Gosto de ir ver o teu espectáculo de boina, sabes. O Fernando diz que vocês descarregam uma tal energia sexual para cima das pessoas que mais cedo ou mais tarde o bar inteiro vai acolher um verdadeiro bacanal. E eu não tenho vinte aninhos, como tu, nem uma carinha laroca, como a tua. Preciso de uma boina. Vais ver. Quando estou de boina, sou uma mulher muitíssimo mais atrevida.”

Não tinha medo das palavras, a Maria Antónia. Pagou centenas de vezes o preço por isso, mas continuou a usá-las com bravura e beleza, de forma limpa e directa desprovida de rodeios, uma forma de falar das coisas que em grande medida eu aprendi com ela.

É verdade, eu tinha na altura uns 25 ou 26 anos. Ela podia ser minha mãe, e além disso eu era uma miúda e ela era uma grande estrela do nosso firmamento cultural. Metemo-nos a trabalhar juntas num projecto para o Diário de Notícias que também incluía a Antónia de Souza, e quem me convidou para integrar a equipa foi “a Fiadeiro[6]”. Uma porreira, na minha linguagem.  

Convidou-me porque gostou de mim, da minha maneira de falar[7], e das minhas ideias sobre o mundo e sobre as pessoas, numa entrevista que me fez para o Diário de Notícias em 1985, assinalando o momento em que acabei o curso de Biologia, fui dar aulas de Embriologia para a Faculdade de Medicina de Lisboa, comecei a fazer investigação de doutoramento no Instituto Gulbenkian de Ciência, e, para grande surpresa dos meus colegas, continuei a publicar livros e a escrever crónicas mas abandonei as salas de redacção dos jornais. Ora isto, já de si, é absolutamente notável. Só uma mente brilhante como a dela se lembraria de propôr um trabalho destes ao director do maior jornal diário da capital. A grande estrela entrevista o pequeno cometa que vai a passar? Não senhor, não é costume.

Número 3 do Cadernos de Reportagem, editado pela Relógio d’Água no final de 1983, sob direcção de Fernando Dacosta-

Como é evidente, foi a primeira grande entrevista que eu dei na vida.

Que diabo, eu tinha 25 anos.

E ela não era mesmo  de pestanejar nem hesitar.

Às tantas eu estava a falar-lhe da festa do amor e do prazer[8], e da importância da felicidade em cada um dos nossos dias e cada uma das nossas tarefas.

Consideras-te uma hedonista?

O que é que eu havia de responder?

Sim.”                   

Logo a seguir, a grande estrela conseguiu, finalmente, convencer o director a deixá-la formar uma equipa feminina para produzir uma série de reportagens sobre “A CONDIÇÃO FEMININA – HOJE”. E nem sequer hesitou, convidou logo o pequeno cometa para essa equipa. Gostou da entrevista e basta.

A sério:

O pequeno cometa estava todo a tremer quando chegou a casa e contou tudo isto ao marido.

O marido encolheu os ombros.

Vocês reparem.

Ao mesmo tempo que a Maria Antónia tinha estes gestos rasgados de generosidade para comigo, eu sabia perfeitamente que os outros jornalistas andavam antes muito ocupados a garantir uns aos outros que eu ia para a cama com toda a gente e mais alguém[9] para conseguir fazer tudo o que fazia. Era uma explicação sumária tão tentadora que o Meguinha, à época já meu marido, não resistia a usá-la ele próprio de vez em quando.

Um dia apanhei-o em flagrante delito de cair exactamente nessa tentação mesmo à minha frente[10], e à noite cheguei derreada a casa da Antónia de Souza, em Campo d’Ourique, onde estava marcada a nossa sessão de trabalho para essa semana. Bem, nessa altura já me sentia tão segura com elas duas que desabafei logo na entrada. É que se fosse só o Meguinha, não é? – pronto, seria arrevezado, mas poderíamos imaginar que tínhamos entrado por engano dentro de um romance do Choderlos de Laclos. Elas riam. Mas é que não era só o Meguinha, eram todos os jornalistas, homens e mulheres, oh!, que horror. Elas olharam uma para a outra, e depois recomeçaram a rir. Eu já estava a esticar o beicinho, e foi quando a Fiadeiro me empurrou o braço com o cotovelo, me piscou outra vez o olho, e falou comigo em verdadeiros words of wisdom.

Clara, essa gente toda que te imagina na cama com outra tanta gente para chegares onde eles não sabem mas tu sabes que queres porque és pérfida e manipuladora sem ter ar disso[11] – por favor, tem pena deles.” São uns desgraçados.”

Biografia de Maria Lamas, escrita por Maria Antónia Fiadeiro.

Sorriu para mim.

Podia ser minha mãe.

Só que a minha mãe nunca seria capaz de me dizer aquilo.

Já imaginaste bem a quantidade de pessoas com quem essa gente toda já foi para a cama a tentar chegar onde quer – e nunca conseguiu chegar a lado nenhum? Coitadinhos, queres que não digam mal de ti?

E então, de repente, vi uma data de gajas todas produzidas a tentarem engatar uns magnatas da televisão que nem olhavam para elas, pelo que acabavam por tirar a roupa para um qualquer técnico de som bexigoso que estava a mastigar pastilha elástica. Vi uns comentadores desportivos já meio carecas, esquecidos da questão de tirar as meias, num esforço patético para dar prazer a umas mulheres desagradáveis com todo o ar de quem não ia dar-lhes nem um quarto de hora nas cenas a cores de domingo[12]. Até vi uns jovens escritores a apanharem em cima com o peso de um editor obsceno que lhes bradava obscenidades e eles só queriam chorar. Vi isto tudo muito depressa, mas não suficientemente depressa, porque, entre a sugestão e o sorriso que a Fiadeiro me oferecera, já estava mas era a rir, a rir, a rir.

Ela sabia cortar a direito, sabia separar as águas, e tinha este dom.

Sabia consolar meninas de vinte anos.

Desse projecto A CONDIÇÃO FEMININA – HOJE[13], devo-lhe ainda mais uma dádiva rara por demais.

Na nossa primeira reunião de projecto, com o território ainda todo virgem à nossa frente, tínhamos que começar por escolher um formato para a série. E eu, por acaso, na noite anterior já tivera uma ideia. Sabia que era uma ideia um bocado extemporânea, mas que se lixe. De certeza que a Fiadeiro não me escolhera para que tudo ficasse na mesma.

Bom, minhas senhoras, eu tenho uma proposta. Posso?

Elas olharam para mim de sobrancelhas levantadas e expressão curiosa.

Podíamos pegar nisto pelo lado da ilusão: as mulheres pensam que as coisas mudaram, mas, na realidade, as putas das coisas nunca mudam. Nunca há mulheres presidentes nem mulheres primeiros-ministros, não é? Mas esse é o lugar-comum previsível. Nós vamos antes explorar o quotidiano das mulheres normais e mostrar como elas foram enganadas com a conversa da mudança. Ambos trabalham, mas em casa o homem vê televisão e a mulher cozinha, limpa, e trata dos filhos, estão a ver? Se eu vier a sair do bar no Bairro Alto depois de ter feito o BOA NOITE LUA NOVA e estiver a voltar para casa às quatro da manhã, e me sentir tão feliz que paro num banco da Praça das Flores para fumar um charrinho, o mais provável é que seja atacada por um tarado qualquer porque sou uma mulher que está sozinha à noite num banco de jardim e portanto sou uma puta, e só me resta resolver aquilo ao soco[14], o que já me aconteceu e aposto que não aconteceria a um gajo, e aliás é o mesmo que me acontece quando estou sozinha na estrada a pedir boleia, outra coisa que qualquer homem poderia fazer sem ter o mínimo problema. Se não temos quotidianos iguais, não temos paridade. A minha sugestão é cada uma de nós inventar uma mulher, com as suas características físicas e mundo pessoal próprios, que passa pelas situações em que estarão as nossas entrevistadas. Senão, se estas mulheres puderem ser identificadas com nome e apelido, vai ser terrível para elas.

Hm,” disse uma.

Hm,” disse a outra.

Franziram as duas as sobrancelhas com uma expressão intensa.

E fez-se um grande silêncio.

Era evidente que elas não tinham gostado da minha ideia.

Se calhar eu não me tinha explicado bem.

Provavelmente tinham ficado ofendidas de morte quando eu disse que a nova liberdade das mulheres – essa nova liberdade pela qual elas haviam lutado a ferro e fogo durante quase toda uma vida – andava mais perto das miragens que dos oásis que íamos cruzando na nossa grande e conjunta travessia do deserto.

Batia-me de repente o coração com mais força.

Por fim, a Fiadeiro fez um sorriso tramado e deu uma cotovelada muito sabida à sua velha camarada de armas de Souza.

A minha mulher,” declarou ela, “vai andar sempre a cavalo e chamar-se Madalena.

Pausa dramática.

E não está arrependida de coisa absolutamente nenhuma,” concluiu, mais poderosa do que nunca. “É um cavalo musculoso, de grandes crinas, que é todo negro e que se chama Trovão!

Ah,” juntou-se-lhe a outra num tropel digno do Trovão. “Nesse caso a minha chama-se María Helena e veio de Madrid a fugir à Espanha de Franco e trabalha em publicidade mas como não consegue falar português sente-se ainda hoje um bocado inadaptada!”

Desta vez a grande estrela estava a aceitar uma sugestão de formato avançada pelo pequeno cometa, o que era uma lição de modéstia de se lhe tirar o chapéu. E mais: estava a aceitar uma sugestão que implicava cruzar factos jornalísticos com personagens de ficção criados para proteger as fontes, uma técnica até então raramente utilizada[15], e ainda hoje extremamente polémica dentro da Comunicação Social. O género de técnica que ou se usa muito bem ou descamba no puro desastre. Ela estava a aceitar correr grandes riscos por sugestão minha.

As outras pessoas falavam sobretudo da sua seriedade, e neste número podemos incluir até os seus filhos; mas, para lá de toda essa montanha, estava escondido um mar verde cheio de ondas redondas e de espuma branca: eu achava-a divertidíssima. E isto devia-se, sobretudo, à limpidez da sua sinceridade.

Uma vez o trabalho era só entre nós as duas, os dias estavam a começar a ser cada vez mais compridos, pairava sobre Lisboa uma brisa balsâmica de Verão, e eu estava apaixonada já nem sei por quem. Não é isso que interessa, foi um caso brevíssimo, mas a verdade é que o amor nos faz flutuar uns bons centímetros acima da calçada dos passeios e nos faz cintilar a pele. Entrei no Bairro de São Miguel positivamente feliz, sorri para o murmúrio dos ramos das árvores, alonguei o passo pela sombra e respirei fundo. Cheguei a casa da Fiadeiro, toquei à campainha, e ela abriu-me a porta envolta pelas trevas do interior.

Olhou-me imediatamente de alto abaixo, enquanto eu lhe acenava com toda aquela luz de Verão a iluminar-me. Tinha feito uma trança que já começava a desfazer-se em caracóis, trazia a franja por cima dos olhos, e tinha as pernas de fora e o umbigo à mostra dentro de um conjuntinho top-shorts arrancado em grande triunfo de uma pilha da Feira de Carcavelos[16], todo ele amarelo-canário e com uns grafitti pretos e vermelhos à frente numa caligrafia que supostamente era cirílico.

Pois é, Clara.”

Voltou a olhar-me de alto a baixo enquanto eu entrava e ia direita à cozinha, onde começávamos sempre por tomar café. Riu-se.

A questão é que vocês, agora, já nascem assim. Já nascem todas elegantes. Podem andar para aí sem sutiã e de pernas de fora… tu, por exemplo, tu podes, tu assim ficas tão linda… A Lena d’Água… a Lena d’Água  também fica linda. Nós, na minha geração, nascíamos sempre de perna curta e anca parideira, como é que nós podíamos…”

Deitou-me outra vez aquele olhar de medir tudo, ao mesmo tempo que começava a gesticular com grande veemência, como se estivesse a imaginar-se a si própria, e a todas as suas amigas feministas, dentro de um top-shorts amarelo-canário com dizeres em russo. Sem sutiã e de umbigo de fora.

Oh, como é que nós alguma vez poderíamos!

A gente deve estes corpinhos à Revolução,” disse-lhe eu. “Não houve nada em Portugal que não mudasse.

E custou-nos bastante beber aquele café, porque estávamos constantemente a desatar a rir.

 O ano passado, a 30 de Março, os dois filhos da escritora publicaram na Edições Caixa Alta, que receberam o projecto de braços abertos, o livro ARTISTAS ARTESÃS PIONEIRAS: conversas singulares entre mulheres extraordinárias, com entrevistas da Fiadeiro a várias outras mulheres por vários pretextos. A ideia original foi dela, grafismo e sequência incluídos. Começou a preparar tudo muitos anos antes da data da publicação, e quando estava tudo pronto nenhuma editora teve o arrojo de pegar num livro que é também uma obra de arte: são 565 páginas grandes de capa dura, cheias de grandes histórias, onde  tive a honra de ver incluída esta entrevista que me pôs ao colo das feministas, e que ela intitulou A INTELIGÊNCIA É O RECONHECIMENTO DA COMPLEXIDADE DAS COISAS[17].

O ano passado o livro assinalava a data da morte da Maria Antónia, que nos deixou a 30 de Março de 2023 com uma paragem cardio-respiratória que chegou às dezanove e cumpriu o seu curso às vinte. Nenhum dos dois filhos estava em casa, portanto nunca saberemos se ela descobriu ou não que estava a ir-se embora. Acontece que este seu último livro, uma belíssima oferta que ela deixava ao povo português, saiu em plena pandemia. Quase ninguém o viu. Portanto, este ano, celebrando o primeiro aniversário da sua morte, a Caixa Alta e os dois filhos da Maria Antónia organizaram uma verdadeira festa de lançamento para os quinhentos exemplares da segunda edição, muito apropriadamente no dia oito de Março, na Biblioteca Municipal de Belém, dentro da sala do Núcleo Feminista Ana Osório de Castro que tem o espólio todo dela. E desta vez cada entrevistada pôde, por fim, ler o trecho da sua entrevista que mais lhe falou ao coração.

Ou à cueca, vá. No meu caso, entenda-se. A Fiadeiro não era piegas, e eu agora tenho a obrigação de ser hedonista.

Ainda ao jeito de homenagem, este livro/ obra de arte estará nas montras das livrarias a partir de dia 30 deste mês, um ano depois da morte da sua autora.

E segue-se um brinde muito pessoal aos construtores do livro, com toda a minha ternura.

Se querem saber como é que eu, ainda hoje, vejo a Maria Antónia Fiadeiro, pois bem – tal como aos vinte anos, vejo-a igual à WonderWoman[18], a minha grande heroína dos comics. Tinha a sabedoria de Atena e o poder de Afrodite para inspirar amor. Era mais rápida do que Mercúrio e mais forte do que Hércules. Na sua república feminina  na Ilha do Paraíso, um refúgio criado pela cultura das Amazonas, protegido dos intrusos por um campo magnético de pensamentos que o mundo conhece como Triângulo das Bermudas, desenvolvera naturalmente os seus poderes assombrosos treinando-os desde a infância com as suas outras Irmãs Amazonas, em concursos de perfeição, força, e velocidade, modelados pelos combates da Grécia Clássica. Tudo isto nos passava a mensagem de que cada uma de nós pode ter em si poderes secretos, desde que acreditemos neles e os treinemos[19]. Eu, pelo menos, agradeço a Deus ter treinado tanto com ela.

Sim, é verdade. Nem todos os detalhes colam. Não sou feminista. Mas teria que ser? Acima de tudo, sou mulher. Vivo sozinha no Alentejo[20]. Ia escrever “os homens podem viver sozinhos à vontade que ninguém os chateia,” mas isso não é verdade – os homens não aguentam viver sozinhos. Precisam sempre, sempre, sempre de uma mulher que lhes faça companhia e trate deles. Quando são mais novos e lhes estoira o casamento escrevem imediatamente um livro de       catarse e saltam de bar em bar até arranjarem namorada. Quando são mais velhos atrelam-se sem hesitações nem demoras ao Grupo Excursionista mais próximo. Em ambos os casos, o padrão não muda. Um homem sozinho considera prioritário arranjar uma mulher ao seu serviço.

Mas eu, que sou uma mulher, há uns bons vinte anos que vivo sozinha.

A Maria Antónia treinou-me maravilhosamente para este tipo de travessia.                                      

Conheço muito bem o Inferno, e não faço juízos de valor.

WonderWoman saves the day.

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


[1] Nestas circunstâncias, a expressão pode traduzir-se livrement por “Hey, e agora aguentem-se à bronca.”

[2] Co-autora, juntamente com o seu então-marido, da canção “(YOU MAKE ME FEEL LIKE) A NATURAL WOMAN”. Sempre considerei a canção, enfim – simpática para quem gosta do género. Mas isso foi só até ouvir a rendição de Ms. Franklin com o seu longo vison, o seu piano, e o seu coro de Gospel.

[3] Este concerto, com este momento inesquecível, está postado no YouTube. Sugestão obrigatória para quem ainda não viu e não conhece as mulheres.

[4] SURPRESA!

[5] Nunca me esqueci de uma quadra que ela cantou nos fados da Rua do Diário de Notícias e que fez o jovem muito bem parecido com quem ela foi a despique desistir logo: “Não cantava à desgarrada/ Desde  a minha mocidade/ Mas cada um de nós chora/ Por onde tem mais saudade.” Digam-me lá, quantos níveis de leitura poderia aquilo ter. Chora por onde tem saudade? Ah-ah-ah. Grande danada.

[6] Na imprensa tratávamo-nos todos pelo apelido. Durante anos e anos, até desaparecer nas neves eternas de Buffalo, eu fui “a Pinto Correia”. Razão pela qual sempre tratei por Meguinha o António Mega Ferreira, a quem nunca chamei António: quando ainda não o conhecia mais intimamente, tratava-o por Mega, como toda a gente fazia. Depois do nosso casamento aquilo esteve quase a descambar porque o “Meguinha” ainda passou a “Guinha”, e o “Guinha” chegou a ser “Gui”. Depois caímos na real e emendámos rapidamente a mão. Ah, e ele nisto dos nomes foi um porreiro. Nunca me tratou por “Pinto-Correia”. Incapaz de pronunciar o terno “Clarinha” do comum dos mortais, informou-se quanto a antecedentes familiares e começou rapidamente a tratar-me por “Pretinha”. Que bom. Sempre foi a minha alcunha preferida.

[7] A minha maneira de falar era um interesse sério para ela. Considerava-a importante para abrir novos caminhos à linguagem. Nesta entrevista, incluída neste seu livro, nota-se que faz um esforço considerável para deixar transparecer a minha autêntica voz – veja-se o uso de “porreiro”, “cenas”, “partir para outra”, “piroso”, “que nem uma besta”, tudo termos que de outra forma ela não usaria.

[8] Parafraseando Jorge Palma, já que estamos nisto dos porreiros.

[9] Visitantes estrangeiros de passagem incluídos. Vim a saber de alguns casos absolutamente fulminantes.

[10]Vai acampar? Vai acampar no Inverno? Eles vão todos acampar no Inverno? Com chuva, lama, geada, e o frio que tem estado? Querem uma história mais mal contada? Reparem, eu acredito que ela vá para Águas de Moura. E basta. Deve haver lá uma pensão manhosa para brincadeiras com assistentes. Basta afundar o Carocha na lama antes de voltar para casa. Enfim, Matilde. Tenho um fim-de-semana sossegado para ler e ouvir ópera.” E a restante redacção do JL ria com as mímicas do Meguinha, mas é queria, ria, ria. Cabrões. Eu era tão jovenzinha que fiz uma cena canalha através da porta, gritei “Meguinha!”, e, quando toda a gente se calou, abri mais a porta e acrescentei: “Nunca mais escrevo para o JL!” Por acaso nem sei se estou arrependida. Imaginemos, por exemplo, que um dia a vida é um filme.

[11] A Maria Antónia falava muitas vezes assim, como se estivesse a ler as suas próprias frases já impressas no seu novo livro. Era impressionante.

[12] É verdade, malta. Se não quiserem acreditar não acreditem, mas eu já estava quase a fazer vinte anos quando apareceu a televisão a cores.

[13] Trabalhámos imenso, e com muito gosto, mas ficou pelo caminho. Eu fui para Buffalo. Elas não quiseram continuar a trabalhar sem mim. De certeza que a culpa foi do formato.

[14] História verdadeira.

[15] A primeira vez que isto se usou em grande escala foi numa grande série de quinze reportagens sobre AS FAMÍLIAS PORTUGUESAS que eu, o Fernando Dacosta, e o António Duarte fizémos para O JORNAL. Protegidas por alter egos, as pessoas diziam mesmo tudo o que lhes ia na alma – e verificou-se então que tinham, de facto, muito para dizer. A série deu tanto brado que tive entrevistados refugiados durante meses em minha casa, entrevistados que ainda hoje não me falam (“mas queres mesmo dizer isso em público?” – “quero!” – “mas?” – escreve! escreve!” – “olha, saiu hoje.” – “cabra! por tua causa tive que ir a um psiquiatra pela primeira vez na vida!”), e, decerto, pessoas que ainda hoje cruzam a rua para virem falar-me de alguma coisa que então leram e lhes falou particularmente ao sentimento.

[16] Eu sou do tempo eu que nasceu a Feira de Carcavelos, recheada de roupas fantásticas que Portugal nunca tinha visto antes e que não estavam à venda em mais lado nenhum. Tudo ao preço da chuva, e ainda passível de se regatear, uma arte que eu adoro. Nesses primeiros anos, eu e as minhas amigas levantávamo-nos às seis da manhã para reunir no meu carro, ir, comprar, mostrar umas às outras, tomar café, rir imenso, voltar, e estar às nove no trabalho com um ar todo impecável. Eu ia a guiar, por isso não podia trocar de roupa no carro durante o regresso. Mas havia até quem fizesse isso.

[17] Isto foi uma frasezinha que eu soltei no meio de torrentes de palavras para ilustrar a complexidade do mundo vivo. A Maria Antónia fez logo um título bestial com ela. Um daqueles chauvinistas que pululavam nos jornais teria antes feito logo um título tipo “Parti para outra”.

[18] Na minha geração ninguém lhe chamava “Mulher-Maravilha”. É bué foleiro.

[19] Parafraseando Gloria Steinem, outra grande fã (e até estudiosa) da WonderWoman.

[20] OK, OK, reconheço, vivi sozinha em vários outros sítios. Tive chatices, como as que tive quando andava à boleia. Mas isto aqui é um padrão. Estão a ver a diferença?


PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.

Alterações Mediáticas, o podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como ...