história natural

A (renovada) luz que vos baptize: ‘corrigenda’

a group of ants on a table

por Clara Pinto Correia // Fevereiro 18, 2024


Categoria: Cultura

minuto/s restantes

Ó cores virtusis que jazeis subterrâneas
Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize
Represados clarões, cromáticas vesânias
No limbo onde esperais a luz que vos baptize

As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis

Camilo Pessanha

POEMA FINAL

in CLEPSYDRA (1920)


A SABEDORIA PERDEU-SE, OU ENTÃO AINDA NÃO CHEGOU[1]


Caros leitores, é frequente as grandes estreias acabarem por funcionar como ensaios-gerais. Pensávamos que estava tudo perfeitamente afinado, mas depois foi isto, foi aquilo, foi o raio que o parta – tudo bem, passa-se à frente e faz-se melhor na vez seguinte. Há quinze dias, na estreia da nossa nova rubrica de História Natural “A LUZ QUE VOS BAPTIZE[2],” acumularam-se diversos problemas mas o último foi o pior e era assaz impensável – desapareceram as duas últimas páginas, deixando a frase completamente sem sentido, o parágrafo francamente desiquilibrado, e a peça muito coxa[3]. Ainda por cima, eram os dois parágrafos que concluíam a história de como herdámos a ciência dos dias de hoje.

No ensaio-geral passado, falávamos da angústia que o Homo sapiens sentiu há duzentos mil anos quando se diferenciou das outras oito espécies do género Homo ao desenvolver no cérebro um lobo frontal pensante[4], e, como tal, ficar a braços com centenas de perguntas que não tinham resposta – como, por exemplo, “quem é que vai à noite acender todas aquelas fogueiras no céu?[5]”.

blue and white starry night

As primeiras respostas para as estrelas, para a dança do sol com a lua e da lua com as marés e tudo isto pelos vistos com o sangue menstrual, para a diferença entre a água e a terra e entre o ar e o fogo, para o rodar das estações e para a penúria que alterna com a abundância – para tudo o que se perguntou nas primeiras palavras da linguagem articulada, a primeira resposta esteve na mitologia.

O problema é que ninguém trava guerras por mitos.

A mitologia tornou-se muitíssimo mais compreensível, e portanto muitíssimo mais acessível ao consuno de massas, quando se transformou em religião.

E, agora sim, a última parte, aquela que ficou de fora…

Há por fim uma terceira transição que se baseia no saber mais complexo[6] acumulado ao longo do caminho. Em relação às outras duas, esta terceira  mudança dá-se quase num piscar de olhos. E, desta vez, está baseada em estudos tão matematicamente afinados, e  também tão universalmente comprováveis, como, por exemplo, as investigações de Newton sobre os poderes da gravitação universal.

Quer isto dizer que nasceu, por fim, a ciência moderna?

Não foi, certamente, aquela ciência moderna que se imaginaria num primeiro instinto.

A gravitação universal é o exemplo perfeito deste fenómeno.

person doing gravity lean on the shore

Era uma força tão perfeita, e pelo que se compreendia tão fantasticamente eterna, que foi tomada pelo próprio autor desta primeira Física do Universo como a face visível de Deus.

Nature and Nature’s laws

Lay hid in the night

God said: LET NEWTON BE!

And all was light,”[7]

escreveu Alexander Pope como epitáfio para o amigo. E o amigo de Pope, quando falou pela primeira vez da Gravidade no glorioso PRINCIPIA[8], referiu-se bastante mais à Bíblia do que à Matemática, e bastante mais aos Profetas do que à Física[9].

Toda a fina flor do Século das Luzes concordou com ele, as traduções do PRINCIPIA para várias línguas europeias feitas por grandes nomes da época foram imediatas, e este esforço incluiu o famoso NEWTON PARA SENHORAS, financiado pela incansável filantropa científica Madame de Châtelet.  Esta senhora teve também para a nossa cultura o benefício de ser tanto amante quanto inspiradora de Voltaire, que compôs diversos trabalhos na mansão de campo que a sua musa mantinha nos arredores de Paris e à qual dera o nome de  LE JARDIN DES DÉLICES, mas enfim – não estamos aqui para escrever colunas sociais da !HOLA!, ao melhor estilo “la cantante nos recibe en un rincon de tranquilidad de su finca,” mesmo que disfarçadas sob o manto diáfano da informação interessante relativa à história do pensamento científico[10]. Todo este entusiasmo, todo este uníssono, vieram depois a inspirar vários autores a escreverem livros simples sobre a Gravitação Universal que não exigissem grandes conhecimentos de Física ou de Matemática[11]. E algum europeu culto poderia sentir-se mais iluminado do que pensando pertencer ao grupo daqueles que, por fim, haviam sido capazes de encontrar e entender a forma como Deus se mostrava à humanidade?

a chalkboard with some writing on it

E é assim, depois de centenas de anos de estudos e explorações, que, a partir da mitologia, e depois da religião, começa, por fim, a nascer a ciência.

Eu disse uníssono?

Como toda a gente sabe, uníssono é fenómeno que a História desconhece.

Este regresso radioso de Deus ao coração mais moderno da Ciência foi, logo no século XVIII, motivo de irritação profunda para grandes matemáticos como Huygens e Leibnitz, mortificados por verem os seus pares voltarem a mergulhar nas cantigas de boa métrica e melhor rima em que o príncipe e a princesa se casam, têm muitos filhos, e são felizes para sempre. E todas estas tolices, ainda por cima, depois de se seguir à voz de Descartes um século inteiro de esforços incessantes de fazer uso da física e da matemática para proporcionar à população europeia o uso puro e liso da razão.

Se há bipolaridade perfeita no pensamento europeu é a que tem a geometria de Descartes de um lado do espectro,[12] e os milagres divinos de Newton do outro lado. Estas duas atitudes estão num raio de oposição sobre o verdadeiro significado do arco-íris que não precisa de mais de cinquenta anos para se extremar por completo. E a conclusão não podia ser outra. Já bastante entrado nos anos, Descartes acaba por não ter patronos que continuem a financiar a sua geometria onde os homens só precisam do seu próprio pensamento para poderem existir. Sendo assim, não está em condições de recusar o convite da Rainha Cristina para se juntar à sua corte de sábios exilados no frio da Suécia, a mesma que, entre muitos outros nomes brilhantes, vira há pouco tempo passar o Padre António Vieira. Cristina andava fascinada com a localização da epífise, o ponto onde a alma se prende ao corpo, que Descartes, na sequência de investigações anatómicas aturadas, considerara localizar-se entre os dois hemisférios do cérebro, mais precisamente na glândula pineal[13]. Teria sido um belo tema de conversa se não fosse dar-se o caso de a rainha ter grandes insónias e querer falar com o seu grande sábio a altas horas da noite. Não sei se estão bem a ver. Suécia. Um castelo. Tudo em pedra e pés direitos altíssimos. Neve e gelo por todo o lado. O pobre sábio, idoso e estremunhado. Foi assim. Descartes morreu de pneumonia na corte da Rainha Cristina. Ninguém sabe onde é que a alma se prende ao corpo. A seguir morre Newton. Os ingleses vêm para a rua ver passar o seu caixão, num Funeral de Estado todo ele feito de pompa e circunstância. Ou, francamente – de que é que julgam que o povo gosta?

black mountain bike

A mente humana não suporta os caminhos exigentes.” vituperou Leibnitz numa das suas cartas a Huygens. “Bastou um século de racionalidade, e o homem já está de novo em busca de explicações para os fenómenos naturais todas elas baseadas em contos de fadas.

Goste-se ou não se goste de ver as coisas postas assim, no entanto, é exactamente de longas desgarradas sobre um ou outro milagre maravilhoso, quiçá apresentado nesse tom piegas que a mim me agrada tanto, que falaremos daqui para a frente.

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


[1] Mario Vargas Lhosa, in THE STORY TELLER. Parafraseando a estupefacção dos índios amazónicos que caminham sem cessar pela margem do rio, fugindo da ganância ignorante dos colonos brancos.

[2] Este verso é tão bonito, tão bonito, que há décadas que quero usá-lo como título de qualquer coisa. Aqui, onde se contam as histórias da vida e de como essas histórias viram a luz do dia num esforço de muitos séculos, não podia ser mais adequado. Em cada uma destas crónicas, é verdadeiramente a luz da vida que vos baptiza. Hm? Tomem e embrulhem. “E mandem para o Biafra,” como se acrescentava quando eu era pequenina. Para onde será que se manda hoje?

[3]Peça coxa”: forma de dizer “esta merda que tu escreveste não se entende” utilizada pelas chefias em 1980, quando eu comecei a estagiar no saudoso semanário O JORNAL.

[4] Exactamente ao mesmo tempo, endireitou-se como ninguém antes dele na postura bípede erecta. Deve ter sido um daqueles momentos de quase colapso por too much information.

[5] Reparem, esta pergunta implica que aquele pessoal já conhecia o fogo, e mais – sabia fazê-lo. O Homo sapiens limpou da face da Terra todos os outros Homo, todos os austrolopitecos, todos os pitecantropos, isso é verdade. Mas já cá chegou com algumas tarefas fundamentais facilitadas.

[6] Ou mais empírico, conforme os saberes. E não desmerecendo.

[7] “A Natureza e as suas leis

Estavam escondidos na noite

Deus disse: “Que exista Newton!”

E fez-se a luz.”

[8] De nome completo PHILOSOPHIAE NATURALIS PRINCIPIA MATHEMATICA, ou seja, PRINCÍPIOS MATEMÁTICOS DE FILOSOFIA NATURAL.

[9] Esta seria, aliás, a reacção a esperar à luz do pensamento da época, segundo o qual quanto melhor conhecêssemos o funcionamento da Natureza melhor conheceríamos a imensidão dos poderes divinos.

[10] No entanto, de entre este grande manancial dessas informações, registe-se que foi nos jardins de LES DELICES que se fizeram várias traduções do NEWTON PARA SENHORAS e várias entradas de L’ENCYCLOPÉDIE. Convém, também, não nos esqucermos de que foi exactamente durante uma das suas estadias no LES DELICES que, em 1755, na manhã do dia 1 de Novembro, Voltaire soube das catástrofes vindas da terra, do rio, e do fogo, que acabavam de dizimar aquela que era à época a cidade mais rica da Europa, e compôs em estrofes heróicas o devastador POÉME SUR LE TREMBLEMENT DE TERRE DE LISBONNE, que ainda hoje muitos historiadores consideram o grande marco do  fim do Optimismo, e do seu lema “tudo corre bem no melhor dos mundos possíveis.”

[11] Os chamados “Comentadores de Newton”.

[12] Do espectro, topam? Newton descobre que quando a luz branca incide num prisma de vidro na presença da luz se desdobra do outro lado do prisma nas sete cores do arco-íris; e é deste milagre que nasce a Óptica. Toma lá fresquinho, Descartes. Grande trocadilho. Pareço mesmo um homem.

[13] Pois, cogito ergo sum e tal, evitam-se os milagres e o próprio Deus como hipóteses explicativas, mas não exageremos. É indiscutível que a alma existe. Ah, está-se bem.


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