TEM DIAS

Sem chão

open book on brown wooden table

por Sílvia Quinteiro // Março 3, 2024


Categoria: Cultura

minuto/s restantes

Nunca conversaram muito. Nunca foram amigas. Também nunca foram outra coisa qualquer. As vidas das duas mulheres cruzaram-se. Trabalham há muito na mesma empresa. Partilham alguns espaços e momentos. Muitos, na verdade. Mas nunca convergiram. Nunca aconteceu. E, no entanto, hoje aqui estão. Sentadas lado a lado, de mãos dadas.

Encontrou-a sentada no carro. Debruçada sobre o volante. Hesitou, mas decidiu voltar atrás. E se desmaiou? Pode estar a sentir-se mal. A precisar de ajuda. Ana percebe rapidamente que a colega não perdeu os sentidos. As convulsões do corpo denunciam o choro. Fica sem saber se deve bater no vidro ou não. Não tem intimidade suficiente para se intrometer. Por outro lado, receia que esteja com dores. Que seja necessário chamar uma ambulância.

a person driving a car on a road with mountains in the background

Avança. Se não gostar, paciência, pensa. Mande-me embora. Três toques com os nós dos dedos. Aguarda um pouco e repete. Os olhos vermelhos de Sara, inchados e sem expressão surgem lentamente por entre as dobras da manga bege suja de maquilhagem. Volta a enterrar rosto no couro do volante e Ana pergunta-se se estará a ser inconveniente. Afasta-se.  Dois passos dados, ouve o seu nome:

⎼ Entras um bocadinho?

Entra, obviamente. Não sabe porquê, mas não se surpreende com o pedido. Senta-se no lugar do passageiro. Aguarda que Sara se recomponha. Pousa-lhe uma mão no ombro. Com cautela. Com a hesitação de quem não tem o hábito de o fazer. Sara liberta um grito rouco. Chora compulsivamente durante longos minutos até o cansaço a impedir de continuar.

É então que limpa o rosto. Assoa-se ruidosamente, uma e outra vez. E Ana, que até então sabia apenas como se chamava, o que fazia e que tinha três filhos, torna-se a sua maior confidente. Sara diz-lhe que o marido saiu de casa há dois dias. Estiveram juntos quase 20 anos. Ainda não encontrou a melhor forma de contar às crianças.

 – Achas que tens mesmo de fazer o já? Não te estarás a precipitar? Não há possibilidade de se reconciliarem? –  pergunta Ana.

closeup photo of black analog speedometer

Sara garante que não. Explica que quando a informou de que iria sair de casa, o João já tinha um apartamento alugado e mobilado há meses sem que ela soubesse. Duas ruas abaixo da casa onde vivem. Voltam a correr-lhe as lágrimas quando  diz que nunca se tinha apercebido de nada. Para ela, tinham o casamento perfeito. Não consegue entender, logo não consegue explicar. Sente-se perdida. Foram namorados de liceu. Escolheram a mesma faculdade para poderem estar juntos. Casaram. Tiveram filhos lindos. Construíram a casa com que sonharam. Fizeram viagens de sonho. Até o cão é perfeito. São, ou melhor, eram a imagem da felicidade. Pelo menos, era assim que ela via a sua vida. E, por entre muitos desabafos, explica que, por incrível que pareça, o que mais a magoou não foi o facto de ele ir embora, nem sequer as palavras. Ele foi doce. Educadíssimo, como sempre. Falou como um amigo que a tenta confortar. Disse-lhe que tinha de ir. Que ela tinha de ter paciência. Sara perguntou-lhe porquê. Ele baixou o rosto. Ela explicou-lhe que tinha de compreender para se poder conformar com a ideia. Além disso, como queria saber como iria ele explicar aos filhos o que se passava. Perguntou-lhe o que pretendia dizer-lhes. Como e quando o iria fazer. Não obteve resposta. Nem uma palavra. Nem um olhar.  A cabeça baixa. Não por pudor, acredita ela. Mas porque não pensou na necessidade de dar uma resposta. Porque assumiu que “ter de ir” era justificação suficiente. Voltou costas. Cabisbaixo. Desapareceu. O João não voltou a dar notícias e a única certeza que ela tem agora é a de que terá de ser ela a desferir esse golpe nos filhos. Que ficará sozinha a olhar a dor no fundo dos seus olhos incrédulos.

As palavras e os atos já não a magoam, diz. Desiludem. O que a magoa é o baixar os olhos, o gesto que a deixa no vazio e que lhe traz de volta uma memória terrível. Conta que a sua mãe faleceu recentemente. Cancro. Ana lamenta. Cruzam-se quase todos os dias e não se apercebeu de nada.  Sara recorda o médico da mãe, a bata azul, o ar exausto, um cubículo improvisado com vista para o estádio.

⎼ A equipa fez tudo o que podia. –  explicou-lhe então.

⎼ Nada correu como esperado.

a dark tunnel with a black background

 E ela de olhos fixos no relvado. A imaginar que não estava ali. Se não estivesse, não podia acontecer.

⎼ A ciência tem as suas limitações. –  ouviu.

Não podia ser. Incrédula, perguntou:

⎼ E agora doutor? O que vão fazer? O que digo ao meu pai?

Ele baixou os olhos. Encolheu os ombros. Ela formulou e reformulou a questão. E o silêncio cada vez mais pesado, mais doloroso. Desesperante. Olhos no relvado. O sol a encandeá-la através do vidro e a tornar tudo irreal. Do regresso a casa, recorda os vultos, o medo de pousar o pé a cada passo. Sem chão. O abismo.

Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.