Nesta reportagem, Rui Araújo desvenda as mágoas, os tesouros e memórias da ilha mais pequena do arquipélago dos Açores.
No Corvo há histórias de corsários e de baleias. E de milagres.
É quase noite.
Lá fora, o mar está chocalhado.
Eles juntam-se, aqui, quando chegam das terras de cima ou do mar. Eles. Elas, não.
Antes, há uma data de anos, o ponto de encontro dos pescadores e dos lavradores na ilha do Corvo era o Largo do Outeiro.
Agora, é o Café Traineira.
Os náufragos da vida e os outros que deram à costa — a porta permanece sempre escancarada até às oito ou coisa que o valha — já não tomam resoluções. Matam o tempo. Mas há mais coisas que mudaram…
— Antigamente, as pessoas trabalhavam muito mais. Agora, não. Agora, o senhor vai para cima todo o dia e vê um ou dois lá em cima. Não vê mais ninguém. Já não é como era. Trabalhavam… Agora, já está tudo relva… — conta-me Inácio Pimentel.
— E porque é que já não trabalham as terras?
— Já não trabalham porque não querem. Não têm falta. Querem o gado e mais nada. Já está tudo relva…
— E a pesca? Mudou muito?
— A pesca… Antigamente, eles apanhavam muito peixe porque havia muito. E havia muitas lanchas. Agora, só há duas ou três. Passa-se dias e dias que nem sequer vão ao mar. Pronto, já não é como era…
A conversa e os pleitos, quando os há, são entrecortados por filmes de telemóvel. Histórias do mar. O que é que havia de ser?
Lá ao fundo, o televisor sem conserto dependurado na parede debita ruído. Ninguém liga.
De qualquer forma, o essencial (à semelhança da insularidade) raramente se resume a palavras.
Às vezes, a felicidade (por mais efémera que ela seja) tem a forma da rotina dos dias numa ilha, longínqua ou nem por isso. Ou passa por histórias de baleias ou de lobos do mar. Hemingway, Melville, Conrad e London que o digam. Ou Vitorino Nemésio ou Raul Brandão…
Mudança de cenário.
O nosso destino é o cemitério.
E deixamos sempre uma parte de nós no caminho, mas no Corvo ainda há quem teime em honrar o passado. E se reconheça em Deus e na amargura da ausência. Com ou sem mortificação…
José Inácio de Fraga. A lápide não diz, mas era mais conhecido por José Augusto.
O “trancador” faleceu a uma dezena de milhas do Corvo na manhã de 21 de Julho de 1955. Tinha 29 anos. Deixou 4 filhos mais um a caminho.
A campa, o nome — a memória — e o rosto ajudam-nos a ser quem somos — diria Torga.
Era baleeiro. É o único corvino que morreu na caça à baleia.
O padre e os 51 fiéis abalam.
Lá atrás, o manto sombrio do horizonte esconde as campas anónimas dos 17 romeiros — os peregrinos de Santa Cruz das Flores e da Fajã Grande, que morreram ao largo do Corvo aquando do naufrágio da lancha “Senhora das Vitórias”, mais conhecida por “Francesa”, a 13 de Agosto de 1942 .
É noite funda não tarda.
Corvo.
É a ilha mais pequena dos Açores.
Terá sido descoberta por Diogo de Teive, escudeiro do Infante Dom Henrique, em 1452.
O povoamento definitivo ocorreu quase um século depois, em 1548.
O isolamento e a ausência de um porto seguro (sem contar com a dependência em relação à vizinha ilha das Flores) são uma explicação…
O espesso mato e o arvoredo de outrora — pau branco, loureiro, tamujo, azevinho e cedro — aqui a norte, no Caldeirão! — por exemplo, desapareceram há séculos.
Mesmo assim, o Corvo, denominado outrora a “ilha negra”, é reserva da Biosfera desde 2007. Um galardão excepcional da UNESCO.
Mas… vamos por partes:
Área: 17 quilómetros quadrados bem contados.
Altitude máxima: 718 metros.
População: 459 habitantes (mais 129 do que há seis anos), maioritariamente corvinos.
Os outros são oriundos do arquipélago, do continente, da Madeira, de Cabo Verde, de Espanha, do Brasil e até dos confins da Ucrânia.
Vivem todos, ali em baixo, na única povoação da ilha: Vila do Corvo.
Principais actividades: empregos públicos, produção de gado — necessariamente com apoios comunitários que um dia destes acabam! —, no Corvo há 997 vacas, o que dá duas cabeças por habitante — algum turismo e a pesca…
Taxa de desemprego: zero por cento.
É uma manhã invernosa, mas com horizontes.
No porto, à beira da vila, é a azáfama do costume — ou quase. O guincho está avariado. A grua móvel faz o serviço: mete a embarcação de pesca local “IASALDE” na água.
Comprimento de fora a fora: 24 pés (dá 8 metros!).
Arqueação bruta: menos de 3 toneladas.
Velocidade máxima: 7 ou 8 nós. O motor dá o que pode…
A pesca à linha (com anzois nº 8), aqui, é a do goraz, pargo, cherne, garoupa e… peixe-porco nos dias azarentos.
O isco usado normalmente é o “bonito”, mas como já não há desde Janeiro… vai chicharro «bago».
Tripulação: dois homens.
O mestre é Eugénio de Freitas. 50 anos. 36 de mar. É corvino de gema.
O pescador dá pelo nome de João Andrade. Tem 52 anos. É natural de outra ilha: Fogo, Cabo Verde.
Rumo: 160 ou 165: Esguilhão do Incenso.
Se lá não der, vamos para o Pico João de Moura e a Pedra Nova.
E, passado um bocado, cedemos à tentação de mudar de ares… o sulco ora é azulado ora é prateado, as cores como o resto dependem do céu?
Apanhamos 3 peixões.
É o momento do exame de consciência em voz alta ou da confissão improvisada…
— A pesca antigamente era mais fraca porque havia muito peixe mas não havia venda para ele. Agora, tem muita venda para peixe e é assim… Onde há muito ferro há pouco carvão. Isso é sempre assim…, diz Eugénio de Freitas.
A pesca já não é o que era. Tem dias…
Como se não bastasse, chegam a estar semanas a fio sem poder ir para o mar por causa do mau tempo.
O vento ruim sopra sempre de nordeste.
E a tarde está a cair…
A voragem do tempo não poupa nada nem ninguém…
— Sonho com o meu marido e pouco mais. Já não tenho mesmo aquela vontade de querer. Eu posso limpar os olhos? — indaga Odete Vieira.
— A gente está bem e de uma hora para a outra desmorona-se tudo. Vai-se tudo embora. Ele adoeceu e depois de ele adoecer a minha vida perdeu o rumo…
O marido morreu-lhe na manhã de 21 de Abril. Eram 5 e meia da manhã. Parece que foi hoje.
Odete Vieira. Nascida e criada no Corvo.
— Antigamente, o Corvo era fraco em tudo. Tínhamos miséria. Não padecíamos da fome, mas… pão, leite nunca nos faltou. E queijo, que a gente fazia-os em casa. Mas de resto havia pouco. Hoje em dia, é que há a modernice das hamburgers e da batata doce. Dessas comidas assim…
— O que é que mudou nestes anos todos?
— O cacau! O dinheiro!
Dona Odete é católica e praticante. Tem fé em Deus, Nossa Senhora dos Milagres e Nossa Senhora de Fátima. Mas… mas a sua especialidade são os altares do Espírito Santo e os presépios.
Seguimos caminho.
Logo a seguir à igreja, damos com dois velhotes.
José Alferes Pedras, 75 anos. É corvino. Foi guarda florestal.
A mulher, Maria José, tem 72. É florentina. Era lavradora.
O casal tem 4 filhos e 5 netos.
É o primeiro encontro inopinado.
— Essa casa era da filha do padre. O padre casou e fez essa casa para moradia para ela… — conta José Alferes Pedras.
O cepticismo da idade está em harmonia com o falar.
Metemos conversa.
— A vida, aqui, agora é malandrice… que eu já estou reformada. E este também… — confessa Maria José Pedras.
Os hábitos e as tradições mudam mais depressa do que as mentalidades.
— Mas a senhora gosta de viver cá. Ou não?
Ela acena que não.
— Se não gostasse, já se tinha ido embora! — acrescenta José Alferes Pedras.
— É uma coisa assim, mas não é da ilha que se gosta. É das pessoas! — diz a mulher.
Há gente que não renuncia à humanidade.
Mais palavras para quê?
Outro encontro.
O sujeito que vem por aí acima a passos arrastados tem cara de poucos amigos. Mesmo assim, metemos conversa.
João Grevis. 62 anos. Foi lavrador, carteiro, deputado e presidente da câmara.
— Ó senhor, o futuro do Corvo… Eu não vejo grande futuro para a ilha… Portanto, acho que a ilha está um pouco estagnada. O empreendimento é pouco. Os jovens já não têm muita garra para se dedicar a muitas coisas… Procuram um emprego. Um emprego… e os sectores produtivos estão praticamente abandonados. Portanto, a lavoura devia ser um pilar forte, aqui, na ilha… praticamente, a lavoura está a desaparecer. Estão as pessoas já de idade. Jovens que se dediquem à agricultura são muitos poucos… — garante João Grevis.
Há, aqui, alguns jovens acomodados que se contentam de um emprego fictício. A servidão por mais mal remunerada que seja não os incomoda… mas quem somos nós para os julgar? É um lugar-comum, mas… ninguém faz o que quer!
— Antigamente, já do meu tempo, tínhamos um navio aqui de 3 em 3 meses. Depois, passou a vir de mês a mês e antes de mim muito menos do que isso. E era assim. As pessoas estavam completamente isoladas, mas eram pessoas que se inter-ajudavam a si próprias, uma comunidade entregue a si própria, mas uma comunidade de grande garra e que… toda a gente sabia fazer qualquer coisa.
A deferência do timbre é enganosa…
João Grevis recusa o comodismo e a lisonja gratuita.
Está reformado. Agora, entretém-se a sonhar com outro futuro para a ilha e a viver: cuida das hortaliças e pesca uns chernes e uns gorazes.
O mundo mudou.
E esta gente mudou…
— O meu trisavô, o meu bisavô emigraram a bordo de uma baleeira. Trabalharam um ano a bordo. Depois, foram para os Estados Unidos. Naturalizaram-se americanos. Depois de terem a vida mais ou menos arranjada, regressaram. Compraram mais uns bocados de terra e fizeram a sua vida cá — conclui João Grevis.
— E, como eles, houve muitos…
— Sim. Sim. Como eles… quase todas as famílias do Corvo têm descendentes que foram baleeiros e tinham nacionalidade americana.
A caça à baleia acabou em 1987 com a morte de 3 cachalotes ou em 1984, quando fechou a última fábrica dos Açores.
Os corvinos pararam muito antes, logo no início do século 20.
A falta de um varadouro decente complicava as manobras de varar e de arrear.
24 de Julho de 1896.
Depois de uma passagem pela ilha das Flores, o Príncipe Alberto do Mónaco desembarca, pela segunda vez, no Corvo.
O ancoradouro de Nossa Senhora do Rosário era isto aqui.
A povoação mencionada nas chapas é “Rosário”. Hoje, Vila do Corvo.
O soberano permanece 3 dias na ilha e almoça no Caldeirão a 25 de Julho, um dia depois de chegar.
É a segunda visita do soberano à ilha. A primeira ocorreu 7 anos antes, em 1879.
A 24 de Novembro de 1981 é caçado o último cachalote nas águas do Corvo por baleeiros florentinos.
A memória das quimeras e dos dias de servidão – a fúria do mar, as preces e as lágrimas de sal —… a memória… com o vento de Oeste parece resistir ainda mais ao tempo.
— Eu queria era apanhar baleias para o patrão ter o seu lucro e a gente ter o nosso. Às vezes, dá-me saudades. Dá-me saudades…
Era caçador de baleias.
— Se eu voltasse para trás, se eu fosse mais novo, que eu já não tenho idade para a pesca da baleia, se eu fosse mais novo eu hoje ainda ia. Gostei muito daquilo. Foi o melhor tempo que eu tive na minha vida. Foi a pesca da baleia.. Porque foi uma das coisas que me levantou a minha vida, está a perceber? Que ganhei dinheiro para me poder manter a mim e a minha mãe. O meu pai quando morreu eu tinha 7 anos. Perdi-o. Tive de começar a trabalhar muito novo. Está a ver?
O mar — ao contrário da terra — une os homens.
Pedro Melo Lindo, 77 anos, caçador de baleias aos 14.
Um homem sério e humilde, que se respeita.
Hoje, vive numa casa sombria com a mulher e um filho. Paredes meias com a melancolia de antanho e a paz do dever cumprido.
Mata o tempo a cuidar de um porco e de 36 vacas (de carne), mas não são os raciocínios economicistas que o animam.
O mar engrandeceu esta gente rudimentar…
Acompanhamos o caçador de baleias aposentado lá acima, à Lomba da Rosada.
Esta manhã, é preciso mudar a cerca dos bezerros — mudar de pasto.
Passamos pela Lomba do Feno.
E esperamos…
Pedro Lindo espera.
O filho e um amigo andam à cata dos bichos.
Aparecem dois. O desfecho é normal. Amanhã, procuram mais…
Cada bovino tem direito a nome: Galho Partido, Trigueira, Mourata, Lavrada, Calçada…
Eles lá sabem. É assim. E desde sempre.
Damos de caras com o carteiro.
— Tenho, aqui, uma carta para si…
— Não deve ser boa coisa… Da minha namorada não deve ser… (RI-SE) Ela está divorciada há muito tempo. deixa ver…
Orlando Rosa. 46 anos. É o carteiro do Corvo. O único.
Faz a distribuição e o atendimento.
— Dona Hélia? (O carteiro abre a porta e deixa ficar a carta).
— Como vêem, ninguém tem, aqui, número de porta e quando para cá vim há 20 anos tive de decorar todos os nomes das pessoas que cá viviam. Dos que cá viviam e dos que vinham para cá trabalhar. Tive de decorá-los todos!
— Sónia? Tem uma porção de coisas aqui. Jornais…
— Muito obrigada!
— Como vêem, as casas, aqui, no Corvo não têm número. Quando cá cheguei, há 20 anos, levei mais de um mês a decorar o nome de toda a gente. Foi difícil na altura, mas agora já sei o nome de toda a gente. Já está resolvido!
A solidez do sistema postal passa pelas pessoas e pelo código postal que começa em Lisboa e acaba aqui: 9980.
— Esta parte tem de cortar! (O carteiro ri-se) Deixa ver se tenho, aqui, cartinhas para ti, Teresinha.
O carteiro do Corvo é do Pico. Orlando Rosa veio por um ano. Está cá há 20.
— Sempre a trabalhar. Tenho, aqui, uma cartinha para si. Até logo!
Encontros e desencontros instrutivos.
A harmonia é aparente, mas há paz e sossego.
Um sol baço ilumina o burgo.
A escola do Corvo tem 42 alunos e 20 professores (todos de fora).
Há turmas com um aluno. A maior tem 7.
Aula de geografia.
— Estava muito habituada a ter indisciplina na sala de aula e acabava por ser um bocadinho como um desafio. Aqui, não tenho esse desafio, mas tenho outros… outros desafios, que é o facto de estar a lidar com 1, 2. 3 alunos e trabalhar ao ritmo deles, mas também tendo a noção que… uma parte dos alunos não tem a ambição que, se calhar, noutros… noutros lugares, noutras escolas eles têm.
Esta juventude perde-se. Com emprego garantido (independemente das vocações e dos resultados dos estudos), deixa de sonhar. Ou acomoda-se.
As perspectivas destes jovens são magras, mas quem somos nós para os julgar?
— O futuro da ilha do Corvo passa obviamente por três… três pilares: a pesca, a agricultura e a agro-pecuária e o turismo. E o turismo, queremos que seja um turismo selectivo e, como eu costumo dizer, o Corvo é para ser vivido e não visto. Portanto, precisamos de turismo que venha vivenciar aquilo que foi a nossa História e aquilo que é o nosso presente. E que, provavelmente, continuará a ser no futuro. E espero que os jovens sejam capazes de perpetuar isto… — palavras de José Manuel Silva, presidente do município.
É possível que o futuro da ilha também passe pelo turismo cultural…
Esta gente arranjou sempre soluções para sobreviver neste pedaço de terra cercada de mar.
A destrinça entre natureza e História, aqui, é por isso mesmo impossível.
— A caça à baleia era uma maneira de eles fazerem dinheiro para sustentar a família. E eles caçavam a baleia, aqui, entre a ilha do Corvo e das Flores… — refere Maria Luísa Pimentel.
— Há histórias tristes. Morreu um rapaz aqui do Corvo. Morreu um rapaz que era daqui do Corvo. Ele era trancador. Trancava a baleia e o meu pai não estava no bote que ele estava. Estava noutro. Eles juntavam-se, os das Flores com os do Corvo, e depois punham a companha da maneira que era preciso. E… E ele trancou a baleia quando não devia ter trancado a baleia. Eles tinham que esperar a maneira melhor de trancar a baleia e ela não fazer mal a eles. A baleia é um animal mamífero que não faz mal nenhum… Se vai ver uma baleia passar pode passar a mão por cima que ela não faz mal. Mas trancaram-na, já se sabe, feriram-na. Ela levantou o rabo e entrou o barco. O barco era de madeira e não era muito grande. E… E feriu o rapaz. Ferido morto. Morreu imediatamente.
— A cabeça e a cara não se sabia que era uma pessoa.
No lar da vila encontramos Fernando Pimentel. 85 anos. É o cunhado de José Augusto da Fraga, o jovem “trancador” corvino sepultado no cemitério à beira do mar que não o viu morrer.
O velho homem assistiu ao drama…
— Eu pensava que estava vivo. Ele estava todo rebentado. Ele tinha um golpe na cabeça. Eu quando fui ao pé dele… um golpe na cabeça. Depois a gente foi para as Flores. Depois, veio para o Corvo. Eu perdi a fala naquela altura. (Chora)
— Lembra-se como se fosse hoje…
— Lembro!
Há mortes que são uma desgraça.
Muitos açorianos emigraram para escapar à miséria. Alguns — e não foram poucos — foram parar aos Estados Unidos…
Dona Guiomar e o marido, Raúl Trindade, chegaram a New Bedford (Massachusetts), no dia 8 de Julho de 1972.
Ela arranjou trabalho numa fábrica (que, entretanto, fechou). Ele foi para cortador de peixe.
— A gente estivemos na América quase 16 anos. Quase 16 anos… Eu estava a gostar muito. Muito. Eu adorava a América. God Bless America! É o que eu queria dizer, mas o meu marido deu-lhe aquela pancada como costuma dar à maioria deles, quis vir para o Corvo. Ah, senhor. Foi um balde de água fria para cima da minha cabeça. Que.. foi um balde de água fria para a minha cabeça…
Escreve à filha e aos netos. Faz a mesma coisa que a sua avó fazia em 1983 quando vivia em New Bedford.
34 anos depois, repete-se a cena da carta da “Grande Reportagem” de Miguel Sousa Tavares, emitida na RTP.
À semelhança da avó, Guiomar Trindade deixou na América da prosperidade ou da felicidade (pouco importa agora) uma filha e três netos.
As palavras de ontem são como as de sempre…
Minha querida filha, netos… E netos. Muita saudinha a todos. Por cá, … vamos na forma do costume. Fomos ao Faial. Graças a Deus, mais ou menos correu tudo bem. Ah, Temos muitas saudades vossas principalmente nesta… nesta época da festa de acção de graças e o Natal…
É a sina de muitos emigrantes.
E esta prosa em letra redonda cheia é tudo menos oca…
— Agora, com a idade, eu ando é com a minha muleta. Não é com o anel de diamantes nem é a pulseira de ouro. Ando com a muleta para a muleta me aguentar. O senhor sabe…
— E…
— …
— Mas continua a sonhar…
— Bem, eu… Sonhos grandes, grandes não. Eu já não os tenho. Não. Mas, senhor, os problemas da vida são muitos…
Igreja de Nossa Senhora dos Milagres:
É a hora da missa.
Esta imagem de Nossa Senhora do Rosário (que passou a ser, entretanto, denominada Nossa Senhora dos Milagres) terá dado à costa do Corvo no século 16.
A devoção à santa padroeira da ilha é real.
A igreja terá sido edificada em 1795.
Curiosidade: os bancos de carvalho eram de uma sinagoga dos Estados Unidos da América. Foram comprados na década de 60 por um emigrante de New Bedford…
É noite cerrada.
Temos Lua cheia e firmamento (mais ou menos estrelado)…
O céu confunde-se com o mar. E as estrelas, lá ao longe, parecem, agora, mais ilhas perdidas. Têm nomes de princesas ou de bichos fabulosos ou de coisas.
No restaurante Metralha é noitada de bola e de comunhão.
O pitéu é especial: alcatra de cabrito com batata doce regada de branco do Pico.
A ideia é de Alirio Andrade, lavrador, ilhéu do Fogo.
— Eu não vou à missa. Eu sou católico, mas não praticante. Para a igreja mexericar na vida dos outros, eu não vou. Eu não tenho pecado. Não matei. Não roubei. E não devo nada a ninguém…
— E hoje…
— Hoje, é comer e beber.
— E sente-se mais corvino que cabo-verdiano ou…
— Eu saí de Cabo Verde com 17 anos e já tenho 32 anos. É mais corvino ou mais cabo-verdiano? O senhor que é juiz… diga uma coisa: eu sou mais corvino ou cabo-verdiano?
Não se belisca ninguém sem razão, que seja o que Deus quiser.
Mudança de assunto: a parte dos sonhos com Cláudia Reis, filha do Metralha.
— Eu gostava de ser cabeleireira e estética, ou seja, fazer um salão a nível de tudo: ter massagistas, pedicure, manicure, aqui, no Corvo porque, aqui, temos uma que corta, mas é em casa. Mas não faz assim penteados radicais, não… para casamentos não há maquilhadoras, não há assim gente profissional, mas temos uma rapariga actualmente a fazer as unhas, mas é só manicure…
Na mesa ao lado, entre a sobremesa e o café, mais um testemunho.
Fábio Ferreira, encarregado dos resíduos, toma a palavra.
— Façam-me um favor: separem o lixo. os restos de comida num saquinho à parte. Embalagens, garrafas de água, pacotes de leite, pacotes de massa, num saquinho à parte, não custa nada. Vocês estão a ajudar-me a mim, mas estão a ajudar o meio ambiente. É só isso que eu peço. Obrigado por tudo.
— E, agora, uma pergunta: este jantar tem história?
— Tem.
— Qual é a história deste jantar, aqui, esta noite?
— Isso... (Cala-se) Eu não vou responder a isso…
— A história de uma grande amizade…
— Eu não vos responder a isso, não consigo. ” (Chora)
Inventariar as mágoas… às vezes, é preciso. Por mais atordoada que a consciência fique.
Juntaram-se no Metralha para homenagear um amigo. Ruben tinha 29 anos. Faleceu no dia 14 de Outubro.
Fim do convívio.
O primeiro passo para proteger as aves marinhas da poluição luminosa é dado na ilha mais pequena dos Açores a 3 de Outubro de 1991.
Só 4 anos mais tarde, o resto do arquipélago segue o movimento.
Partida das brigadas “SOS CAGARRO”.
Vão armados de lanternas, luvas, colete reflector, caixas de papelão e… boa disposição, claro.
Vão correr, durante, pelo menos, duas horas, as canadas — as ruelas da vila e recolher aves marinhas encandeadas.
No espaço de um mês, em 2016, foram resgatados e salvos na ilha 1.020 cagarros — é a designação local para a pardela de bico amarelo.
11 da manhã.
A cena da libertação dos cagarros repete-se à beira da falésia, lá para as bandas dos moinhos.
3 em cada 4 cagarros nidificam nos Açores. Estamos a falar de qualquer coisa como 200 mil casais.
Vivem 40 ou 50 anos. Reproduzem-se a partir dos 7.
Este tem 3 meses.
Daqui a 5 ou 6 anos volta ao Corvo — a ilha que o viu nascer.
— Eu quando abro a caixa sinto felicidade porque sei que ele vai voltar ao seu habitat natural e vai viver a sua vida.
— É bom para o meu ser… que eu quero ser bióloga marinha e terrestre. Ajuda-me a fazer coisas. penso melhor na minha vida e ajudo eles. — jura a menina Clara Sofia Lindo.
A partir de agora é o mar, imenso como os sonhos das crianças.
Reportagem originalmente transmitida na TVI
Fotos de Rui Araújo
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