ENTREVISTA COM EDUARDO CINTRA TORRES, investigador e jornalista

‘A publicidade tinha um elemento mágico forte, mas essa era acabou’

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Doutorado em Sociologia, com formação académica também em História e Comunicação Social, Eduardo Cintra Torres é, porventura, o mais acutilante analista de media, comunicação política e publicidade em Portugal, mantendo colaboração frequente na imprensa, sobretudo na CMTV e Correio da Manhã. Além de investigador histórico e jornalista, ainda é professor de Estudos Televisivos e de Análise de Publicidade na Universidade Católica Portuguesa desde 2004. E abalançou-se para um trabalho ciclópico, de anos, para ‘compor’ a (verdadeira) História da Publicidade em Portugal, numa versão académica complementada com um volume ilustrado com os anúncios que seduziram gerações.


Comecemos pelo princípio: a publicidade serve para divulgar um produto, para satisfazer uma necessidade, para enganar os incautos?

Publicidade é uma comunicação, normalmente de um para muitos, que pretende ser de um para várias pessoas – que normalmente é pública – e que desde o início se destinava a promover a venda de produtos e de serviços. Depois também se alargou a informação pública, digamos assim. Por exemplo: “beba leite, porque faz bem à saúde”, ou “vacine os seus filhos contra o sarampo”. Portanto, isto é uma publicidade que é um serviço público sem haver uma transação comercial ou um pressuposto pagamento… Vamos supor que quero fazer um anúncio para promover o PÁGINA UM, ou uma associação pública, uma associação de moradores: eu sou publicitário, tenho uma agência, e ofereço o anúncio; mas oferecer um anúncio é um binário, zero e um. Há um suposto pagamento, que deixa de haver, mas o pagamento teria de existir, porque houve alguém que fez aquele trabalho. Também a sua publicação teve pagamento, como se vê no primeiro documento que está no meu livro ilustrado, da Idade Média, onde um funcionário público, que é uma espécie de RTP do século XIV, pode fazer publicidade e receber dinheiro.

Eduardo Cintra Torres numa aula de licenciatura na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Abril de 2024. (Foto: D.R.)

Embora na publicidade o objectivo seja sempre vender alguma coisa ou convencer alguém. Vês isso mais como uma tentativa de persuadir as pessoas para o bem, ou às vezes também pode ser feita para o mal?

Pode ser feita para o mal, mas desde que a publicidade se transformou numa profissão, no final do século XIX, com agências e tudo mais, houve um grande cuidado da parte dos publicitários – estou a falar das agências americanas em primeiro lugar, mas depois também noutros locais – em dizer que a publicidade não mente, não é para mentir. Quando a publicidade mente, está a ser ética e deontologicamente errada. Eticamente, porque nunca se deve mentir, seja numa profissão como a publicidade seja noutras circunstâncias quaisquer. Na deontologia, porque a deontologia da publicidade se foi formando no sentido do que se pretende é chamar a atenção do consumidor, criar o interesse das pessoas no produto, ou no serviço, que se está a anunciar, criar um desejo de cumprir o que está proposto. Isto é, comprar um produto ou um serviço, e depois levar a pessoa à acção. Como tenho estes três passos tão bem definidos, e é absolutamente fundamental que eu crie interesse, tenho de criar o desejo, ao qual deve seguir-se uma acção, que é a compra, ou o que quer que seja. Se for o World Wildlife Fund, o objectivo será dar dinheiro para o fundo, porque eles pedem isso nos cartazes. Mas não há um objectivo de enganar. Há um objectivo de convencer, de seduzir, através de um mix de informação e de ‘magia’; aquilo que se chama magia no sentido em que há um lado um pouco ficcional, não quer dizer que é mentira. Mas eu crio um diálogo entre duas personagens.

Ou seja, a publicidade tem de ser sedutora?

Sim, senão não funciona. Isso está no “D” de AIDA, que é “Atenção, Interesse, Desejo e Acção”.

Vou tentar seguir a linha do teu livro, A História da Publicidade em Portugal, durante a nossa conversa… Hoje, qualquer pessoa sabe que há uma série de canais de divulgação de publicidade, quase sempre associada à tecnologia. Sabe-se que sobretudo no século XIX, a publicidade ganhou um ímpeto com a fotografia, e no século seguinte com o cinema, a rádio e a televisão. Mas estudas a publicidade desde a Idade Média. Que “tecnologia” se usava nesse tempo?

A primeira era a tecnologia do ser humano, era a voz [risos], portanto, vocal, e a linguagem verbal. Havia uma profissão, os pregoeiros, que , em boa medida, funcionários públicos, das câmaras municipais; eventualmente, da governação ou da realeza.  Tinham a seu cargo ler em voz alta, publicamente, diversas vezes e em diversas localidades uma mensagem, por exemplo, do Rei. Esses pregoeiros também faziam publicidade privada. Porque o primeiro documento do meu livro, a imagem número 1 do capítulo I, é uma decisão da Câmara Municipal de Évora, e eventualmente poderíamos encontrar ‘N’ decisões de outras câmaras municipais do país naquela altura, ou até antes. Diz que o pregoeiro, um funcionário público, pode fazer publicidade, e o processo de fazer, para “publicitação” para privados. Chega a acordo com os privados sobre o percurso que vai fazer para o anúncio daquilo que há para vender. Vamos imaginar que são bens perecíveis, que precisam de vender-se agora – naquela altura em que não havia processos de preservação –, o comerciante ou o produtor tinha de pagar 1%.

Primeiro cartaz português conhecido: cartaz da Inquisição contra Os Lusíadas, 1640. (Foto: D.R.)

Portanto, havia regras. Os pregoeiros seriam os ‘influencers’ de hoje, não?

Exactamente, eram os influencers… Quer dizer, era mais um publicitário, no sentido em que eventualmente ele escolheria os objectivos, para dizer “carne muito fresca”, em vez de dizer só “carne de vaca”. “Vejam o senhor o Senhor José Manuel das Iscas na Praça do Giraldo” – se acrescentava alguma coisa é porque era um profissional da comunicação, porque era pregoeiro do Estado; não lhe podemos chamar assim, porque ainda não havia bem Estado, mas enfim, “proto-Estado”.  Mas ele fazia esse apregoamento. Por outro lado, também haveria um apregoar ‘não profissional’, pelo menos não no mesmo sentido deste; porque este já era um negócio da agência.  Cobrar 1% da comissão ao vendedor veio a ser um negócio possível no século XIX.

Passou a estar escrito, a ser uma norma?

Exactamente. Depois, qualquer comerciante com interesse em vender os seus produtos, eventualmente serviços, como um professor, poderia apregoar na rua. Mas isto seria mais comum para os comerciantes que vendiam bens perecíveis, roupas, lãs; e poderiam ir para a rua, em Lisboa, dizer “chegou um carregamento de lã da Serra da Estrela”, e estavam a anunciar, a apregoar – e a dizer que a sua lã era melhor que a da loja ao lado. Portanto, já estava, de alguma forma, a promover o produto.

Aliás, há pouco dizias que a voz era a tecnologia usada, e na altura não fazia sentido mensagens publicitárias escritas, porque o analfabetismo era a norma.

Isso, por um lado. Por outro lado, não havia imprensa para reproduzir de um para um.

Mas mesmo que fosse desenhada.

Mas havia, havia letreiros e tabuletas.

Mais com símbolos do que com mensagens publicitárias.

Sim. Mais com símbolos do que com mensagens verbais. Eventualmente, diria “vinho”, “hospedaria”, “estalagem”, mas tens toda a razão; haveria um símbolo de um urso ou de um cavalo de uma hospedaria para indicar que na estrada em Santarém, era ali a estalagem. Eu pus uma gravura já do século XX no primeiro capítulo, que mostra uma rua de Lisboa onde se vê três ou quatro desses símbolos; um deles um letreiro com uma mensagem verbal. E o Alexandre Herculano, que era um historiador muito sério, provavelmente inspirado em fontes fidedignas medievais, menciona, pelo menos num dos livros, a tabuleta de animal. Era um sapo de uma tasca, e lá dentro também havia um letreiro a anunciar o vinho, que era ‘não sei de onde’.

De qualquer modo, o pregão foi evoluindo, e encontramos muito o pregão, quase até aos nossos dias, nas feiras. O vendedor das feiras que, por sua vez, está associado aos ‘vendedores da banha da cobra’; ou seja, o pregão foi perdendo credibilidade. Concordas com esta visão que associa muito a voz com os ‘vendedores da banha da cobra’?

Não; primeiro, porque nós temos pregões – ou, se quiseres publicidade feita nas ruas, e nos mercados, como com o peixe fresco: “há aqui robalo, olha a sardinha a 10 euros o quilo” – e isto é uma publicidade, muito simplificada, mas é, e não é a ‘banha da cobra’.

Cartaz Frutas de Natividade colecção ECT (Foto: D.R.)

Mas é algo que já não se vê muito?

Já não se vê muito. Mas também há os restaurantes que chamam os clientes, não é bem como pregão, mas que chamam por voz. E, por outro lado, com a chegada da rádio e depois do cinema sonoro, regressou a voz. E o pregão é o slogan, chamamos-lhe assim. E, portanto, há uma evolução; não é uma ruptura absoluta com o que vem de trás.

A partir do século XVIII ou XIX, começam a surgir mais mensagens publicitárias escritas, que tem a ver também, de certa forma, com a evolução da literacia das sociedades. Nesses primórdios, já conseguiste encontrar coisas escritas com alguma ciência, e marketing profissional, ou isso só vai surgir no século XX?

É primitivo, mas acho que é uma tendência praticamente natural. O primeiro anúncio na imprensa portuguesa, em 1715, na Gazeta de Lisboa, é de um professor de francês que chegou a Lisboa e que se anuncia. Eu analisei detalhes no livro.

Era geralmente na última página da Gazeta de Lisboa…

Era na última página, em itálico, separado com filete. Eu analisei em detalhe esse anúncio por ser o primeiro, e porque fui à procura precisamente de elementos que são, digamos, a proto-publicidade profissional. Porque o homem, quando se anuncia, tem informação factual. E o homem acaba de chegar de França, portanto, não é um tipo qualquer, é um français. E ele diz que dá aulas também a crianças, e por aí fora. Portanto, já há ali elementos, com um adjectivo ou outro, em que indicam que é necessário valorizar aquilo que se tem para oferecer, seja um serviço ou produto.

Se não me engano, na Gazeta de Lisboa já começam a surgir notícias ou informações que, na verdade, parecem mais publicidade, certo?

Não analisei isso…

Eu reparei nisso numa ou outra situação quando consultei a Gazeta de Lisboa por outras causas. Por exemplo, quando se anunciava determinado tipo de supostos produtos farmacêuticos.

Sim, mas isso eram anúncios, não eram notícias. O da água circassiana, por exemplo… Havia alguns que, de facto, era mais do que magia; era mesmo aldrabice. E foram atacados quer pelas próprias agências de publicidade, quer pelos Estados. Os Estados regularam alguma coisa da publicidade, e isso foi um dos exemplos.

Mas quando se iniciou essa regulação? Havia os anúncios falsos, certo?

Sim, mas isso é outra coisa, que eu encontrei e achei que valia a pena mencionar. E por outro lado, os primeiros anúncios impressos escritos começam em 1715, e os primeiros “fake ads” que encontrei são de 1735. Isto significa que, nestas primeiras décadas, a publicidade adquiriu já um carácter próprio – uma metalinguagem própria –, que leva a que possas gozar com ela. Assim como tu podes gozar com os ‘gajos’ que fazem relatos de futebol, ou com os políticos porque falam de uma determinada maneira, etc. Nesta altura, rapidamente aparecem falsos anúncios a gozar com os anúncios verdadeiros. Porque esses anúncios verdadeiros utilizavam já uma linguagem própria e tinham características que poderiam ser surpreendentes. Analisei três anúncios falsos, e há um que goza com o facto de haver um anúncio a dizer que se vende vegetais frescos no Mercado da Ribeira, ou num desse género. E eles gozam porquê? Primeiro, porque toda a gente sabe que existe um Mercado da Ribeira, e depois, também sabem que se vende lá vegetais. Portanto, estar a dizer isto era uma coisa estranha para vir impressa num jornal. E de repente, vir assim uma informação deste género, há aqui uma certa democratização daquilo que se está a dizer. Pode não ser a linguagem ainda, mas há uma democratização daquilo que se está dizer. Já era uma coisa comum alguém dizer que tinha para vender, por exemplo, canela que veio da Índia, mas aparecer no mesmo jornal que diz que o Rei fez isto ou aquilo, ou que há uma guerra entre a Rússia e a Prússia. Portanto, há uma democratização, que depois explode no século XIX.

Com dois dos seus livros ‘gémeos’, no dia em que os recebeu, em Novembro de 2023.
(Foto: D.R.)

Mas no início, as pessoas estranhavam?

Não temos informação sobre essa recepção. Mas estes anúncios falsos são precisamente um sinal que mostra que as pessoas deveriam achar surpreendente, não só aquilo que se anunciava, como a forma como se fazia. E com um determinado tipo de linguagem para chamar a atenção, criar o interesse e o desejo para levar as pessoas a comprarem. O anúncio francês, na página 45, diz: “faço aviso de pessoas curiosas de língua francesa, haver chegado a esta corte há pouco tempo um estrangeiro, apelidado de Villanueve, francês de nascimento, natural da cidade de Paris, o qual fala línguas latina, alemã, italiana, castelhana e portuguesa. E tem um método muito fácil para ensinar em pouco tempo toda a sorte de pessoas, tanto às crianças de cinco para seis anos ou aquelas que quiserem serviço do seu expresso”. Portanto, como se pode ver, há aqui já essa protolinguagem.

É sobretudo com o liberalismo no último quartel do século XIX que a publicidade explode, também um bocado por causa da burguesia endinheirada e mais culta, e começam a surgir os primeiros jornais. Essa foi uma corrente generalizada em todos os periódicos que analisaste, ou havia uns que eram como o PÁGINA UM, e não tinham publicidade? [risos]

Exactamente.  A explosão da imprensa, com a liberdade de imprensa em 1820, faz-se com o modelo da altura nos jornais periódicos, que é: os jornais eventualmente vendem-se numa loja, na tipografia, ou em uma ou duas livrarias; é no espaço da cidade, porque não há comboios, e não há maneira de transportar facilmente as coisas. E o modelo de assinaturas, que é vital. E por isso é que, naquele “cemitério de imprensa”, sobre o qual escreveste no outro dia, há muitos. Há publicações periódicas que só tiveram o número zero. Porquê? Porque era um número-prospecto, que fazia com que depois tu dissesses “este jornal é bestial, vou assiná-lo”. Havia muita gente que assinava e depois não pagava, isso está mais do que documentado e, portanto, os jornais depois acabavam por fechar, por várias razões. Uma delas era porque era feito só por uma pessoa, e às vezes ele suspendia o jornal porque ia sair para férias, ou sair de Lisboa. Portanto, era uma coisa muito pouco profissional, mas era aquela coisa de “vou aproveitar a liberdade para falar e escrever as minhas ideias”. Além disso, a maior parte dos jornais eram o que se chamava “jornais de partido”. Eram feitos por um grupo de amigos da mesma linha política, da mesma loja maçónica, ou que se encontravam no mesmo café, e faziam a publicação. Portanto, não era uma coisa altamente profissional.

Ou seja, quase todos eles começaram, digamos, por um grupo de amigos. Mesmo, por exemplo, o Diário de Notícias. Ou aí já foi diferente, e já havia uma intenção de um grupo de investidores de fazer um jornal que não era para morrer dali a uma semana?

O primeiro jornal que tem um modelo moderno é “O Português”, do Almeida Garrett e do Paulo Midosi. Eles começam como um jornal de assinaturas, profissional. Diz que tinham imensa gente a trabalhar para o jornal. Tinham imensos assinantes e, portanto, a coisa estaria a funcionar bem. Mas eles não pensaram em publicidade, porque na altura não era uma coisa em que se pensasse automaticamente. O primeiro anúncio só aparece no número 6 ou 7, e é de um tipo português que está na Alemanha e que oferece quartos para portugueses que queiram ficar lá, com refeição e tudo. Se calhar até é uma coisa de um português estrangeirado que quer utilizar um jornal português para anunciar publicitariamente. Só a partir daí, parece que eles ficaram “epá, esquecemo-nos disto”. Aquilo depois não tem desenvolvimento, porque vem o Miguelismo e as lutas políticas, que impedem o desenvolvimento do jornal. A seguir, aparece o “A Revolução de Setembro”, que é um jornal altamente politizado quando aparece, mas que vai evoluindo para um jornal com uma linha política, mas mais de informação geral. Entretanto, também aparece no Porto o “Comércio do Porto”, da burguesia local, e que só se vendia na sede do jornal; que é uma coisa completamente bizarra para nós hoje, mas na altura não era.

Cartas relativo a livros escolares (Foto: D.R.)

Ainda não havia ardinas, nessa época?

Não; é precisamente o Diário de Notícias que introduz o modelo moderno da publicidade em Portugal. Em 1864, saem dois prospectos, que eles chamaram dois números-programa, se não me engano, mas também prospectos, no dia 29 e 30 de Dezembro de 1864, e depois no dia 1 de Janeiro de 1865, saiu o número 8. E é uma das razões principais por que eu começo o terceiro capítulo em 1865. Porque é que é um novo modelo de negócio? Porque eles fazem uma coisa de tipo empresarial; que para se vender tem de ser apolítica, no sentido em que é apartidário. E é por isso que não tem artigo de fundo, não tem editorial. Não quer dizer que seja totalmente apolítico, porque isso é impossível, mas é bastante. E tem uma empresa, e baixam o preço. Fazem um jornal diário por 10 réis, quando alguns jornais vendiam a 40 réis.  Já tinha havido experiências de vender jornais mais baratos, mas eram coisas menos profissionais e não de informação geral. E criaram a profissão de ardina, que já era anunciada no futuro concorrente, na “Revolução de Setembro”. No final de Dezembro de 1864, há um anúncio a dizer que vão precisar de rapazes, e o Diário de Notícias depois volta a pedir mais em Janeiro.

Mas não identifica ?

Eu acho que identifica, diz “Diário de Notícias” no título.

Mas esse modelo foi importado?

É importado de França. Portanto, temos isso, temos também a ligação à Europa por comboio em 1864, temos os primeiros desenvolvimentos do caminho de ferro em Portugal, que começa com Dom Pedro V. E o Diário de Notícias no princípio tem poucos anúncios, mas rapidamente ganha uma grande dimensão. O Comércio do Porto já era um jornal assim, só que não se vendia nas ruas, e a Revolução de Setembro, em Lisboa, também não.

Conseguiste saber qual seria a tiragem nessa altura, em 1860?

Sim, eles dizem, não escondiam isso. Ao fim de um ano, o Diário de Notícias vendia uns poucos milhares já.

Ou seja, seguramente vendia mais do que hoje.

De certeza!

E com uma população muito menor, e com uma baixíssima literacia.

Está aqui: a Gazeta de Lisboa chegou aos 2.500 exemplares entre 1742 e 1748. O Grátis, que era um jornal de publicidade – isso é outro capítulo do livro – tirava 2 mil exemplares, mas é um tipo de imprensa diferente. O Diário de Notícias, com três meses de existência, vendia diariamente mais de 6.000 jornais.

Começou com quantas páginas?

Eram quatro páginas, como a maior parte dos jornais. E a tiragem subiu para quase o dobro, 9.600, ao fim de um ano.

Falavas dos jornais gratuitos, e também gostava de falar dos almanaques. Eles viviam basicamente da publicidade, certo?

Há alguns almanaques que têm muita publicidade, e pelo que eles escrevem nos primeiros números, percebe-se que vivem através da publicidade. Mas o almanaque era uma coisa extremamente popular. Há almanaques católicos reacionários, operários, socialistas, ou da alta burguesia. No Porto, há um que é o almanaque do Highlife, da alta sociedade.

Que tipo de textos tinha?

Tinham listas de pessoas, de moradas de serviços públicos, de lojas, empresas ou fábricas.  Punham os horários dos comboios, e dos transportes públicos. Tinham o calendário e a lista dos Santos, as estações de correios.

O Estado ao ver esse negócio a florescer, se calhar quis meter o dedo, ou não?

Sim.  É uma história interessante, e até tem a ver agora com este delírio que tem havido com a questão da imprensa e do Estado.

(Foto: D.R.)

Também havia uma Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) do século XIX? [risos]

 Havia a censura, na altura.

Mas havia necessidade de registo, ou era mercado livre?

Não, não havia registo. Mas quando as coisas crescem nas sociedades precisam de ser organizadas, senão é o caos. Portanto, inicialmente quase não havia jornais, portanto não havia nada disso, mas depois começa a haver autorregulação. Começa a haver a Associação de Jornalistas do Porto, a Associação de Jornalistas de Lisboa…

Ainda no século XIX?

Nessa altura, acho que teria de haver algum registo, porque os jornais tinham de pagar o imposto do selo, que é o primeiro imposto que há em Portugal, enquanto tal. Julgo que vem da Inglaterra e rapidamente é adoptado em Portugal [risos]. Porque uma coisa que vai ‘sacar’ dinheiro às pessoas é logo bem-vindo pelo Estado. Acho que é no reinado de D. Afonso VI, se não me engano. Depois, a seguir à Revolução Liberal, há um movimento com Mouzinho da Silveira – que era um tipo muito esperto –, com o apoio de outros deputados, para fazer com que o imposto do selo não fosse aplicado à imprensa. Ele disse que isso seria o fim da imprensa e, portanto, o fim da liberdade. Era neste ponto de vista que estávamos, e que acho que seria interessante os políticos de hoje, e até os jornalistas, estudarem esse período. E isto aconteceu: os jornais foram parcialmente isentos do imposto do selo, o que foi favorável ao desenvolvimento da imprensa. E em França tinha havido a mesma discussão, e lá também não foi tão alto quanto o Governo quereria.

Portanto, os jornais e a publicidade vão crescendo de mãos dadas ao longo do século XIX, certo?

Sim, ao longo do século XIX, a maior parte dos jornais – mesmo os regionais ou concelhios, e se calhar os mais partidários – começou a querer utilizar a publicidade como fonte de financiamento.

E tal como começou a haver, pelo menos nos jornais principais, jornalistas profissionais, também a publicidade se foi profissionalizando?

Sim. Essa parte eu não desenvolvi. Num outro livro meu sobre a greve geral de 1903 no Porto, escrevi um capítulo grande sobre a produção noticiosa. O jornalista era o tipo que estava sentado na cadeira, entregava as folhas e alguém ia levar lá abaixo à tipografia. O jornalista era o que estava sentado na secretária, o que ia para a rua era o repórter, e havia os informadores. O repórter era o tipo que ia investigar, e depois ainda havia o informador, que era o nível mais baixo. E isto originava um pagamento a este informador. Portanto, havia esta estrutura, mas isso depois foi rapidamente alterado. O sector da publicidade começa-se a profissionalizar em Portugal, quando em 1864-65 aparecem as primeiras agências de anúncios, podemos chamar assim. Eram agências de publicidade, mas chamam-se agências de anúncios porque não tinham necessariamente a parte criativa. Compravam o espaço, por exemplo, uma página do Diário de Notícias, e depois ganhavam dinheiro a revender aquele espaço a quem quisesse.

Aliás, os jornais ainda do nosso tempo tinham e têm pequenos anúncios e até recepcionavam anúncios individuais…

Exactamente. Mas isto era para todo o tipo de anúncios. E há um tipo muito famoso, sobre quem eu desenvolvi a investigação o mais que pude, que é o Brown Peixoto. Ele criou a primeira agência de anúncios, da qual saiu e depois criou a Agência Primitiva de Anúncios. Primitiva, porque era a primeira. Ele reclamava ter sido o criador da primeira, mas teve que a abandonar e, portanto, depois faz a Agência Primitiva. Foi muito famoso porque trabalhou muito com o Diário de Notícias, que o promovia muito. Promovia-o no sentido de publicar artigos sobre ele, sobre o seu profissionalismo, a sua honestidade, etc. Porque era também uma maneira de promover a publicidade no Diário de Notícias e de legitimar a publicidade, que era uma coisa extremamente importante naquela altura. A publicidade precisava de ser legitimada como algo necessário à sociedade, aos indivíduos, à burguesia, ao desenvolvimento económico e, portanto, ao país. Era uma coisa quase patriótica. E isso está muito bem apanhado em alguns textos que eu consegui encontrar.  E a primeira defesa que eu encontro bastante sólida e robusta da publicidade, é precisamente num almanaque de 1865. Por isso, mais razão para começar o capítulo ali. E depois, as agências começam a ser criativas. Este tipo que tinha a Agência Primitiva, depois dizia “nós fazemos o arranjo gráfico, ajudamos na escrita do texto”…  partir daí, desenvolve-se a agência tal como nós viríamos a conhecer mais tarde.

(Foto: D.R.)

Como canal, a imprensa foi óptima para a publicidade. Mas ainda antes da nova revolução do cinema e da rádio, e para além da imprensa, a publicidade foi-se desenvolvendo de muitas outras formas mesmo ao longo do século XIX…

É extraordinário, porque a publicidade foi altamente expansiva, para todos os meios possíveis e imaginários. E por todos os meios, digamos técnicos ou materiais que fosse possível utilizar. Podemos ainda falar da imprensa, no sentido de impressão, e temos em primeiro lugar o cartaz, que é extremamente importante e que se desenvolve particularmente depois da litografia permitir a impressão a cores com alguma facilidade. E que convidava a que fossem artistas a fazer porque era desenhado na pedra. E, portanto, não era qualquer um; já não era o tipógrafo que arranjava as letras, para fazer um anúncio de texto verbal. Também já falámos dos almanaques. Havia todo o tipo de materiais impressos, desde copos de piquenique – que eu reproduzo no meu livro – que os burgueses levavam; em vez de serem de vidro, eram copos de papel. E, portanto, todos os materiais impressos possíveis e imaginários, todos os locais para colocar esses papéis, as paredes, as estações dos comboios, e mais tarde também nas estradas, vemos anúncios impressos. Nos panos de cena dos teatros, também, às vezes em forma de cartaz, ou em outros formatos. E depois havia ainda loiças, azulejos, objectos utilitários como talheres, cinzeiros e pratos, mata-borrão, que aparece mais tarde… Postais ilustrados.

Mas, além disso, como se fazia publicidade nas ruas, para atrair clientes no imediato? Se percorrêssemos, por exemplo, uma zona no centro de Lisboa, como eram as fachadas das lojas?

As lojas também ganharam, elas próprias, individualidade. Porque as lojas antes não tinham nomes, e nós vemos isso nos anúncios. “Vende-se na rua tal, na casa do Zé Fernandes, na Rua dos Correeiros”.

Pois, era a ‘casa de’ em vez de ser a loja com um nome próprio…

Sim. nessa altura a ‘casa de’ não surgia no sentido de casa comercial. Devia ser duas coisas, mas não tinha nome. Agora as lojas têm nome, uma fachada, depois começariam a ter montras, que também não tinham nessa época

E uma montra é publicidade?

Sim. Mais tarde passou a haver também concursos de montras, e especialistas nisso.

Ainda no século XIX?

Quer dizer, já havia montras, mas profissionais, só localizei no princípio do século XX. E com grande desenvolvimento no fim dos anos 20, com o Fred Kradolfer, um suíço que estudou publicidade, provavelmente teve contacto com Bauhaus e tudo; o design da publicidade, digamos, mais evoluída, e que fazia as montras do Instituto Pasteur em Lisboa. E os publicitários iam todos lá. Quando havia uma nova montra, juntavam-se todos para ir ver as montras do Kradolfer no Instituto Pasteur.

Ou seja, aquela ideia de ir passear à rua, passear era também para deslumbrar as montras das lojas.

Mas as montras já vinham de antes. Eu não sei se pus [no livro] a citação da ruiva do Fialho de Almeida, em que a ruiva e o seu namorado descem ao Chiado e vão ver as montras. E estamos a falar de 1880, e essas montras estavam, de alguma forma, iluminadas. Além disso, havia muitas tabuletas e muitos letreiros, mas isso já se conhece desde o princípio do século XIX, daquele célebre Taful de Luneta de 1806. E que eu analisei em várias páginas, porque é magnífico. É a melhor amostra que nós temos de anúncios em Portugal até ao século XX já muito avançado.

Antes de irmos para a publicidade no Estado Novo: havia alguma regulação no sentido de evitar, ou a publicidade enganosa, ou a comparativa, do género “este é melhor do que o outro”?

Eu só conheço autorregulação. Por exemplo, o Diário de Notícias era muito claro a dizer que rejeitava determinado tipo de anúncios, ou insultos nos tais pequenos anúncios. Esses anúncios é que são a revolução democrática da publicidade.

(Foto: D.R.)

Um bocadinho como está a acontecer com o Facebook?

Ou o OLX e o LinkedIn, em que as pessoas se oferecem para trabalhar. O que é aquilo senão o anúncio classificado de há 150 anos? É a mesma coisa. Como o professor francês do século XVIII; se fosse hoje, estava no LinkedIn [risos].

Mas podia-se fazer publicidade comparativa, dizendo-se por exemplo “eu sou a melhor casa”?

A publicidade comparativa é uma coisa mais americana. Eu encontrei um caso ou outro, mas em que às vezes não mencionava o concorrente. A ideia de defender o consumidor é inerente ao desenvolvimento do capitalismo. E, portanto, há anúncios em que se começa a ver a palavra “consumidor” no século XIX. Dou o exemplo de um anúncio que eu reproduzi no livro, do sabão Frade de Gaia, em 1896: “Resolvemos criar esta marca especial de sabão que ofereça ao consumidor absoluta garantia. Os consumidores encontram neste sabão qualidades especiais que muito recomendam o seu consumo”. E prosseguem: “para absoluta garantia do consumidor, todas as barras de sabão levam imprimidas em alto relevo o busto do Frade, que nos transmitiu o principal segredo da sua fabricação”. Isto poderá ser treta, mas é muito interessante aqui o discurso, e não a realidade do produto, que não podemos avaliar. Mas esta questão do consumidor, de facto vai-se desenvolvendo. Há anúncios da CUF, já no século XX, que também falam do consumidor como a instância que é preciso defender. Seja pelo preço, pela qualidade do produto, ou porque é português e não estrangeiro.

Portanto, aquele conceito moderno de o cliente ser um parceiro do negócio?

Sim. Também encontrei uma defesa do consumidor, julgo que de 1925, do final da Primeira República, em que um Governo fala da defesa do consumidor, não com esta expressão, mas quase. E depois tens a defesa do consumidor contra a imoralidade e os maus costumes, que começa logo com a ditadura, ainda antes do Estado Novo.

O Estado Novo está, obviamente, muito associado à censura. Mas o regime também exerceu censura sobre a publicidade?

Havia essa possibilidade de censura; na imprensa, não sei como é que era feita. Não encontrei referências a publicidade que fosse sujeita a censura. Os publicitários não queriam fazer política, tratava-se de uma relação comercial, e não iam fazer publicidade que fosse sujeita a censura na imprensa.

Nem em livros de História sobre o Estado Novo?

Há na rádio e também depois no cinema. Porque a rádio é um meio que, se calhar, é mais perigoso do que o jornal, no sentido em que a mensagem chega de uma maneira diferente, mais próxima do ser humano, porque utiliza a voz de uma pessoa. E, portanto, eu registei correspondência da censura para uma rádio do Porto. E também entrevistei uma pessoa que me disse que os textos, antes de gravados, tinham que ir ao Secretariado Nacional de Informação [SNI] para ser aprovados. E o SNI era muito rápido a aprovar ou a rejeitar. E uma das rejeições que está registada no meu livro, nessa rádio do Porto, é a defesa do consumidor. Eventualmente utilizaram alguma linguagem excessiva para o que os censores achavam que era legítimo fazer, mas há outras que é para defender os consumidores. Ou porque o preço está errado, ou a mensagem tem uma informação que não poderia dar…

(Foto: D.R.)

É sabido que o Estado Novo usa a publicidade também como estratégia política. O Secretariado de Propaganda Nacional [SPN] acaba por ser uma agência de publicidade do Estado, que transmite a visão do país que Salazar quer que se tenha. Eles tinham bem enraizado esse conceito de que a publicidade pode ser uma arma política?

Eu acho que não é “eles”, é “ele”, o António Ferro. Acho que o António Ferro teve, de facto, uma importância enorme nas primeiras décadas do salazarismo. Quase até se quase pode dizer que é o inventor do salazarismo. E uma das coisas que ele fez foi transformar o SPN, desde logo, numa espécie de agência de publicidade que fazia a propaganda. E era difícil de distinguir onde começava a propaganda e acabava a publicidade. Se fizessem um cartaz a dizer “Come to Estoril – Always Sunny”, isto é propaganda ou é publicidade? É publicidade e é feita pelo SPN, que conseguia assim alimentar artistas. Os artistas, mesmo que não gostassem do salazarismo, trabalhavam para uma instituição do salazarismo que lhes dava rendimentos, honorários. E, portanto, todos eles acabavam por trabalhar para o salazarismo.

Mas encontras muitos homens da Cultura que depois acabavam por trabalhar na área?

Todos. Antes da II Guerra Mundial, todos. Enfim, não sei se haveria nessa altura artistas comunistas, por exemplo, ou socialistas, que fossem conhecidos publicamente e que fossem rejeitados. Não há notícia disso antes da guerra. Depois da Guerra é diferente, porque aí há um corte radical na atitude dos artistas em relação ao regime. E quando há um deles que permanece, e que defende o trabalho do SPN, já há outros que estão um bocadinho contra isso.

Na literatura, sobretudo no século XX, surgem livros com capas trabalhadas.

Não abordo muito isso no livro, porque a capa não é, digamos assim, uma forma de publicidade directa. Não tem uma mensagem comercial; as capas não têm sido consideradas como publicidade.

Temos homem da Cultura e muito da Literatura na publicidade. Alguns com frases famosas, como a da Coca-Cola, que se diz ser de Fernando Pessoa: “primeiro estranha-se e depois entranha-se”. Mas também é conhecido, por exemplo, o trabalho publicitário de Alexandre O’Neill.

Ambos foram publicitários. Mas na altura do Fernando Pessoa era diferente. A frase não é exactamente assim, essa é uma versão mitológica.

Então qual é a versão real?

A frase é: “No primeiro dia, estranha-se; no quinto dia, entranha-se”. Esses anúncios saíram na imprensa, em dois ou três jornais; a uma coluna e com um ou dois centímetros de altura no máximo. O primeiro dizia “na próxima semana já se pode tomar a célebre bebida americana Coca-Cola”. Outro dizia “o refresco americano Coca-Cola bebe-se nos principais estabelecimentos chiques de Lisboa”. E depois, a 16 de Julho de 1927, aparece o anúncio com o slogan escrito por Pessoa. Este foi publicado algumas vezes. O que acontece é que ele fez publicidade, e tento mostrar que a publicidade era algo de natural, digamos, ao Fernando Pessoa. Para ele era uma coisa perfeitamente normal fazê-lo. Na própria poesia. Depois recupero alguns elementos do Álvaro de Campos com publicidade. O primeiro texto que se conhece de uma proposta de uma campanha publicitária é escrita por Fernando Pessoa, para desenvolver o turismo na Costa do Sol. Aquilo que acontece em relação à campanha da Coca-Cola é que depois a bebida foi proibida por um grande defensor da saúde pública, o director da Saúde de Lisboa, Ricardo Jorge. Foi ele que mandou apreender o produto existente no mercado e deitá-lo ao mar. Pessoa, ao que parece, achou o máximo, porque Ricardo Jorge utilizou o próprio slogan para dizer que, se se entranha, é porque é viciante e, portanto, é uma droga. Portanto, Ricardo Jorge utilizava a linguagem publicitária de Fernando Pessoa, o slogan, como um dos argumentos para proibir a Coca-Cola. Mas, e eu falo disto no livro, pode ser que também tenha havido um interesse do Governo na altura de diminuir as importações, porque a Economia portuguesa estava péssima em 1926. Até houve Governos a cair por causa disso.

(Foto: D.R.)

Então, não foi o Estado Novo que proibiu?

Não, em 1927 não foi o Estado Novo. Foi o Director-Geral de Saúde do período da ditadura.

E no caso do Alexandre O’Neill?

Alexandre O’Neill era publicitário. Os anúncios que se conhecem dele são mitológicos também. O “há mar e mar, há ir e voltar” é uma publicidade de serviço público, para as pessoas terem cuidado quando vão tomar banho. E o outro, que ficou mitológico por causa do ‘sexualismo’, que é o “Bosch é bom”.  Mas, anúncios feitos por ele, não está investigado mais que isto. Eu conheço dois “anúncios” feitos por ele, que são os textos de dois filmes publicitários; o que é excelente. Um é o texto de um filme do Fernando Lopes, que se chama “Vermelho, amarelo e verde”, e é para a prevenção rodoviária portuguesa, por causa dos semáforos, que eram uma novidade em Lisboa. E depois há um outro texto, que é um horror, para o Aviário do Freixial, que era uma empresa altamente moderna, que vendia milhares de frangos por mês ou por dia. E ele fez o texto para o filme de 10 minutos. E é péssimo, mau em todos os sentidos.

Mas havia muitos escritores na publicidade, nesta altura. Havia artistas gráficos, pintores, aguarelistas, designers. Depois, começou a haver escritores e jornalistas, etc., porque o regime fascista proibia intelectuais e licenciados de serem professores ou trabalharem no Estado. E, portanto, eles iam trabalhar para agências de publicidade. E nas agências de publicidade, ou eram também pessoas do contra, que eram proprietárias e directores, ou estavam-se nas tintas. Aquilo que queriam era pessoas que tivessem qualidade no trabalho. Eu apresento uma lista, no meu livro, de escritores, hoje considerados melhores ou piores, que trabalharam na publicidade e chegaram a ser donos de agências, como o Alves Redol, o pai do António Costa, o Orlando Costa, que também foi publicitário e foi proprietário de uma agência. Aliás, por ironia do destino, o comunista Orlando Costa foi saneado da sua agência depois do 25 de Abril. E não foi antes [risos]. Não foi “atacado”, enquanto publicitário, pelo Estado Novo. E há outros.  A nossa antiga camarada jornalista, Diana Andringa, de extrema-esquerda, foi presa na agência. E, portanto, eu digo que provavelmente isto fez com que houvesse menos anticapitalismo em Portugal na parte da intelectualidade, porque eles estavam a promover o capitalismo. Fiz essa pergunta à Diana Andringa e ela fugiu um pouco à questão, porque se calhar nunca lhe tinha ocorrido que sendo publicitária, como forma de vida, estava a promover o capitalismo.

Esse novo elã da publicidade também ganha força com a Rádio e a Televisão. É aí que rapidamente se moderniza a linguagem?

Bem, a rádio traz logo a oralidade e traz a música, e uns textos curtos – já não podem ser textos grandes, como havia muito nos anúncios na imprensa. Não tive qualquer maneira de estudar o impacto da publicidade radiofónica no conjunto da criatividade publicitária, mas era uma área muito importante. Até porque havia programas patrocinados por marcas; isso está tudo no meu livro. A televisão é que traz um corte de conhecimento, de criatividade, e de maneira de pensar a publicidade. Há um antes e um depois da televisão. A televisão vai influir na própria maneira como os publicitários pensam em toda a publicidade. Ou seja, se eu fizesse um anúncio para um refrigerante, estaria a pensar no spot publicitário de televisão. E, depois, transferia essa linguagem para os anúncios de imprensa e de rádio. Portanto, de facto, a televisão revoluciona o panorama.

E, às vezes, mesmo que uma campanha tenha vários canais, na verdade ela repete aquilo que a pessoa apreendeu no anúncio da televisão, não é?

Sim, e lembrar-te-ás exactamente dos anúncios que diziam “anunciado na TV”. Portanto, o resto da publicidade espelhava isso. Tenho entrevistas que dizem isso, e que estão no livro. Portanto, também traz a simplificação, a redução do número de palavras; e o reforço do slogan. Traz uma certa narratividade, de novo, que já existia na imprensa no século XIX. E, depois, traz a ligação da imagem e do som com a linguagem verbal, que torna tudo completo. Porque tu podes mostrar o produto, e podes mostrar a sopa a ser feita, e o carro a andar, e a roupa a ser lavada. Portanto, isso foi uma alteração absolutamente extraordinária que a televisão trouxe, e acabou um bocado com os filmes publicitários de 10 minutos que passavam no cinema.

Hoje, qualquer pessoa da nossa idade se lembra dos anúncios da Telecel, Pasta Medicinal Couto… Houve uma época de ouro da publicidade em Portugal?

Acho que há uma época de ouro, porque coincide também com a época de ouro das agências, que vai desde o fim dos anos 50 até aos anos 80 e 90. Há uma época de ouro com o anúncio publicitário, porque também havia uma concentração da nossa atenção no media televisivos, e depois deixa de haver. Portanto, víamos muitas vezes os mesmos anúncios. Há uma época de ouro de criatividade, em que a criatividade era um pouco independente do próprio produto. Era importante que passasse a mensagem, que chamasse a atenção. Deves ser muito novo para te lembrares, mas havia um anúncio que eram dois crocodilos a falarem um com o outro, durante uns 20 segundos. E, se não me engano, era um anúncio de lâminas de barbear que tinham o símbolo do crocodilo. Não diz que a lâmina é boa, que dá para fazer a barba 30 vezes com a mesma lâmina, nada disso. São dois crocodilos a falarem um com o outro. Esse tipo de criatividade, julgo que desapareceu. E havia muito essa magia; a publicidade tinha um elemento mágico forte, não no sentido de mentira, mas de hipérbole, de ficção, de boneco animado. E isso acabou. Mas essa era acabou. Outro exemplo de hoje: recentemente apareceu por todo o lado o anúncio do Ikea, que brinca com a história dos 75.800 euros. Está muito divertido, e nos dias de hoje aquilo é completamente fora da caixa. E o que é interessante é que no Facebook, a única rede que eu sigo, houve várias pessoas que chamavam a atenção para isso. “Até que enfim que há um anúncio que sai da caixa, que não é mais do mesmo, que tem coragem”. Pode ser que agora os jovens publicitários acordem para a necessidade de chamar a atenção, porque se for sempre a mesma coisa, não chamam a atenção. E isso é o erro mais crasso da comunicação. Isto é básico. A necessidade de chamar a atenção não é da publicidade, a publicidade apenas codificou este processo. “Atenção, interesse, desejo, acção”. Mas isto está em toda a comunicação, até quando conversamos um com o outro no café. Mas a publicidade perdeu um bocado este sentido de acção.

Se calhar é um sinal dos tempos. A publicidade tem agora medo de ofender?

Sim, tem. Há uns 10 ou 20 anos, a publicidade quis ofender, e ofendeu, e ganhou com isso; porque chamava muito a atenção. Se eu criar um anúncio para um sítio público, vamos imaginar que no Marquês de Pombal. E eu ponho lá uma coisa ofensiva ou que choca – se não sair nos jornais, as redes sociais vão comentar. E o que é que acontece? Em vez de gastar, por exemplo, 100 mil euros em publicidade, eu paguei à agência, mas só coloquei num lugar do país. Foi o que começou a fazer a Iniciativa Liberal [IL] quando apareceu há três anos: só tinha um exemplar do anúncio, mas como aquilo era fora da caixa, houve uma ‘viralização’ de um único anúncio. E não foi só a IL que o fez; antes, houve outras marcas a fazer. Eu lembro-me de anúncios desse género em Paris, em Nova Iorque, de marcas grandes, como a Calvin Klein… Mas isso acabou, porque entretanto, veio um pouco a cultura do cancelamento, “woke”, que é uma tendência social de algumas gerações. Houve gerações que começaram a ficar ofendidas com tudo.

E achas que isso vai passar?

Em parte, acho que sim, porque tudo passa. Mas se levarmos a sério as redes sociais, ou aquilo que as pessoas lá põem, continuará, em parte. Eu acho que a falta de criatividade e o tal medo têm a ver também com uma certa normalização da actividade. Hoje, já são pessoas que saíram da universidade; já não é o Sttau Monteiro, nem o Ary dos Santos, que subia às mesas com os clientes lá e tudo. Isso acabou.

E se calhar hoje são mais formatados.

Em parte, sim. Mas entram às 9 horas e saem às 17. E os outros não. Passavam noites inteiras, se fosse preciso, a fumar e beber e a fazer outras coisas, a criar e a tentar ser o melhor possível. Eu mostro casos desses, como o do Porto Ferreira: foi Maria Eduarda Colares, que morreu no ano passado, que criou. E foi um processo, não foi fácil criar esse slogan, que é extraordinário e que servia a função; porque era preciso pôr as pessoas a beber. Havia um estudo de mercado que mostrava que os portugueses não bebiam vinho do Porto; era uma prenda que se oferecia, e não se abria a garrafa. Depois oferecia-se a outra pessoa, e chegava a haver garrafas que passavam por 6, 10, ou 15 pessoas [risos]. Portanto, era preciso criar a magia de abrir a garrafa. Foi o que eles conseguiram e, de facto, o consumo do Porto Ferreira, e das outras marcas, aumentou extraordinariamente. E ela também me contou outras cenas em que passavam a noite inteira a criar anúncios. Um dos episódios foi quando, uma vez, ela foi para casa, e os colegas ficaram toda a noite na agência porque tinham de criar um slogan e um anúncio para o Mokambo.  A Nestlé tinha dito que ia descontinuar o produto se não aumentasse as vendas. No dia seguinte, ela chegou à agência e saiu-lhe o slogan da ‘boca para fora’: virou-se para os colegas, que estavam todos podres de sono, e disse “vá lá, diga bom dia com Mokambo”. E o produto ainda aí está.

Eduardo Cintra Torres numa ‘selfie’ tirada junto do cartaz de Raul de Caldevilla para as bolachas Invicta (1917), no alfarrabista Chaminé da Mota, Porto. (Foto: D.R.)

Como vês o futuro da publicidade?  Daqui a 100 anos, a publicidade pode ser diferente da que temos hoje?

Não costumo prever o futuro. O que posso falar é como eu a vejo hoje. E isso dá um sinal de tendência. Hoje, a publicidade está muito dispersa, muito na Internet, não está particularmente criativa. Arranjou novos canais que tiveram e têm grande sucesso, com as influencers, em que parece que não há magia. Portanto, a magia, de facto, sofreu um downgrade total. Porque já não tem dois crocodilos a falar em desenho animado; tem uma menina que está a vender, imaginemos, esta caneca com água. Mas ela está a vender e aquilo foi feito por um fotógrafo profissional, ela está vestida de determinada maneira, num determinado lugar.

Por acaso essa caneca que estás a usar é porreira para beber chá [risos].

Isto é publicidade [risos]. Mas, portanto, a influencer vende isto como se não fosse publicidade, não tem aquela mensagem. Depois, existe a noção, que será em parte, ou totalmente, verdadeira, de que as novas gerações não querem ser enganadas pela publicidade. E, portanto, ao não quererem ser enganadas pela publicidade, também haverá uma rejeição em todos os graus da criação publicitária, da publicidade mais mágica, com mensagens fora da caixa.  Depois tens um lado mau que é, se os anúncios forem 30 segundos, a agência cobra X, se forem de oito segundos, a agência cobra muito menos. Portanto, quer é fazer anúncios grandes. E criam dificuldades aos anúncios mais pequenos. Os próprios criativos acham que não é possível contar uma história em oito segundos, o que não é verdade. Houve um concurso de mini-contos com Hemingway e outros autores, em que eles tinham de escrever histórias com seis palavras. Era uma narrativa. E, portanto, não consigo perceber esta economia, era uma questão de se alterar, mas provavelmente demorará tempo. E finalmente, há outra coisa, que também me disseram. Antigamente, o criativo lidava com pessoas nas empresas. E eram pessoas que – como disse a Maria Eduarda Colares, a mulher do Lauro António – gostavam do produto, respeitavam-no, conheciam-no, trabalhavam para o produto, e respeitavam os publicitários. E não percebiam de publicidade; se calhar nem sequer eram formados em marketing. Agora, são pessoas mais jovens, que nunca trabalharam em empresas, digamos assim, noutros lugares, e fazem com que os anúncios sejam criados para os seus pares. E quem são os seus pares? São uma geração de uma determinada idade, que vai ao Bairro Alto ou para a Baixa do Porto beber uns copos. Jovens papás ou mamãs que gostam de determinadas coisas, e que não são a esmagadora maioria da população. Portanto, aquilo eventualmente falha o público-alvo. Por isso, agora ligamos a televisão para ver anúncios, e não gostamos de nenhum. Enquanto eu e a minha geração, ainda antes do 25 de Abril ou depois, víamos os intervalos mais do que os programas, e decorávamos os anúncios. E adorávamos os anúncios e falávamos deles. Porque era uma linguagem nova para nós, mas também porque eram criativos e interessantes.

Virando aqui um bocadinho a tónica para a política: qual dos nossos políticos no activo, daria um melhor trabalhador de uma agência de publicidade? [risos] Todos eles têm publicitários a trabalhar para eles, certo?

Teria de ser um publicitário a dizer. Mas acho que o mais eficaz, e mais livre de um discurso preparado por agências de comunicação, é o [André] Ventura. O grande sucesso do Chega é o grande sucesso do Ventura como comunicador. Para nós, a política é a comunicação; em democracia, a política é a comunicação.

E é o político mais eficaz? Achas que ele é um produto de comunicação?

Absolutamente. Para já, ele tem um doutoramento. Depois, fez política no PSD, fez comunicação de futebol na CMTV, e há vários anos que tem o seu próprio partido. Ele criou uma comunicação que é bastante própria, que é ‘partir a louça’. Utilizar frases curtas, de uma grande eficácia comunicativa. Não estou a dizer se gosto ou não gosto; pode ser altamente populista, e muitas vezes é. Mas que é eficaz, é, como mostram as sondagens [esta entrevista foi gravada antes das eleições de Março].

As eleições vão-se cada vez mais decidir por essa parte de mensagem publicitária dos partidos?

Os cartazes parece que são muito importantes. Diz-se isso, por exemplo, na Iniciativa Liberal; há uns anos os cartazes terão sido muito importantes. Julgo que são sempre importantes para mostrar o líder, e a mensagem principal, dois ou três slogans. Em democracia, política é comunicação. E ainda bem, porque senão eram cacetadas em cima das nossas cabeças, como antes do 25 de Abril. Mas, portanto, quem comunica melhor, está em vantagem; seja qual for a mensagem. Por exemplo, a Manuela Ferreira Leite quando foi candidata, era péssima comunicadora. Agora, ao fim de 10 ou 15 anos, está melhor. Eu vejo-a às vezes na CNN, e está a comunicar melhor. Mas quando foi presidente, tinha um adversário extremamente difícil e brutal, que era o Sócrates. Mas na verdade, ela era má comunicadora. E se tu comunicas mal a mensagem, como é que podes angariar votos?

E qual é o pior líder, dos partidos com assento parlamentar?

Estamos a falar da comunicação apenas, não do conteúdo da mensagem. O do LIVRE é bastante bom para o seu público-alvo e tem a seu favor os jornalistas, portanto tem imenso tempo de antena. Mas, de facto, sabe comunicar bem as suas ideias. A do PAN tem melhorado bastante também. A do Bloco de Esquerda, penso que é eficaz também; melhor do que a anterior, e mais genuína. Porque a Catarina Martins, como era actriz, notava-se que havia ali um decorar das frases que havia de dizer. No PS, o António Costa podia ser brutal, mas era um comunicador eficaz.

Concordo que era eficaz, mas nem falava bem.

Não falava bem português. Nem o Mário Soares. Mas não impedia que… Eu costumo dizer que o povo não é ortodoxo. O Pedro Nuno Santos tem uma voz muito monocórdica e uma maneira de falar que parece do PCP. Aquela cassete do Cunhal, que tinha aquela prosódia, que provavelmente dos anos que ele passou na Rússia. Uma certa prosódia, que depois, todos os que vieram a seguir também tinham. Este [Paulo Raimundo] agora não tem. E é o pior comunicador, sem dúvida. O Montenegro, não sei se é convincente, mas consegue comunicar; também é muito atacado sempre pelos próprios jornalistas. A maior parte dos jornalistas são pró-PS.

Nem que ele fosse cantor lírico, como o Pedro Passos Coelho [risos].

As agências de comunicação do PS são brutais com os líderes do PSD. Portanto, têm sempre a vida mais dificultada do que os outros líderes todos.  E depois, a IL, com o Rui Rocha, com formação no Facebook [risos]. Porque esteve muitos anos no Facebook, tinha uma graça enorme. Perdeu-se um humorista fantástico do Facebook. Tornou-se uma pessoa séria, mas comunica bem.

E temos o caso famoso de um dos líderes da AD, que não o deixaram falar.

Exactamente, mas isso não é por causa da forma de comunicação, é por causa do conteúdo. Por causa das “gajas boas”… Coisas antigas. Aliás, hoje, tudo o que nós fazemos está gravado.

Do ponto de vista do marketing político e da publicidade, este renascimento da AD coloca aqui em confronto aquilo que era a AD do Sá Carneiro, do Ribeiro Telles e do Freitas do Amaral com esta tríade.

Sim, mas isso não é da ordem da publicidade, acho que é da ordem da política.

Eduardo Cintra Torres ao lado de imagem de Rafael Bordalo Pinheiro, no museu em homenagem ao artista, que também fez publicidade. (Foto: D.R.)

Mas como mensagem publicitária e política, achas que eles quiseram vender isto como um renascimento da antiga AD?

Não sei se é isso. Eu acho que era desnecessário para o PSD; para o CDS foi um seguro de vida. O PPM teve 200 ou 300 votos, até eu tinha mais na minha aldeia [risos]. Eu acho eu que aquilo resultou um bocadinho do medo do PSD de cair por causa do Chega. E então, quiseram fazer uma coisa que agregue e que entusiasme o maior número de pessoas, tal como a AD. O Passos Coelho também fez a PàF, que era uma AD, só não tinha era o PPM.  O PPM também só teve uma figura credível, que foi o Ribeiro Telles. Ainda dizem que o Chega é que é o único partido de um homem só, vejam o Ribeiro Telles [risos].

Por fim, dá-me três exemplos de anúncios que conheces que sejam icónicos ou imperdíveis.

Eu gosto muito de um anúncio que está no meu livro: da Petit Beurre Invicta, na página 108. É um cartaz que fez parte de uma campanha para vender estas bolachas, que estavam aparentemente em risco de estragar, e era preciso escoar. E o Raul de Caldevilla fez uma campanha, que inclui um filme, a reunião das multidões, a subida aos Clérigos, anúncios de imprensa e este cartaz. Também houve um cartaz muito conhecido, que tem a Torre dos Clérigos. Tinha três metros de altura e chamava muito a atenção. Mas eu gosto muito deste porque é um anúncio de uma vitalidade enorme; julgo que é o primeiro cartaz em que se vê o produto com grande destaque.  Não há nenhuma impressão nem imagem digital que reproduza a qualidade da impressão disto. Era um cartaz grande, com um metro e meio de altura.  E nem sequer tem slogan, porque as pessoas conheciam o produto através do filme, que teve grande sucesso.  Também gosto muito do que vem a seguir, na página 109, e é da mesma altura; o Miau. E são dois dos fundadores da publicidade moderna em Portugal: o Caldevilla, em todas as áreas, e o Leal da Câmara, no postal, na publicidade fora de Portugal…

Está gira a do tabaco, com o gato a fumar [risos]. E na televisão?

São tantos. Há um anúncio que eu nunca mais vi, já não vejo há 50 e tal anos, e que gostava muito quando era miúdo. E tinha a metalinguagem; era sobre a própria publicidade. Não sei qual era a marca, mas era de um creme de barbear. E só tinha uma pessoa a falar, que era um homem perfeitamente normal. E ia para a casa-de-banho, pegava naquilo, e olhava para o espelho, e olhava para nós. Ele estava a olhar para o espelho, mas nós estávamos no espelho. E ele dizia “dizem que isto faz muita espuma, os publicitários são uns exagerados”. Que é extraordinário. E depois tinha um flashback, e havia uma voz off. Melhor que isto não conheço [risos]. ‘Aquela máquina!’ do meu amigo velhote, António Gomes de Almeida. Fez muita banda desenhada, jornais humorísticos… Trabalhou para os parodiantes de Lisboa, e acho que é um bom slogan, o que ele fez para a Regisconta.

O slogan é algo que surge de repente, não é quando se está a pensar muito nisso…

Sim, mas é resultado de um processo.

Eduardo Cintra Torres numa aula de Licenciatura na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Abril de 2024. (Foto: D.R.)

Sim, mas muitas vezes é como o “diga bom dia com Mokambo”, que surgiu de repente.

Eu comparo isso, no meu caso, com os títulos dos artigos. Não são slogans, mas quero que os meus títulos chamem a atenção para despertar o interesse. E, portanto, às vezes há este processo. Fico a pensar – não durante dois ou três dias, claro, é menos tempo –, mas depois, de repente, aparece um título. Mas não é “do nada”.

Abordas no teu livro a publicidade do grupo CUF. Qual a importância desse grupo empresarial no panorama da publicidade em Portugal? E o que fez com que depois te tenham contactado para fazeres esta História da Publicidade?

Eles primeiro contactaram-me para fazer a história da publicidade da CUF. Eles estão a fazer 30, 40 ou 50 livros em redor da história da CUF: desde os protagonistas, a indústria, a urbanização, a arquitectura das construções. Fui eu que depois propus alargar o estudo de caso para uma História da Publicidade em Portugal. Podíamos nunca mais sair daqui, porque a história da CUF é tão longa; são cento e muitos anos. Não foi só uma empresa, foram sendo muitas empresas, a produzir muitas coisas. Quer para nichos de mercado, até aos grandes produtos de massas. Como o sabão Clarim, o Sonasol, o óleo Fula… A Tabaqueira era do Grupo CUF, até à nacionalização. Tal como nos Estados Unidos e nos outros países, procurava conquistar o máximo de pessoas. Era uma forma nova de fumar mais barata e que se podia fumar em qualquer altura, ao contrário do cachimbo. E, portanto, a publicidade é muito popular. Há uma grande variedade de tipo de publicidades no âmbito da CUF. Normalmente, o vê-se que há uma preocupação em que ela seja dirigida ao público-alvo, que seja informativa, não seja mentirosa; que nunca é. Aliás, fizeram muitos manuais para os adubos para os agricultores, e por aí fora. [A CUF] também criou a sua própria agência, a certa altura, mas que desapareceu com a nacionalização.

A CUF tinha participações em todas as áreas, em 1974. Embora fosse forte na área dos químicos, tinha muitos outros produtos, de facto…

Tinha a Companhia de Navegação, os Seguros Império, o Banco Totta e Açores…  Nunca esteve foi nos media. Só teve um jornal em 1915, mas depois o Alfredo da Silva, penso eu, preferiu estar nos jornais diários, porque chegava a mais gente. Mas ele não intervinha na redacção, só comprava espaço, e fazia comunicados e uma espécie de artigos como artigos. Foi na altura da República, e foi muito complicado. Ele esteve exilado. Era um homem admirável, porque podia ter desistido do país, mas estava sempre em contacto com Lisboa por telegrama. Mesmo em Madrid, vinha clandestinamente a Portugal. Nunca abandonou a sua empresa. Mas em termos da publicidade, de facto, é muito variado. E a CUF foi a grande introdutora do marketing em Portugal, nos anos 70. No caso da seguradora Império, isso está bem documentado no meu livro. Se virmos bem, o marketing também é uma das razões, não da promoção da publicidade, mas da sua decadência. Porque a publicidade deixa de ser uma autonomia, para ser uma parte do marketing. A certa altura, houve uma disciplina nas universidades.

A publicidade integrou o marketing. Na tua opinião, não há vantagens nenhumas nisso?

Com certeza que há vantagens de articulação. Eu acho é que perdeu importância, e isso não foi bom para a publicidade em si.


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