Recensão: Niels Lyhne

O herói niilista

por Maria Carneiro // Agosto 8, 2024


Categoria: Cultura

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Título

Niels Lyhne

Autor

JENS PETER JACOBSEN (tradução: Elisabete M. de Sousa)

Editora

Antígona (Junho de 2024)

Cotação

12/20

Recensão

Niels Lyhne, a obra de referência do dinamarquês Jens Peter Jacobsen, um dos precursores do naturalismo na literatura no seu país escrito em 1880, é considerado uma obra-prima. O livro explora temas profundos como a procura da identidade, a luta contra as convenções sociais, e a complexidade dos sentimentos humanos.

O romance narra a vida do protagonista homónimo, um jovem idealista e sonhador que luta para reconciliar as suas aspirações artísticas e filosóficas com a realidade dura e, muitas vezes, decepcionante da vida. "Niels Lyhne era tolhido por certa timidez, filha de uma repugnância instintiva em ousar e neta de um sentimento confuso de falta de personalidade. Vivia constantemente em luta com essa timidez; ora lhe dava nomes injuriosos, para excitar a si próprio contra ela, ora procurava interpretá-la como uma virtude inerente à sua natureza ou, mais ainda, a marca da sua individualidade e das suas aptidões. Mas, de qualquer modo que a considerasse, sempre a odiava como a uma imperfeição secreta, a qual, por melhor que fosse dissimulada aos outros, não poderia sê-lo à sua própria consciência e que lá estava sempre para humilhá-lo. E invejava o desembaraço confiante daqueles que não temem pronunciar palavras cheias de consequências, que não se incomodam com estas enquanto não se tornam inelutáveis. Essas pessoas davam-lhe a impressão de centauros: pensamento e ação unidos, como o homem e o cavalo, num só corpo. Enquanto ele se dividia em pensamento e ação descontinuados, como um cavaleiro separado da sua montaria."

O livro aborda temas como a perda da fé religiosa, a procura de um sentido, e o confronto entre o idealismo e a realidade: "- Não há Deus, e o homem é o seu profeta! - disse Niels com amargura e também com tristeza.  -Sim, pois não! - esclareceu Hjerrild, e acrescentou: - O ateísmo é ilimitadamente prosaico, e o seu objetivo, afinal de contas, é nada mais do que uma humanidade desiludida. A fé num Deus providencial e justo é a última grande ilusão da humanidade. O que acontecerá quando também ela se perder? Ter-se-á tornado mais culta, mais rica, mais feliz?... Não creio!".

Jacobsen utiliza a vida de Niels como um microcosmo para explorar questões existenciais maiores, como o significado da vida e a inevitabilidade da morte. A desilusão de Niels com as instituições estabelecidas e os seus conflitos internos refletem a atmosfera de dúvida e mudança que caracterizava a Europa no final do século XIX. "- (...) Os homens que estão para morrer não têm teorias, e é completamente indiferente que as tenham. As teorias são apenas para ser vividas, só são úteis durante a vida. Que importa ao homem morrer com esta ou aquela teoria? Acredite-me, nós todos temos lembranças luminosas e suaves da nossa infância. Já vi morrerem muitos homens e sei que sempre é um consolo despertar essas lembranças. Sejamos honestos: podemos ser o que bem quisermos, jamais conseguiremos afastar Deus do céu, o nosso cérebro imaginou-o lá em cima tantas vezes que ele acabou por se introduzir na nossa mente ao som de sinos e de canções, desde que éramos pequeninos..."

Os personagens de Niels Lyhne são ricamente desenhados e profundamente humanos. Niels, como o protagonista, é complexamente desenvolvido. A sua caminhada entre um idealismo juvenil para um ceticismo resignado é tanto uma tragédia pessoal quanto uma crítica às expectativas sociais e culturais da época.

O livro traz uma série de recomendações de peso: “Um livro dos esplendores e das profundezas.” Rainer Maria Rilke; “Um dos maiores romances ateístas já escritos e talvez o mais intenso.” James Wood; “O romance do crepúsculo do artista e do indivíduo.” É ainda uma obra-prima que marcou Franz Kafka, James Joyce e Thomas Mann, como confessaram os próprios.

No entanto, o seu estilo lírico e descritivo, as suas descrições da natureza e dos estados emocionais embora vívidas e evocativas, conseguindo criar uma atmosfera introspectiva e meditativa, é tanto uma força quanto uma fraqueza do livro. Poderemos apreciar a beleza da sua linguagem, mas o seu ritmo é demasiado lento e a narrativa, por vezes, excessivamente contemplativa.

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