Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada na revista Grande Reportagem, em Maio de 1985.
Na Serra de Santo António, os proprietários organizam-se e armam-se para combater os ladrões de gado, porque, dizem, “as autoridades nada fazem”.
Uma milícia privada ou um ‘Far West’ português?
“A paz orvalhada que há pouco cobria a aldeia enxugava agora ao claro sol que rompia. Todas as chaminés fumegavam, todas as casas estavam abertas, todos os mistérios desabrochavam e perdiam insensivelmente a graça da virgindade”, Torga mal podia imaginar e, no entanto,…
— Foi quando a filha do Prudêncio casou! É verdade, os roubos começaram no dia do casamento, há uns cinco anos atrás…
Aníbal morde o beiço e põe-se a meditar. Aí, os fregueses do Café do Agostinho param de jogar às cartas, pedem mais uma rodada e ficam a ouvir. Sentem-se obrigados a comparticipar — atentamente — na conversa. Aníbal sabe falar.
— A coisa repetiu-se há uns dois anos e o ano passado tentaram fazer mais três desvios. Só de uma vez queriam levar 14 bois de engorda… Em cinco anos roubaram-nos dezenas de cabeças de gado.
Sem dar conta, temos um grupo de velhotes à volta da nossa mesa. A mirar e a inventariar. João Louro, jovem proprietário e guardador de vacas, continua a história.
— O homem comprou os animais em Santarém e volvidos poucos dias os ladrões tentaram levá-los. Como estava a chover muito, o carro deles afundou-se. Foi por isso que tiveram de soltá-los todos para fora. Um Mercedes é que veio puxar o carro da lama. Eles costumam tirar os animais dos cerrados [zonas vedadas por muros de pedra] e depois forçam-nos a entrar nas camionetas mesmo à porrada. Uma vaca chegou a vomitar o bucho. Ela já devia ir morta ou perto disso…
Um velhote despega-se do grupo e diz que não se deve esconder nenhum bocado da história. As características da região impõem que o gado ande à solta, pelo menos, nove meses por ano e esteja, assim, mais à mercê dos ladrões. Mas há outros ladrões. Os caçadores não roubam, mas destroem muita coisa a pretexto de darem uns tiritos aos tordos: “cortam pinheiros a tiro, furam bidons de água para o gado, deitam muros de pedra abaixo e dão cabo da calma e da vida das gentes das serranias“.
Serra de Santo António.
Montes, muitos montes, trilhos, veredas e meia dúzia de casas dispersas. Uma paisagem de pedregulhos alvos e de erva bem verde. Ali vivem 1.000 almas e 3.000 cabeças de gado que produzem uns 15.000 litros de leite por dia, mais alguma carne. A edificação de quatro moradias afrancesadas e as manobras nocturnas dos 60 homens da milícia armada para combater os ladrões de gado — face ao aparente sonambulismo das autoridades — são os primeiros sinais palpáveis da vida que por ali corre.
Aníbal Agostinho e João Louro acompanham-me à Junta de Freguesia. O presidente, Lourenço Rosa, manda-nos entrar. Enquanto trocamos as primeiras palavras aparece um latagão que se abeira do guichet e se queda a escutar. Lourenço Rosa faz o ponto da situação:
— As rondas vão prolongar-se, pelo menos, até ao final do Verão. Depois, logo se verá. A GNR não tem capacidade para fazer mais. Foi essa a razão que levou os proprietários a fazer a sua própria segurança, formando uma escala de serviço para guardar o gado. Vai ser preciso um desastre para que as autoridades comecem a preocupar-se com isto. Mas nessa altura, quando isso vier a suceder, não virão cá fazer nada. Já será tarde… Os ânimos estão exaltados. Já lá vão umas dezenas de cabeças de gado roubadas na área e isto é muito grave. Com as pessoas a terem que guardar os seus bens, estamos no Far West…
A segurança é efectuada diariamente por dois grupos armados com dois homens cada um. As rondas começam depois do pôr do Sol. A escala de serviço (secreta, se faz favor!) obriga cada homem válido a patrulhar todos os 15 ou 19 dias, faça o tempo que fizer.
Esta noite estão de guarda o João Louro e Aníbal Agostinho numa zona, e dois homens da serra, noutra. Decido acompanhar os primeiros. A patrulha começa com uma ´bica´ na tasca do Agostinho. Depois, cada grupo segue o seu caminho. Levamos umas latas de atum e uma garrafa de bagaço. Os outros, um pedaço de carne assada. O regresso só está previsto para as 05:00 da manhã, hora em que começam a circular os “carros do comércio”.
Faz frio. Do sítio elevado onde nos encontramos controlam estradas e atalhos. A carrinha está escondida atrás de um muro de pedra. Os dois homens encostam-se ao pára-choques e puxam das caçadeiras. Mil e um ruídos surdos invadem a serrania. É altura de meter conversa.
— Isto é um bocado chato…
— Pois é, mas se ninguém o faz há roubos. — conta João.
— Eu gostava mais de estar na cama ou ir até ao café, mas temos de salvaguardar os nossos interesses.
Ouvimos passos que se aproximam. Os dois homens levantam as caçadeiras. O ruído cessa. Uma voz áspera grita que ali vai “gente de paz“. Sorrimos. O outro grupo decidiu visitar-nos. E ainda bem. A noite estava a tornar-se longa.
Sentamo-nos ao lado de uma casota de pedra. Pergunto quais foram as últimas peripécias da “força armada” da serra. Os cowboys começam por nada dizer, mas quando Aníbal se decide a abrir a boca para contar a história do cunhado (que atirou um tiro para o ar quando um forasteiro saiu do carro para urinar de noite e acabou por fugir a sete pés) a língua solta-se a todos os outros.
João Costa Gaspar, 68 anos, 34 vacas, é o veterano do corpo de intervenção da serra. O homem fala pelos cotovelos. Diz que antigamente tinham o gado à toa. Passavam dois ou três dias sem o ver, mas andavam descansados. Agora, quando lhes falta uma rez, pensam logo que foi roubada. E as aventuras?
João Louro aproveita a deixa para contar. Uma vez, alguns rapazes de fora da serra foram de noite para uma gruta e um dos homens da patrulha ouviu um deles dizer aos outros para mandarem a corda, “que esta já está“. Eles queriam dizer a pedra, mas o guarda entendeu que era uma vaca. “Veio cá acima chamar a gente enquanto o outro ficou lá em baixo de espingarda apontada. Só não foi parar dentro da gruta com um tiro porque houve controlo…”
O velhote volta ao ataque. Uma outra noite, viu a luz de uma camioneta com taipais altos. Mandou-a parar. O condutor respondeu-lhe que não era ladrão de vacas. Transportava azeite. Ora, para o senhor Gaspar, “transportar azeite em Setembro é uma mentira“. Além disso, o veículo circulava numa estrada intransitável. “Se ele não tivesse com mau sofisma ia pela estrada directa. Em seguida, até mudou de residência. Era uma forma de declarar que deve mesmo ser ele, porque não se sente bem ao pé da gente.“
Arménio Santos Duque, 32 anos (e co-autor das listas de ronda) conclui que “é ingrato e grave” terem de fazer justiça. O ancião dá-lhe uma cotovelada sorrateira e adianta que se vir alguém a andar com vacas atira “como aos coelhos, tal e qual, igualzinho. Atiro, decidido, logo. Ou mato ou morro. Mesmo se, como agora, ando um bocado destreinado…“
Bebemos um trago, damos uma última volta pelas propriedades vizinhas e voltamos à aldeia. O dia não vai tardar em nascer. Na estrada aparecem os primeiros comerciantes. Os cowboys da serra têm de despachar-se. Mudar de roupa e de ofício. Amanhar a terra, ordenhar as vacas e trabalhar na fábrica.
Uma fonte próxima do posto da GNR de Alcanena (do qual depende a Serra de Santo António) limita-se a confirmar que “há poucos efectivos” para a região e nada se pode fazer para impedir patrulhas privadas. Os roubos de gado assolam o país de Norte a Sul. A iniciativa dos homens da Serra de Santo António, ao tomarem nas suas mãos a defesa das suas manadas, pode ser eficaz. Mas também pode ser que um dia destes algum inocente acabe por apanhar com os ricochetes.
Reportagem originalmente publicada na revista Grande Reportagem, na edição de 10 a 16 de Maio de 1985, Lisboa.
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