Recensão: O arroz português

À bolina culinária pelo melhor bago

por Paulo Moreiras // Novembro 28, 2024


Categoria: Cultura

minuto/s restantes

Título

O arroz português: um mundo gastronómico

Autor

FORTUNATO DA CÂMARA

Editora

Clube do Coleccionador dos Correios (Setembro, 2024)

Cotação

18/20

Recensão

Começo com uma declaração de interesses: sou apaixonado pelo Arroz Carolino português. Faz parte da minha infância, das minhas memórias gustativas e das minhas aventuras culinárias na recriação de receitas tradicionais.

Posto isto, foi com elevado entusiasmo que recebi a notícia de mais um livro escrito por Fortunato da Câmara (n. 1977), ainda por cima, versando o Arroz em toda a sua plenitude, desde as origens até às novas variedades autóctones de Arroz português, culminando com um excelente sortido de receitas para o leitor confeccionar, onde se especifica o tipo de variedade de Arroz a utilizar, medida que importa implementar cada vez mais para melhor informar o consumidor e o ajudar no seu processo de decisão de compra.

O Arroz (da família das gramíneas e do género Oryza), que o historiador Fernand Braudel (1902-1985), considerou como uma das três “plantas da civilização” (a par do trigo e do milho), alimenta “3 500 milhões de pessoas no planeta, sendo cultivado em todos os continentes”. Em termos europeus, somos os maiores consumidores, com cada português a ingerir 17 kg/18 kg de Arroz anualmente, contra uma média europeia de 5,5 kg/ano por pessoa. Tal voracidade valeu-nos o epíteto de os “asiáticos da Europa”.

Entre os especialistas em botânica, conforme refere o autor, “é aceite que a família [género] Oryza spp. se reparte entre 23 e 27 espécies diferentes”, embora, em diferentes bases de dados internacionais, estejam até ao momento “identificadas mais de 450 espécies de plantas Oryza, com variações a partir de espécies e subespécies distribuídas por todo o mundo”.

Segundo Fortunato da Câmara, “a domesticação da planta Oryza a partir do seu estado selvagem foi um primeiro passo, quando há mais de 10 000 anos o homem de épocas remotas começou lentamente a colher e a tratar de um modo agrícola plantas e cereais espontâneos até conseguir fazer com eles as suas próprias culturas.” Os estudos arqueológicos apontam “duas grandes regiões de domesticação do Arroz onde foram achados pedúnculos ancestrais de espiguetas ainda intactas, em zonas de arrozais dos rios Yangtzé, na China, e do Ganges, na Índia”.

Por esta altura, já o amável leitor terá notado que escrevo "Arroz" com o vocábulo grafado assim, em letra maiúscula. Tal como expresso pelo autor, também eu considero que este cereal “merece tratamento distinto como nome próprio, pois esta palavra única abraça o mundo e tem um papel maior na história da humanidade como alimento preponderante”.

Há muito tempo que Fortunato da Câmara, jornalista e crítico gastronómico, tem vindo a defender não só a qualidade dos produtos de origem portuguesa mas também a sua boa confecção, promovendo uma educação do gosto. Nesse desiderato, enquadra-se perfeitamente o Arroz português, tão celebrado no receituário nacional mas que ainda não se alcandorou ao patamar de excelência que merece, a par de outras variedades de Arroz internacionais, que brilham em celebradas especialidades culinárias: “Comemos muito, mas descuidamos ainda mais em garantir que fazemos receitas perfeitas, como os melhores risotos, paelhas e afins que fazem o nome dos outros.”

Em Portugal, existem dois tipos de Arroz cultivados, os “agulhas” e os “carolinos”, “nas margens e estuários dos rios Mondego, Sorraia, Tejo e Sado.” Destes, o Arroz Carolino do Baixo Mondego (2015) e o Arroz Carolino das Lezírias do Ribatejo (2008) possuem denominação de Indicação Geográfica Protegida (IGP). Apenas o Arroz Carolino do Sado ainda não tem esta denominação.

Almarelo, Alvario, Amarelês, Arbelo, Campino, Ferónio, Lezíria, Saloio e Tardio são os nomes das variedades existentes de Arroz português. Não obstante, o grão carolino Ceres e o grão agulha Maçarico tornaram-se, em 2017, nas duas primeiras variedades autóctones de Arroz do séc. XXI. Em 2019, foi acrescentado a este rol o grão carolino Diana e em 2021, o carolino Caravela, que se espera venha a ser comercializado ainda neste ano de 2024: “Este Caravela promete uma descoberta no mundo dos carolinos, ao permitir que o bago se mantenha inteiro e cremoso, absorvendo sabores, trazendo um resultado final diferente do que por vezes sucede com a mistura de diferentes variedades na mesma embalagem.”

Não só somos os maiores consumidores europeus como estão identificadas mais de 100 receitas de Arroz, abrangendo todas as regiões de Portugal, “entre livros portugueses de referência publicados desde o século XVII e recolhas populares.” Esta diversidade de receitas oferece-nos “uma espécie de fresco sobre a capacidade inventiva de o receituário português pintar com sabores de Arroz o nosso mapa gastronómico com uma distinção assinalável, que se destaca a nível internacional.” Fortunato da Câmara apresenta mesmo uma lista com 118 receitas onde o Arroz é protagonista, que vão desde o “Arroz de Cabidela”, na Carne, até ao “Pudim de Arroz”, na Doçaria.

Apesar de toda esta riqueza culinária, ainda hoje somos confrontados com “a versão Arroz branco ‘soltinho’ de bago agulha, que surge como acompanhamento básico quase omnipresente nas ementas de inúmeros restaurantes de cozinha popular económica, fazendo parte da temível e discutível parceria ‘Arroz & batata frita’ que se alastrou de norte a sul do país.”

Em confronto com a actual conjuntura culinária arrozeira, e como acto de resistência, propõe Fortunato da Câmara, em boa hora, um ilustre conjunto de receitas de “Arrozes regionais, tradicionais e populares” de norte a sul e ilhas, confeccionadas pelo Chefe Luís Gaspar (n. 1991). Nas receitas, são sugeridas as variedades de Arroz que devem se usadas na confecção destes pratos tão emblemáticos, pormenor que raramente, ou nunca, sucede encontrar-se em livros de culinária, sejam eles nacionais ou internacionais. À exceção do "Arroz de lampreia", todas as receitas foram preparadas pelo Chefe Luís Gaspar, “em que foram utilizadas sete variedades de Arroz carolino, duas variedades de Arroz agulha e duas variedades de Arroz médio, no total de onze bagos de Arroz diferentes.” Neste capítulo, assinale-se “a inclusão, em estreia absoluta, de duas variedades autóctones de grãos carolino 100% desenvolvidas em Portugal nos últimos vinte anos: o Caravela e o Ceres.” Um triunfo da ciência em prol da gastronomia: conhecer e saber fazer para melhor comer.

Para finalizar, destaque para a emissão de selos intitulada “Arroz Português”, que acompanha o livro, evidenciando algumas das especialidades culinárias mais emblemáticas do receituário nacional com selos dedicados ao Arroz de Cabrito, Arroz de Bacalhau, Arroz de Grelos e Arroz de Lampreia.

Soberbo este périplo arrozeiro proposto por Fortunato da Câmara, manifestando-se como um elogio mas também uma verdadeira defesa do nosso património culinário, que tanto nos agasalha o espírito e aguça o paladar.

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