Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta décima segunda edição, o piparote de Brás Cubas ‘quebra o costado’ à vaidade do Almirante Gouveia e Melo, que transforma cada operação rotineira numa cruzada épica.
Se os navios portassem alma, como supunha Aristóteles das plantas, é certo que muitas frotas desejariam antes naufragar no silêncio dos oceanos a serem comandadas por líderes cuja maior preocupação não é cumprir a derrota de um escalambrado navio, mas sim almejar a vitória de uma pose perfeita. A vaidade no comando das naus, ou dos submarinos, ou dos faróis, ou de toda a Armada, meus estimados leitores, é o escorbuto das marinhas; enquanto o verdadeiro rói somente as gengivas e articulações dos marinheiros, o segundo corrói a estrutura das esquadras.
Como testemunha póstuma de tantos egos desvairados, sinto-me compelido a narrar-vos a tragédia daqueles que, sobre ou sob as águas, se esmeram mais na fotogenia do que no leme, convertendo rotineiras missões marinhas em odes à sua própria vanglória terrena.
Há géneros diversos de Narcisos em fluidos aquosos, todos figuras mais deploráveis do que a daquele que fez perder a ninfa Eco. Um dos mais patéticos que me surge em memória é o Narciso de Alto Mar. Uma visão magnífica da inutilidade. Rodeado por um oceano sem fim, lançado na vastidão de um palco que jamais requereu assistir ao seu espectáculo, esse tipo de Narciso descobre sempre que, afinal, as pelágicas águas não foram concebidas para o adorar. É que o mar, com sua vastidão preguiçosa, não reflecte como um cristalino lago ou umas poças saídas do marulho à beira-mar. Impacientes, por vezes em vagas, as ondas movem-se sem prestar vassalagem nem quitar pedágio ao nosso pobre narcisista. Ele ainda se debruça sobre a proa, olhos ansiosos na cachola, para se reflectir, mas o mar, debochado, lhe devolve somente espuma na tromba. Este Narciso, na sua barca de orgulho, sente cada onda como um insulto, uma conspiração contra a sua contemplação, ignorando que o mar nem se queda por caprichos humanos. Enquanto ele se lamenta pela ausência da efígie, o oceano continua o seu eterno trabalho de existir, sem o menor interesse por feições ou egos. O oceano não é plateia; é abismo.
Que o diga o Narciso dos Submarinos. No fundo, bem no profundo de mim, tenho certa comiseração por este. Entre as muitas almas de ego latente que tive a ventura de examinar, nenhuma me causou mais espanto, porquanto, sentindo-se ele apaixonado por si mesmo, mesmo assim troca o tranquilo lago por um submarino metálico, numa insana busca do centro do mundo. Mas, como toda boa comédia humana, não é o mundo que ele deseja explorar, mas a si. Por regra, os submarinos, coitados, são logo tomados por espelho. Cada painel brilhante, cada vidro, o tanque de lastro, as lentes e espelho do periscópio, tornam-se o proscénio da sua contemplação. Este Narciso multiplica ângulos para amplificar o ego, e ademais das vezes irrita-se até com os peixes porque, arrogantes, se interpôem entre si e ele próprio. Quando, finalmente, chega ele bem fundo, não da alma mas do mar, e se depara com o escuro e vazio tédio, onde nem sequer criaturas fosforescentes o brilham, e afinal o silêncio o vela, somente lhe resta os ensurdecedores ecos de uma plateia ausente.
E depois destes, temos, mais refinado, o Gouveia e Melo, o Almirante que se insinua acima das mundanas firulas, mas que se espraia em escrupulosidades pindéricas, de sorte que, por exemplo, o seu uniforme reluz com mais esmero do que um convés em dia de inspecção. Dir-se-ia que, no seu estilo, um militar não é alguém que arrisca desboroar a farda e rasgar o corpo no confronto com o inimigo, mas antes sim uma figura de sarau na Old Albion, desfilando entre debutantes. Informalidades, isso, só quando vai trincar pregos com os amigos…
Por isso, num preceito ordinário, com a solenidade de um Aquiles lusitano, o Almirante nunca perde tempo, e se se tem de proclamar vitória, então que se proclame vitória! E com pompa, e em qualquer circunstância. Ah, mas não sejamos injustos. Gouveia e Melo não inventou a vaidade no comando; ele apenas a aprimorou. Afinal, quem pode esquecer Alonso Pérez de Guzmán y de Zúñiga-Sotomayor, duque de Medina Sidonia, o infeliz comandante da Armada Invencível, que conduziu sua frota à ruína porque preferiu não parecer fraco a ser eficaz? Ou Pierre-Charles-Jean-Baptiste-Silvestre de Villeneuve, que na Batalha de Trafalgar escolheu a bravata em vez da estratégia? E que dizer do capitão Smith, do Titanic, cuja confiança na ‘inafundabilidade’ do navio o levou ao fundo? A vaidade, meus amigos, é uma correnteza traiçoeira que arrasta até os mais poderosos.
Mas que vitória foi essa, a de Gouveia e Melo? – perguntam os mais distraídos. Ora, não repararam? Então não souberam que cruzaram mares lusitanos, há muito vistos e transcritos, duas fragatas da Rússia, mais uma corveta da Rússia, mais dos navios reabastecedores da Rússia, mais três navios de pesquisa científica da Rússia, mais um navio de (suposta) espionagem da Rússia. Dir-se-ia que, não fosse a Marinha Portuguesa, liderada pelo intrépido Gouveia e Melo, e Portugal estaria na iminência de ser invadido pela famigerada Frota do Norte à bolina desde Severomorsk. Na verdade, só não desembarcaram no Mindelo, os russos, porque houve “uma resposta”, como afiançou Gouveia e Melo aos jornalistas, e uma acção: “segui-los, controlá-los, mantê-los sob pressão constante, com a nossa presença também constante”. Estou a imaginar se ousassem, os russos, ripostar: teriam o triste fim de Alcibíades na expedição siciliana no século quinto antes de Cristo. Eis-vos assim, de graça e por graças de Gouveia e Melo, com “a soberania nacional defendida”. Que frase”! Bem digna de se inscrever no mármore do Torre de Belém, ao lado do “Aqui nasceu Portugal”.
E, na verdade, conseguiremos alguma vez saber as profundíssimas, e intrinsicamente malignas, intenções dos argonautas de Putin? Um mundo de possibilidades se escantilha, não havendo sequer detidos para elicitar verdades mediante pulsão muscular. Por isso, especulo: os russos desejaram somente saber o preço da sardinha na lota de Matosinhos; ou a densidade do nevoeiro no cabo Espichel; ou se o polvo já andava a mercadejar lotes no fundo do mar, inflaciando o valor das âncoras enferrujadas; ou se o velho farol do Bugio mudara de luz para ‘Light Emitting Diode’, por questões de sustentabilidade; ou se os besugos estavam a conspirar protestos contra a pesca com palangre de fundo; ou se a bússola da caravela perdida do século XVI ainda andava a rodopiar, indecisa entre o sul e a saudade. Ou talvez pressaber pormenores da noite de borga de dois (cara)Melos no bar Cockpit.
Enfim, marchemos adiante: a frota russa, na versão Gouveia e Melo, saiu derrotada – e nem foi pelo confronto, mas somente pela narrativa, causando mais pasmo. Afinal, em Portugal, quem precisa da glória de uma batalha quando se tem ao pé um triunfal comunicado de imprensa ou um esplendroso pé-de-microfone pré-cozinhado à mão? Quem não inveja o titânico engenho do antigo director dos faróis em transmutar um banal exercício numa homérica epopeia lusitana? Camões, se o visse, de olhos esbugalhados ficaria, incluindo o direito, que perdeu algures, ou alhures – nem ele sabe. Aliás, o Vate ainda agora me disse que se deveria decretar já, se voluntária acção não se impuser, a recolha editorial de todos os exemplares pretéritos e presentes d’Os Lusíadas, para uma competente e justa correcção póstuma da terceira estância do primeiro canto, que assim passará a constar, segundo me ditou:
Cessem do sábio Grego e da Pompeia
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Medeia
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre do Gouveia,
A quem Neptuno e Putin obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
Direis: e Vasco da Gama e tantos outros? Não foram mais ousados e corajosos? Oh desditosas mulheres e desventurados homens, ambos sem tino: Vasco da Gama e outros tantos foram, deveras, verdadeiros heróis dos mares de antanho, que armados em caravelas navegaram com sucesso em busca de novas rotas e riquezas para a Nação Lusitana; mas todos ficaram rasos aqui, aquém e além-mar, a milhas, do ínclito Gouveia e Melo, que, municiado de câmaras e microfones, como um Atlas marítimo, carregando não o peso do mundo, mas o volume da sua vaidade, atrai mais manchetes do que as sereias de Homero alguma vez imaginariam, mesmo entoando melodias de encantar. Enquanto os heróis de outrora, enfrentavam, é certo, monstros e tormentas, não julgueis que Gouveia e Melo tem menores desafios.
Se os Albuquerques, os Bartolomeus, os Dias, os Cãos, os Gamas, os Cabrais, os Lopes, os Cortes-Reais, os Magalhães, os Tristões, os Pachecos, os Castros, os Fagundes, os Teixeiras e até os Escobares e os Pinheiros enfrentaram, além de tempestades, o escoburto, o beribéri, a disenteria, a febre tifóide, a malária, a sífilis, a pneumonia, a tuberculose, a escabiose, a pelagra, o raquitismo, mais intoxicações alimentares, e ainda a peste bubónica e a leptospirose, o vosso Gouveia – único, apenas acompanhado pelo Melo, não o Nuno, que esse é só para os pregos – combate, de modo bravo e tenaz, a indiferença a que são botados agora os militares em democracia e tempos de paz, para assim chegar ao cesto da gávea do protagonismo mediático.
Se os mares bravios de outrora ameaçavam caravelas e corpos, agora não se substime as dificuldades de encerar palavras e poses até ao porto de aclamação pública. Não se subestime, pois, a gesta de Gouveia e Melo, feita não de mapas e astrolábios, mas de soundbites e vaidades.
Contam as crónicas que Afonso de Albuquerque, quando conquistou Malaca e se instalou nas Molucas, não perdeu tempo em comunicar os seus feitos. Nem Magalhães, ao circunavegar o globo, publicou boletins diários. Da mesma sorte, Nelson, que despedaçou a frota de Villeneuve em Trafalgar a tiros de canhão, preferiu os seus actos às jactâncias da tinta no papel. Mas Gouveia e Melo, ah, ele é um homem do seu tempo, e entende que a vitória não se forma completa antes de ser compartilhada em alta resolução. Em Full HD, de preferência.
E aqui chegamos à pergunta que não cala: porque um homem como Gouveia e Melo sente a necessidade de transformar cada operação rotineira numa cruzada épica? A resposta, temo, não está no mar, nem nos búzios, mas na política. Porém, sejamos francos, a vaidade de Gouveia e Melo não é um fim em si mesma; é um meio. Cada comunicado, cada manchete, cada proclamação, cada dentada num prego, sempre em estilo de sobranceira superciliosa empáfia, é um passo em direcção ao Oceano primordial, ou à doce Tétis, isto é, às urnas eleitorais. E, no fim, o narciso só quer um singelo artefacto se chegar à cadeira do Palácio de Belém: um espelho. Ou talvez um pavão.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
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