É-me de todo impossível falar da AMI – Assistência Médica Internacional sem pensar no sonho/utopia (“Deus quer, o homem sonha e a obra nasce!”) que eu me lembro de ter tido desde a minha tenra meninice por terras de África (nasci em Angola/Luanda, há 73 anos ainda então província ultramarina portuguesa): um dia ser médico, o primeiro da minha família, e ter um hospital no mato para tratar das pessoas mais desvalidas, isoladas e esquecidas.
Filho de miscigenações e multiculturalismos muito alargados, como genuíno português que sou, sempre olhei para o nosso Planeta como sendo uno e, já na adolescência, no Congo ex-Belga, ansiava por um mundo sem fronteiras e governado por um conjunto de sábios, éticos, altruístas e com vastíssima cultura humanista e espiritual e simultaneamente com uma enorme mundividência e multividência.
Sim, sonhava com o surgimento de um Mundo ““Justo” e “Bom” onde todos colaborassem, cada um pondo à disposição dos outros, gratuitamente, os seus conhecimentos e saberes…
De Luanda, aos 12 anos, findo o 2º ano no Liceu Salvador Correia de Sá e Benevides, fui com os meus pais para Leopoldville, República Democrática do Congo, e aos 15 anos fui enviado pelos meus pais para Bruxelas para continuar os meus estudos liceais já que o Ateneu Belga que frequentava tinha fechado, devido a uma guerra fratricida com mercenários à mistura no Verão de 1967.
Foi o segundo choque violento na minha curta vida, já que no período da Páscoa de 1961 tinha sofrido a perda do meu melhor amigo e condiscípulo da 4ª classe em Luanda, filho único, o Janeiro; tinha sido morto à catanada numa fazenda de uns tios no norte de Angola… Com 15 anos percebi que o meu sonho/utopia de um Mundo de fraternidade e ético não iria ser fácil de concretizar. Não sabia é que o pior, o muitíssimo pior, estaria para vir e que eu estaria nas primeiras filas para assistir ao impensável!
Dos 15 aos 34 anos (final de 1985) vivi em Bruxelas.
Aí acabei o liceu, fiz o curso de Medicina na Universidade Livre de Bruxelas, com professores de excelência, assistindo a aulas de Ilya Prigogine, Prémio Nobel da Física, Albert Claude, Prémio Nobel da Medicina. Especializei-me depois em Cirurgia Geral e em Urologia, esta última com o melhor mestre europeu, e um dos melhores do mundo, Willy Gregoir, que dá o nome ao maior prémio, a medalha com o seu nome, da Associação Europeia de Urologia. (Tinha aliás pensado antes em Cirurgia Cardíaca, mas nessa altura seria impossível exercer no mato…)
Em 1984 com o Dr. Frank Collier, também do serviço do Prof. W. Gregoir, ganhei o melhor prémio no Congresso Europeu de Urologia em Copenhaga.
Durante esse longo período em Bruxelas, nunca abandonei o meu sonho primeiro: fazer como o meu herói e colega, Albert Schweitzer, que morreu quando eu tinha 15 /16 anos, e que desenvolveu uma obra notável, que conheci, no atual Gabão em Lambarené e que lhe valeu, e muito bem, o Prémio Nobel da Paz.
Com um fortíssimo sentido de humanismo e de solidariedade, empenho-me desde há 50 anos na cidadania ativa.
Comecei, ainda jovem estudante de medicina, como voluntário numa associação de apoio a crianças autistas (hoje sabe-se que a multiplicidade de vacinas, com excipiente de alumínio, dadas na infância estão na origem do crescimento exponencial do autismo, e não só, como clama Robert Kennedy Jr., futuro Ministro da Saúde do recém eleito Presidente dos EUA!
Depois, já jovem médico, com a Amnesty Internacional na Bélgica, enviei múltiplas cartas de apoio a colegas presos em hospitais/prisões psiquiátricas na então URSS.
De seguida participei em missões de emergência cirúrgicas (guerras) com os MSF França e depois MSF Bélgica de que fui Administrador! Estive nas guerras Irão/Iraque, Chade/Líbia duas vezes, Beirute…
No final dessa fase da minha vida, já casado e com dois filhos nascidos em Bruxelas, percebi que o meu sonho de ter o meu hospital no mato em África era de todo impossível.
E foi então em 1983 que uma grande reportagem no Chade com o meu, desde então, querido amigo José Manuel Barata Feyo, o destino me desviou para Portugal quando andava a pensar instalar-me na Costa do Marfim.
Fundei a AMI com 32 anos, a residir ainda em Bruxelas, e decidi mudar-me para Portugal continental, onde nunca tinha vivido, e recomeçar uma nova vida…
Há 40 anos, quando embarquei nesta Missão, não sabia quanto tempo duraria a viagem, mas o propósito era muito claro: lutar contra a intolerância e a indiferença e contribuir para um mundo mais justo.
Parecia-me inconcebível ficar impávido e sereno perante tanta desumanidade que grassa no Mundo e tinha a certeza que era possível tentar construir um futuro melhor, alicerçado em bondade, equidade e respeito pelos Direitos Humanos. Não era simples, mas também não era impossível.
Arrisquei, dei um salto de fé, sonhei e acreditei. Era jovem, com muito ainda para aprender, e acabava de aterrar num país desconhecido quando decidi regressar de Bruxelas, onde vivia há 20 anos, e criar a AMI em Portugal. Mas o risco faz parte de todos os sonhos e a AMI, que soube sempre reinventar-se, também arriscou quando alargou a sua atuação de África para outros continentes, quando começou a intervir socialmente em Portugal, ou a desenvolver projetos na área do Ambiente.
Costumo dizer que “não há montanha inacessível, não há obstáculo inultrapassável nem fortaleza inexpugnável …” E com base neste lema, a AMI, uma instituição que se quer de ação e de reflexão, antecipou-se sempre às dificuldades e inovou nas respostas para que a Missão pudesse continuar.
Em 40 anos, a AMI desenvolveu a sua intervenção nas áreas da Ação Humanitária e Cooperação para o Desenvolvimento, Ação Social, Ambiente e Alertar Consciências, em 82 países do Mundo (incluindo Portugal), mais precisamente 31 missões em África, 16 na América, 15 na Ásia e Oceania, 10 na Europa e 10 no Médio Oriente, num total de mais de 460 projetos e mais de 780 expatriados enviados para o terreno, tendo sido apoiados mais de 7 milhões de pessoas. A primeira missão arrancou em 1987 na Guiné-Bissau.
Em Portugal, a AMI começou a atuar em 1994, ano em que abriu o primeiro Centro Porta Amiga localizado nas Olaias, em Lisboa. Desde então, e face às necessidades existentes no país, a AMI abriu vários equipamentos sociais e desenvolveu várias respostas em todo o país, nomeadamente 9 Centros Porta Amiga (Lisboa (2), Porto, Coimbra, Almada, Cascais, Funchal, Vila Nova de Gaia, Angra do Heroísmo), 2 Abrigos Noturnos (Lisboa e Porto), 2 Equipas de Rua (Lisboa e Vila Nova de Gaia/Porto), 1 Equipa de Apoio Domiciliário (Lisboa), e 1 polo de distribuição alimentar (Porto). Desde 1994, já foram apoiadas mais de 80.000 pessoas pela AMI em Portugal, das quais 14.229 em situação de sem-abrigo. E desde 2015, já foram entregues bolsas de estudo a cerca de 500 estudantes universitários.
E porque a AMI acredita que um futuro mais justo e digno para todos é indissociável de um planeta mais sustentável, desenvolve também vários projetos na área ambiental, designadamente na área da recolha de resíduos para reciclagem e reutilização, reflorestação e energias renováveis. Foram já recolhidas 1.700 toneladas de radiografias, quase 2.000 toneladas de óleo alimentar usado, mais de 400 mil quilos de papel e cartão e mais de 16 mil quilos de resíduos elétricos e eletrónicos; e reflorestados mais de 410 mil metros quadrados) de terreno em Portugal.
Falar da AMI é, sem descurar o nosso passado, sobretudo olhar para os desafios (pobreza/exclusão, equilíbrio ambiental, migrações, guerras) que se vislumbram, e para as esperanças (sociedade civil, cidadania) que nos incentivam a continuar. E a verdade é que estes 40 anos não estariam agora a ser celebrados se não tivéssemos podido contar com uma sociedade civil participativa, interessada, empenhada, altruísta e solidária. Por isso, obrigado a cada um de vós, que acompanham e acreditam na Missão da AMI. Estou imensamente grato pelo vosso apoio, carinho e ativismo. Agora mais do que nunca em tempos de Distopia trágica.
Tenho imenso orgulho na obra da AMI, embora tenha perfeita consciência que mercê de algumas opções que tomei em 2011 (politica) e 2020 (médicas, éticas e de consciência) compliquei a sua missão! Arrependido? Não! Voltaria a fazê-lo para não perder o respeito pelo Ser Humano que sempre procurei ser e o médico que sempre fui! Por isso fui “cancelado”. O futuro julgará!
A AMI está preparada para os próximos 40 anos e espero que um dia possamos celebrar o facto da AMI já não ser necessária, porque significará que conseguimos alcançar um mundo justo, empático, digno e feliz para todos. Até lá, continuemos a trabalhar e a sonhar juntos.
Há 40 anos que fazemos AMIgos junto das pessoas cujas vidas conseguimos transformar, das pessoas que contribuem para esta Missão, sejam colaboradores ou voluntários, das pessoas que ajudam a concretizar esta Missão através de donativos e parcerias, sejam doadores coletivos ou individuais, de todos os que nos acompanham e multiplicam o alcance da nossa mensagem.
A missão da AMI vai continuar, sim. Contra a Intolerância. Contra a Indiferença. São estas as duas piores
doenças da humanidade.
Fernando de La Vieter Nobre é Fundador e Presidente da Fundação AMI
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