Artur Matos ajeitou a gola da camisa pela terceira vez, como se o gesto pudesse aliviar uma ansiedade que insistia em instalá-lo na condição de réu. Não fazia calor; o nervosismo era mais interno, fruto de uma convocatória inesperada que chegara na véspera. Passara toda a tarde procrastinando a escrita de um ensaio ambicioso sobre os mistérios da Ordem de Cristo, projecto trazido de Lisboa, que ninguém pedira, que se destinaria, por certo, à prateleira dos esquecidos. Entretivera-se no YouTube, assistindo a cenas de gatos em situações hilariamente patéticas, como se aí encontrasse um reflexo de si mesmo, preso num ciclo de adiamento e auto-ironia.
Agora, caminhava pelas ruas de Benguela, com o aroma pesado da cidade a invadir-lhe os sentidos: um misto de maresia, poeira e carne grelhada. Por entre edifícios coloniais, que ainda guardavam ecos de um passado nunca completamente resolvido, abeirou-se de uma construção de linhas rígidas, um testemunho do pragmatismo da arquitetura lusa. Era apenas a fachada. Procurou pela placa que indicava a editora AfroHistórias. Quando a encontrou, hesitou por instantes, a cabeça cheia de imagens difusas de historiadores coloniais e o peso de vozes críticas que ele próprio evitava ouvir.
Enquanto subia a escadas reparou que o interior se modernizara, mesmo mantendo-se europeu, e tocou a uma campainha que trouxe o condão de lhe abrir a porta. O espaço da editora era uma síntese do pragmatismo contemporâneo: linhas limpas, decorações minimalistas e uma recepção dominada por cartazes coloridos com títulos como ‘Revoltas Submersas’ e ‘Nzinga: A História Não Contada’. O logotipo na porta de vidro fosco – o contorno de África coroado por uma águia imperial – parecia sugerir que aquele era um espaço para narrativas que alçavam voo sobre verdades negligenciadas.
Ao entrar, Artur encontrou uma secretária baixa, em madeira polida, onde uma jovem de cabelos entrançados falava ao telefone num tom de autoridade natural. Não precisou de palavras para ser ordenado a aguardar; o gesto seco da mão foi suficiente para deixá-lo com a sensação de estar numa sala de espera de um dentista ou de um julgamento iminente. Não passara dez minutos, e a secretária, mascando pastilha, e quase sem o olhar, apontou uma porta. Entrou.
Era uma sala de reuniões austera, quase monástica, com quadros de figuras históricas africanas que pendiam das paredes em poses heróicas. Amílcar Cabral, num canto, parecia olhar directamente para Artur, não com o desdém de quem despreza, mas com a severidade de quem espera. Quando Elias Mukuba entrou na sala, trouxe consigo uma aura de precisão e autoridade. Fácil se mostrou a Artur que era o editor – homem alto, de pele retinta e olhos penetrantes, que pareciam ter o poder de desarmar qualquer tentativa de dissimulação.
– Matos, agradeço por ter vindo. – A sua voz era quente, mas desprovida de desperdício.
Artur levantou-se, respondendo ao cumprimento com um aperto de mão. – O prazer é meu – disse, com a casualidade mal ensaiada de quem sabia que aquele não era o seu terreno.
Mukuba não perdeu tempo.
– Preciso mesmo de alguém para escrever ‘A História Verdadeira de Benguela’. Queremos uma narrativa que transcenda a tradição paternalista e colonial, mas que, ao mesmo tempo, respeite os factos. O seu nome foi-me recomendado, mas, confesso, hesitei quando soube que era… branco.
A observação caiu na sala como uma granada silenciosa. Artur piscou os olhos, tentando avaliar se aquilo era uma armadilha ou apenas um teste. Mukuba não desarmou, sustentando o olhar como quem aguardava uma reacção.
– Imagino que seja uma hesitação natural – respondeu, com um leve sorriso que escondia o desconforto. – Afinal, quando o assunto é História, todos preferem a voz de quem não tem culpa dos desastres.
Mukuba riu, mas um riso seco, como uma faca que encontra resistência.
– Não se trata de culpa, Matos. Trata-se de legitimidade.
Os olhos do editor mantinham-se fixos, inabaláveis, como quem esperava uma confissão. Artur hesitou, não por falta de argumentos, mas por saber que não havia resposta que fosse suficiente.
– Contudo – continuou Mukuba –, acredito que a legitimidade pode ser conquistada, desde que o trabalho seja feito com honestidade e rigor. Quero que escreva este livro, embora sem metáforas que disfarcem massacres como progresso. Sem paternalismos. Consegue fazer isso sendo português?
Houve um silêncio carregado. Artur sabia que a questão não era apenas sobre História. Era sobre um peso que ele, na verdade, nunca carregara. Ainda assim, a alternativa era retornar ao conforto desconfortável do seu escritório e ao vazio do manuscrito inacabado.
– Aceito – disse, sabendo que acabara de entrar numa arena onde o fracasso seria recebido com um júbilo silencioso.
—
A quantia prometida, acrescido de um bom adiantamento, choruda, era irrecusável para Artur, ainda mais paga em dólares e sem recibo. E com uma única condição: teria de enviar o manuscrito inicial de cada capítulo na véspera de cada reunião semanal.
Embrenhou-se, sem mais perda de tempo – os Templários foram engavetados – na complexidade dos documentos que foi vasculhando nas raquíticas bibliotecas de Benguela, nas pesquisas cibernéticas, páginas digitalizadas enviadas de Lisboa. Começou a escrever sobre as primeiras viagens de Diogo Cão, quando a costa africana era ainda um mistério habitado por monstros mitológicos, até à consolidação de São Filipe de Benguela como um pqueno posto avançado daquilo que nomeou ser a violência lusitana. Mas mesmo com esses detalhes linguísticos, cada momento se revelava um labirinto de interpretações possíveis como se a voz de Elias Mukuba lhe sussurasse nos neurónios. Artur sentia-se, por vezes, como Diogo Cão ao desembarcar pela primeira vez em terras africanas: perdido, vulnerável e consciente de que a sua presença não era bem-vinda.
A tarefa revelou-se assim uma odisseia de desafios históricos e psicológicos. Cada linha escrita se impunha como uma luta entre a tentação de perpetuar a narrativa heróica e a obrigação de expor a crueza dos factos. E viu logo na primeira reunião que, apesar dos seus escrúpulos na escrita, Mukuba não lhe iria facilitar a vida.
– “Os portugueses avançaram com temeridade”? – disparou Mukuba, logo à entrada desse primordial encontro entre autor e editor, impondo um tom que carregava o peso da crítica. – Temeridade? E o genocídio que acompanhava esses avanços, Matos?
– Não se pode simplificar assim – rebateu Artur, ainda nem sequer se sentara. – Esses homens enfrentaram mitos e monstros imaginários. Isso é temeridade, não acha?
Mukuba ergueu uma sobrancelha, impiedoso.
– Não, Matos. Isso é o poder a subjugar vidas humanas. São narrativas como essa que mascaram tragédias.
Artur sentiu-se numa corda bamba, tentando equilibrar a factualidade e a sensibilidade. Não ia correr nada bem esta aventura, cogitou. Manteve-se calado, enquanto o editor lhe foi fazendo comentários aqui e ali, mas a discussão atingiu o clímax quando sugeriu adicionar uma citação fictícia para dar voz a um soba local.
– Não posso fazer isso. Seria inventar História.
– História inventada, Matos? E o que acha que significa “descobrir”? Os seus antepassados “descobriram” uma costa que já tinha sido habitada por séculos.
—
Artur saiu da reunião desanimado, por um lado, animado, por outro. Mukuba acrescentara-lhe mais um pequeno adiantamento, que disse ser extra.
– Envie-me o manuscrito alterado, e dou-lhe uma resposta antes de avançar para o seguinte.
Mesmo deixando cicatrizes no ego, Artur refez o texto e o tom, desconstruindo o mito do Mar Tenebroso e mostrando como a História tinha sido, desde sempre, um jogo de manipulação. E deixou o manuscrito na editora. Dois dias mais tarde, recebeu um telefonema de Mukuba, aprovando a versão, mas acrescido de um comentário final que lhe pareceu mais uma adaga:
– Ficou aceitável, Matos. Para um escriba europeu, não está mal.
No momento em que desligou o telefone, Artur sentiu que acabara de sobreviver a uma batalha, mas não à guerra.
[continua…]
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
APOIOS PONTUAIS
IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1
MBWAY: 961696930 ou 935600604
FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff
BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua
Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.
Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.