Novelas improváveis: Rommel em Jerusalém

Rochas que tocam o Céu

por Mendo Castro Henriques // Dezembro 26, 2024


Categoria: Cultura

minuto/s restantes


Ainda a manhã era uma criança, uma coluna de viaturas do Estado-Maior do Panzer Armee entrou na cidade velha pela porta de Jaffa. Pouca gente nas ruas. Seguindo ao longo da rua do rei David, a coluna prosseguiu na direção do muro das Lamentações, o mais importante lugar de peregrinação para os judeus. O marechal Rommel decidira auscultar as comunidades religiosas. Se judeus muçulmanos, e cristãos conviviam nos Lugares Santos, porque combateriam fora deles?

A comitiva chegou ao muro, aquele resto da muralha do que outrora, um outrora muito distante, fora o templo de Jerusalém. O Templo. Desde a noite dos tempos. Onde nasceu a Contemplação. “… Uma edificação gigante ocupara toda aquela colina de Jerusalém…” explicou o guia judaico.” “… O primeiro templo foi arrasado por Nabucodonosor no século VII. E entre lágrimas, os judeus exilados levaram os rolos com os quais criaram um novo templo de papel a que chamaram a Torah, os livros sagrados.”

O franciscano alemao.

 Veio a libertação do cativeiro de Babilónia e Israel construiu o segundo templo. Ainda mais grandioso que o primeiro e com a arca da Aliança. A Festa das Luzes – Hanukká – celebra a vitória militar de Judas Macabeu e a dedicação do Templo em 165 a.C. Um candela­bro de oito braços, com uma luz extra para acender as outras sete em cada dia de festa.

“… No majestoso pátio reunia-se o povo eleito para pagar o meio shekel de prata, a única moeda que não tinha a efigie do imperador romano. Colada ao Templo, erguia-se a Torre Antónia, e o pretório de onde os ocupantes romanos vigiaram e controlaram a cidade até que as legiões romanas de Tito e Vespasiano destruíram o templo em 70 d.C., não deixando pedra sobre pedra”… exceto aquele muro ocidental, outrora de Glória, agora das Lamentações.

Um pequeno número de judeus rezava e tocava o muro. Que dizem eles, perguntou Rommel? O guia foi pressuroso. “… Entoam o Escuta Israel /Quando o coração chora, só Deus escuta. Mas porque tapam os olhos e batem com a cabeça no muro? “… Diz-se que Judá ha-Nasi ao recitar o primeiro verso do Shema em voz alta, criou o costume de cobrir os olhos com a mão direita. O marechal continuou: “… Bater com a cabeça é sinal da lamentação. É isso que fazem …lamentar-se?“… “Sr. Marechal: Segundo a nossa tradição, este é também o sítio onde deverá construir-se o terceiro e último templo quando chegar o Messias, o salvador que vai redimir o povo de armas na mão”.

O marechal registou as respostas com uma atitude respeitosa que tinha para com todas as informações, mas notava-se que o seu espírito prático não apreciava aqueles atos de contrição. Convidou o guia a acompanhá-lo ao monte sagrado, o terceiro lugar mais sagrado do islamismo. O guia perfilou-se “… Um judeu não penetra nesse local; foi profanado pelo Islão e poderíamos estar a violar, sem querer, o Santo dos santos”. Após uma breve troca de impressões com o séquito, Rommel deu ordens para findar a visita do Muro.

Basílica de Getsémani,com a Rocha da Agonia.

A comitiva levou pouco mais de dez minutos a chegar ao monte do Templo, o local mais sagrado da cidade e talvez do mundo, para judeus cristãos e muçulmanos. A rocha usada em sacrifícios, é uma das razões pelas quais a cidade de Jerusalém é considerada Cidade Santa por várias religiões. Os muçulmanos chamam-lhe o Nobre Santuário, Al-Haram ash-Sharif. E não admira porquê. O centro da esplanada corresponde ao monte Moriá onde terá ocorrido o sacrifício de Isaac, filho de Sarah dizem cristãos e judeus. Ou de Ismael, filho da escrava Agar, dizem os muçulmanos. Sobre a “pedra do sacrifício”, o rei David  ergueu um santuário para acolher a Arca da Aliança. As obras do Primeiro Templo foram terminadas por Salomão  mil anos antes de Cristo, e destruídas por Nabucodonosor II em 587 a.C., com o exílio judaico na Babilónia. O Segundo Templo voltou a ser destruído em 70 d.C. pelos romanos, com a exceção do Muro das Lamentações

E ali estavam no centro da esplanada, no centro do mundo, rodeados da mole de madraças, refeitórios, fontes e cúpulas entre as quais sobressaía a Mesquita de Al-Aqsa, construída pelo califa Omar no século VII sobre as ruínas do Templo. Entre todas as construções a que ofuscava a vista era a Cúpula da Rocha. Era um octógono perfeito de admiráveis proporções, coroada por uma gigantesca cúpula…

Descalçando as botas no exterior, o marechal Rommel e a comitiva penetraram na Cúpula onde se admirava a elaborada decoração a vermelho e ouro. O guia, que vestia uma jelaba de cor vermelha e capuz pontiagudo teceu louvores a Saladino que conquistara Jerusalém aos Cruzados. O interior da cúpula estava repleto de uma massa de azulejos que louvavam a um só Deus e a Maomé o seu profeta. Um segundo conjunto de azulejos louvava Jesus como o maior dos profetas, escritos em um tempo em que o Islão era concorrente direto.

Basílica das Nações, Getsémani.

Por estas escada de rocha, Maomé subiu aos céus…”, dizia o guia sobre a Al Miraaj, a viagem aos céus realizada pelo profeta Maomé ajudado pelo anjo Gabriel… No interior da cúpula está o poço das almas. E a mais antiga misdrad do mundo aponta na direção de Meca.

“… O Islão é guerra santa. Que tem o guia a dizer sobre isto?” Enquanto o intérprete militar traduzia a pergunta do marechal, o guia ficou muito crispado e respondeu por tiradas… “… Maomé era chefe de Estado e fez a guerra. Quando foi atacado por Meca, lutou. Mas trouxe a paz para a Arábia e unificou-a através da diplomacia. No Ocidente tendes a ideia de que o Alcorão é jihad e guerra santa. Mas das 40 vezes que o termo surge no Alcorão, apenas dez se referem à guerra. Jihad também é aperfeiçoamento, partilha. O marechal insistiu. “… Mas pergunte-lhe quem decide se a jihad é de paz ou de guerra.” “… Está tudo no Corão”, foi a resposta.

Já o sol de Agosto dardejava sobre os tetos de Jerusalém, e a manhã ia avançada quando Rommel e a comitiva transpuseram os portões de ferro forjado que demarcam os terrenos da Basílica da Agonia. Descendo em ziguezague das muralhas sul da urbe, surgia de repente esse cristianíssimo templo, no sopé do Monte das oliveiras, e dos grandes cemitérios judaicos que bordejam o vale de Josafat. Era uma construção invulgar com uma fachada multicolorida e doze pequenas cúpulas no teto, evocando as doze nações que a construíram. Era ali que o marechal decidira concluir a visita das três religiões. Poderia ter ido à igreja do Santo Sepulcro, mais esplendorosa, quiçá mais simbólica. “… Jerusalém é uma cidade de pedras e rochas e dizem-me que está ali a rocha da agonia”, dissera o marechal.

Aguardava-os um franciscano alemão, frei Werner. Estatura elevada e porte afável, sotaina castanha bem cuidada tal como as sandálias da mesma cor. “… Sr. marechal foi neste jardim de Getsemani que Jesus e os seus discípulos oraram na noite em que o Messias foi preso pelos soldados romanos”. No interior da basílica, frei Werner explicou o que viam retratado nos painéis dos muros. “… Ali apareceu-lhe um anjo do céu para o confortar. Acolá Jesus disse “aquele a quem eu beijar…”. Enquanto ladeava o recinto octogonal junto ao altar-mor, rodeado por uma colunata, o franciscano relatava os eventos como se tivessem sucedido ontem. “… Foram-no buscar para o prender quando se sentava ali, nesta rocha. “Outra rocha”, disse Rommel… “como na mesquita”. “Sim sr. Marechal… Mas ali ao lado é uma rocha que evoca a glória de deus. Aqui no monte das oliveiras, é uma rocha de sofrimento, de agonia dos homens.”

Marechal Rommel, em revista às tropas.

O marechal escutou aquelas palavras enquanto caminhavam lado a lado. “… frei Werner, pouco sei fora da minha vida militar: sei que o suor poupa sangue, que o sangue poupa vidas, e que o cérebro poupa ambos. Acha que Jesus se devia ter deixado prender? Não seria melhor ter fugido?” Frei Werner olhou algo compadecidamente para o compatriota e afirmou. “… E o que é o cérebro, sr. Marechal? É quem pergunta ou quem responde? É quem nos guia, ou é guiado?” Rommel preferiu nada dizer. Tinham atingido a rocha da agonia, junto ao altar mor.

Era cercada por uma cinta de ferro forjado encimada por aves – falcões, pombas e melros – era a rocha da agonia onde Jesus orou. frei Werner continuou o relato: “… Segundo o Evangelho de Lucas foi aqui que Jesus entrou em agonia e o seu suor tornou-se em gotas de sangue a escorrer pela terra.” Esta rocha recolheu o sangue de Cristo até ele mais não aguentar e exclamar “… Pai afasta de Mim este cálice!” “… Que significa isso?” perguntou Rommel.

Werner cruzou as mãos atrás das costas e disse em tom mais baixo que até aí usara de tal modo que Rommel se teve que inclinar para o escutar: “… Quer a resposta convencional ou quer algo mais profundo Herr Feldmarschall?  Diga o que achar mais verdadeiro. Werner continuou com à-vontade: “… Na minha Ordem, houve um monge do século XII chamado Joaquim, que profetizou o início da terceira era, a era do espírito. Depois na obra de um filósofo nosso compatriota, li que estamos no início da terceira época do cristianismo: a fundação da Igreja de João. As revoluções e as batalhas desta guerra culminam o avanço da história para o final. Mas é preciso que alguém ponha termo à guerra para que surja a ” redenção”. Dito isto, Werner calou-se abruptamente.

 Rommel entendeu que o franciscano lhe queria segredar algo mais. “…E então?” “… Então, pegue nessa ideia e permita a conclusão da ideia joaquimita e joanina. Toda a Alemanha o admira!, senhor marechal ”. Werner animava-se. “Todos seguirão um herói. Ponha fim a tanto derramamento de sangue, a tanta perseguição. Afaste de nós esse cálice! Werner estava a ficar exaltado. ”… Ponha fim à guerra aqui em Jerusalém… Chame todos os judeus, muçulmanos e cristãos. Diga que não admite mais mortes e que ressuscitou a nossa Alemanha, a Alemanha de Kempis, Cusa, Tauler, Eckhardt, Durer, Lutero, Kepler, Bach, Goethe e Beethoven e Heine e Einstein. Werner já não cabia em si -. “…Diga a todos que vai fazer a paz, a começar por aqui, Jerusalém”. Ao proferir as últimas frases, Werner estava praticamente a gritar, com as lágrimas nos olhos. Os circunstantes tinham-se virado para ele guardando profundo silêncio, à espera da reação de Rommel.

Mesquita de Omar [ex-Basílica da Rocha], Jerusalém. Circa 1941-45.

O marechal nada disse. Passados longos segundos que a todos pareceram uma eternidade, tomou a mão direita do frade franciscano, empunhou-a calorosamente e colocou a sua mão esquerda por cima de ambas. “… frei Werner explicou-me maravilhosamente o que foi a agonia de Jesus. Estou-lhe muito grato por isso.” E depois calçou as luvas enquanto se dirigia rapidamente para o exterior.

Nessa noite escreveu a sua mulher.

Querida Lu

Jerusalém tem três religiões e todas sabem o que querem, mas creio que ainda está por nascer quem saiba fazer o que pretendem. Visitei os lugares santos. Todos rezam ao mesmo Deus e plantam oliveiras. Talvez um dia tente plantar uma destas árvores em Herrlingen. Bons sonhos para ti e espero que colhas as maçãs do nosso jardim e faças a receita da compota.

Teu

Erwin

[CONTINUA]


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