Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas regulares pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta vigésima primeira edição, especialíssima, também por ser a primeira do ano de 2025, o piparote de Brás Cubas vai para João Vieira Pereira, “o director do mais importante jornal português”, que o vulgo conhece por Expresso, que concedeu público raspanete à sua redacção, enquanto espraiava os seus estranhos conceitos democráticos condimentados com erros gramaticais.
Ora bem, donzelas e cavalheiros, leitores fugazes e transitoriamente evanescentes desta crónica da minha eterna posteridade, permitam-me narrar um curioso episódio do já distante fragmento remanescente do ano precedente ao terminal primeiro quartil do século XXI. Ou, traduzindo para os menos atreitos a floreios literários e mais inclinados à prosa das horas comuns, a tragifarsa desta última sexta-feira saída do prelo das oficinas do Expresso.
Seja como for, para não perder o fio à meada, invoco aqui, neste meu texto, as reflexões do insigne João Vieira Pereira, aquele mesmo homem que, sentado no púlpito do mais importante jornal português – título esse que, a julgar pela pompa com que o ostentou no seu editorial, deve ter sido forjado em bronze e encomendado a Vulcano –, decidiu, com o zelo de um mestre-escola vitoriano, ou da professora primária munida da conveniente menina-dos-cinco-olhos, aplicar um raspanete à sua redacção. E não quis assim proceder nos corredores discretos de Laveiras, mas logo em tribuna pública, em letras impressas na pretérita edição do semanário, para assim todos saberem que as reprimendas devem ser executadas com a arguta eloquência de um Cícero e a solene oratória de um Bossuet.
Ah, como sempre invejei a destreza cénica destes sumos sacerdotes da suprema sabedoria, que, do alto de cátedras erguidas pelo ego, disparam reprimendas com a confiança de quem acredita ter descido do monte Sinai com tábuas de verdades eternas.
Quanto a mim, que careço de semelhante palco, atrevo-me a confessar que, se alguma vez o tivesse, provavelmente me excederia em adereços, donde até considero a humildade do João: eu usaria uma toga romana, para dar ainda maior autoridade, uma partitura de latinismos para impressionar os incautos e, quem sabe, uma harpa tocando ao fundo para sublimar o momento a um patamar divino. A glória deve ladear-se sempre de uma pitada de pedantismo.
Mas deixem-me entrar no caso. O nosso João, impoluto e zelador das virtudes democráticas – ou assim se julga, não o contrariemos –, mostrando-se ofendido nos seus brios jornalísticos, desferiu um anátema sobre os pobres redactores do Expresso que cometeram a imperdoável transgressão de, puxando mal ou bem pelas meninges, escolher Ruben Amorim, um treinador de futebol, como figura nacional. Diz ele, em tom grave e categórico, que tal escolha foi um “erro” e que o verdadeiro eleito (ou seria elegido? Já lá vamos…) deveria ter sido Luís Montenegro.
Ora, argumenta João Vieira Pereira, não é este o mesmo Montenegro que “decidiu o aeroporto” e “acantonou o Chega”, coisas tão grandiosas? E já agora, não é este o mesmo homem que conseguiu transformar a demolição de um casebre numa reabilitação de casarão de seis pisos, façanha que lhe poupou umas centenas de milhares de euros, enquanto em simultâneo o entronizava como habilidoso especialista em semântica? Imaginem só, leitores, que herói grego temos aqui! Ao pé disto, Ulisses parece-me um mero burocrata, Péricles um amador em estabilidade política, e Sófocles um aprendiz de escriba para relatar tamanhas façanhas.
Agora, digo-vos com a franqueza de quem nunca teve paciência para os artifícios da política: João Vieira Pereira é um bufão disfarçado de jornalista. E digo mais, com o desassombro de um morto que não teme retaliações: este homem tropeça na própria língua com a mesma facilidade com que tropeça na lógica. Porque, donzelas e cavalheiros, sigam-me lá: que jornalista, de tão pedante, não sabe que, no contexto em que escreveu, o correcto é escrever ‘elegido’ e não ‘eleito’? Ah, se Camões o lesse, choraria lágrimas de sintaxe; e se o jesuíta Anchieta o visse, reescreveria a sua ‘Arte de Grammatica da Lingoa mais usada na costa do Brasil’, intitulando-a ‘Manual de estilo e descuido: como criar erros com autoridade’,
Aliás, se é para reformular a língua ao gosto do João, porque parar por aqui? Sigamos a lógica: se “ter elegido” passa a “ter eleito”, então acho bem que alguém “ungido” passe a ser “unto”. Sim, unto! Porque não? E que destino glorioso seria o desse unto se, maturado (ou será maturo?) no tempo, virasse presunto. Nem mais, João: não será esse o destino inevitável de quem submete a gramática ao jugo da vaidade? Um presunto redaccional, bem curado pela arrogância e temperado no estranho espírito “construtivo” que tanto apregoas.
Mas não é só na gramática que João patinou. Ou se destrambelhou. Não, não. Num gesto digno de um Nero editorial, ele garantiu que vai ‘melhorar o processo democrático’ das escolhas das figuras do ano para “reduzir os riscos de tal [uma escolha diferente da do director] voltar a acontecer”. Traduzindo: quer o João mudar as regras do jogo, porque não gostou do resultado. Diz ainda que a democracia directa, às vezes, “não elege os que merecem ganhar”, que aliás sucedeu com o António Costa, um dos seus favoritos a figura do ano, por ter sido eleito (aqui é ‘eleito’, João) para o cargo de presidente do Conselho Europeu, uma sinecura equivalente a mestre de cerimónias bem pago.
Ora, João, já dizia quem nunca a teve, que a virtude está em não ter virtude alguma. Mas que democracia é essa que só te serve quando te agrada? Serás tu, afinal, o Rousseau de Laveiras, pregando uma vontade geral que tenha obrigatoriamente de coincidir, para ser perfeita, com a tua?
Ah, minhas queridas donzelas e meus sapientes cavalheiros, o tom deste editorial do João Vieira Pereira é de uma pompa e presunção que nem Luís XIV em dia de banquete… João lamenta que Ruben Amorim, um “efémero”, tenha vencido Luís Montenegro, o “estrutural”. E ainda clama, num rasgo de magnanimidade, que António Costa também teria sido uma escolha aceitável.
Permitam-me discorrer brevemente sobre esta curiosa noção do ‘João do Expresso’, que, com superciliosa empáfia, tão bem ilustra o mundo da inflada soberba e das gramáticas ao sabor da conveniência: a de que o “estrutural” é obra de políticos, enquanto o “efémero” é apanágio daqueles que não ousam tingir as mãos no barro das urnas. Que teoria tão sublime! Tão requintadamente pedante, este simplismo de dividir o mundo em categorias de permanência do feito consoante o título do ofício.
O político, essa criatura divina aos olhos do director do Expresso, não constrói apenas obras, constrói “estruturas”. Não importa que o aeroporto se limite a ser decidido num guardanapo, ou que o Orçamento seja votado para durar menos do que uma maratona de telenovela. Não, essas são “realizações estruturais”, porque nascem do augusto teatro parlamentar ou na sumptuosa mansão governamental, onde o político distribui decretos como quem dispersa migalhas aos pombos da praça.
Já o não-político, coitado, está condenado à efemeridade, à futilidade, ao reino das coisas passageiras. Ruben Amorim, que ganha títulos e galvaniza milhões de desgraçados que andavam à míngua de alegrias por não serem benfiquistas, jamais poderá aspirar a ser “estrutural”, porque lhe falta o atributo essencial: a capacidade de transformar a banalidade em discurso e o discurso em currículo. Ora, que interessa ao mundo ganhar um campeonato, quando se pode, em vez disso, decidir o destino de um aeroporto que será concluído no dia em que o perneta Saci cruzar as pernas? Que graça tem treinar grupos de homens para jogos de estratégia de milhões, quando o verdadeiro feito é “acantonar o Chega”? Ah, leitores, e jornalistas do Expresso, percebam a tese do João Vieira Pereira: a efemeridade é o destino dos pragmáticos, enquanto a estrutura é o legado dos retóricos.
E é assim, nesta lógica ‘pereiravieirana’, que os “estruturais” se eternizam nos anais, mesmo que o único “cimento” da sua obra seja a vaidade, enquanto os “efémeros” são relegados à poeira dos ventos, não obstante o peso real das suas conquistas. Dizem que, em tempos, a História era somente escrita pelos vencedores, mas talvez agora haja quem, como João Vieira Pereira, queira que seja lavrada com canetas douradas e púlpitos erguidos pela presunção de directores de estirpe duvidosa.
Que visão do mundo terá este director do Expresso que acha que travar “a contestação dos polícias, médicos e professores” com os impostos dos contribuintes, que “decidir um aeroporto” a ser começado no dia de São Nunca à tarde, e que aprovar um Orçamento que é votado no Parlamento, são feitos mais dignos de imortalidade do que ganhar campeonatos e contratos milionários? Para o João, a posteridade só é válida se passar pelo crivo da sua singular caneta, a única capaz de exarar decretos sobre as figuras do ano, como se a Imprensa fosse a História. Quem sabe, no íntimo, João Vieira Pereira não se veja como o verdadeiro herói nacional, a especial criatura capaz de discernir quem deve seguir para o panteão. Aliás, Luís Montenegro que se cuide; talvez o próximo editorial seja para corrigir outro “erro”: a ausência do próprio João Vieira Pereira na lista das figuras incontornáveis de todos os tempos.
Ah, como eu gostaria de assistir ao momento em que ele perceba que a História se escreve com tinta de gente comum, e não com o verniz da arrogância.
E quanto a Ruben Amorim, deixo aqui um elogio ao treinador por, com a sua saída para Manchester, não só ter desestabilizado o Sporting como também as certezas do João Vieira Pereira. Porque, no fundo, o verdadeiro “efémero” desta história é a desmedida presunção do director do Expresso, que, na sua ânsia de parecer o mais sábio, conseguiu apenas parecer o mais tolo. Não havendo nada mais patético do que um homem que desconhece os próprios limites, neste seu editorial revelou-se o perfeito exemplar do asno erudito: aquele que sabe o suficiente para parecer inteligente, mas não o bastante para evitar o ridículo.
E assim encerro esta crónica inaugural de 2025, prometendo regresso frequente, porque desta eternidade, que pedia descanso, ainda mantenho um inexplicável fascínio pelo triste e divertido teatro humano, onde a vaidade é perene, e fugaz o bom senso. Afinal, que graça teria a eternidade sem daqui assistir aos egos inchados com balofa autoridade, aos pedantismos que se vestem de sabedoria, às presunções que tropeçam na própria lógica, às ignaras burrices coroadas de títulos, às solenidades que declamam vacuidades como se fossem oráculos, às certezas que se desmoronam à primeira contradição, e aos delírios de grandeza que só a vaidade humana pode produzir.
Que outra infinita temporalidade poderia oferecer-me o prazer de assistir, com o distanciamento seguro de quem já não teme o ridículo, ao desfile tragicómico da vaidade daqueles que, na ânsia de se mostrarem superiores, acabam por expor, em toda a sua glória, a pequenez que tentam ocultar? Não há maior espectáculo; e, por isso, prometo regressar ao longo deste ano para mais crónicas sobre farsas sublimes.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
APOIOS PONTUAIS
IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1
MBWAY: 961696930 ou 935600604
FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff
BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua
Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.
Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.