Correio Trivial

Um país de masoquistas 

black and white abstract painting

por Vítor Ilharco // Novembro 1, 2022


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


Somos um país de gente que adora sofrer. Que exibe o seu sofrimento como se de um acto de heroísmo se tratasse.

Fazemos alarde das nossas dificuldades procurando, sempre, deixar evidente que os nossos problemas, todos causados por motivos a que somos alheios, são superiores aos de quem quer que nos escute.

O português é masoquista e gosta de o ser.

men's white dress shirt

Nas salas de espera dos hospitais, as conversas sobre as doenças de cada um levariam a ataques cardíacos qualquer estrangeiro que ali passasse.

Nenhum português tem doenças normais.

Todos passaram por intervenções cirúrgicas complicadas, todos sofrem de doenças consideradas incuráveis, todos enfrentam a morte a cada momento.

E todos se queixam do péssimo atendimento, do desleixo de médicos, enfermeiros e auxiliares, dos preços dos medicamentos, das listas de espera.

Porém, ninguém se dispõe a ir além dos lamentos para tentar alterar o que condena com veemência.

Nos cafés, as conversas limitam-se ao aumento do custo de vida, do desemprego, da impossibilidade de pagar todas as contas necessárias à vida de uma família normal.

A revolta termina quando, cabisbaixos, regressam a casa.

white blue and orange medication pill

Se confrontados com a possibilidade de lutarem pela mudança as respostas são, sempre, as mesmas:

“São todos iguais, isto não tem solução!”

– “Temos de ter fé. Melhores dias virão!”

A aceitação deste “fado” é algo que nunca consegui compreender e que me repugna enquanto cidadão.

Entramos num supermercado e tomamos consciência de que os preços aumentam, diariamente, de forma escandalosa.

Todos os problemas a nível mundial servem para “justificar” esses roubos.

A pandemia da covid-19 fez parar o mundo. Os preços subiram 15 a 20 por cento.

A Rússia invadiu a Ucrânia, o que causou problemas com a falta de energia. Os preços aumentaram 20 a 25 %.

O povo deixa de poder comer carne e peixe todos os dias, reduz o número de viagens, deixa de poder comprar todos os medicamentos e não goza férias.

a man holds his head while sitting on a sofa

Inexplicavelmente, as grandes superfícies aumentam os seus lucros em centenas de milhões de euros, tal como as companhias petrolíferas e, claro, o Estado no que concerne a impostos.

O Povo, sereno, vangloria-se das suas desgraças.

As autoridades ajudam colocando-se ao lado dos mais fortes, na tentativa da recolha de migalhas que caiam da mesa dos ricos.

O polícia prende (e bem) o José, ou a Maria, que rouba uma lata de atum de um supermercado, mas perdoa, com um sorriso nos lábios (“veja lá se para a outra vez tem mais cuidado!”), o rico que conduz acima da velocidade permitida, na estrada.

O Juiz condena (e bem), com uma ordem de despejo, a família que não paga a renda, mas amnistia o “empresário” que deixou de pagar uns milhões de imposto.

Os ricos, todos sabem, nunca passarão pelas cadeias.

Os magistrados regem-se por Códigos escritos de um modo que seja inexistente essa possibilidade.

silhouette of road signage during golden hour

Um banqueiro, que é responsável por um roubo de um valor superior à soma de todos os levados a cabo em Portugal, desde que existem prisões, nunca entrará numa delas, enquanto recluso.

Provavelmente nem sequer chegará a ser julgado.

É mais do que certo que os processos se irão arrastar até prescreverem.

Não, muitas das vezes, por culpa dos juízes que, masoquistas também eles, se esforçam para cumprirem o seu dever contra tudo e contra todos.

Só que, por um lado há dezenas de bandidos a roubarem latas de atum e leite nos supermercados, e, como há que acabar com esse flagelo, gastam-se centenas de horas com esses casos.

Depois, a falta de dinheiro para a compra de papel para os mandados de busca tem impedido essas diligências como reconheceu, recentemente, o Presidente da Associação Sindical dos Juízes.

Queixou-se, até, que em Lisboa, na nossa capital, os magistrados têm de levar, de casa, o seu papel higiénico, porque a verba dos tribunais não permite esse gasto.

Eu, no lugar deles, resolvia dois casos ao mesmo tempo, limpando-me aos processos parados.

Às tantas já houve outros com despachos semelhantes e ninguém se atreveu a contestar.

Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


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