Peritos universitários usam semântica para recusar acesso a estudo de credibilidade (mais que) duvidosa

Instituto Superior Técnico já diz agora que o seu “esboço” que associou mortes às festividades de Junho “pode não conter informações exactas e precisas”

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Desde Junho de 2021, o Instituto Superior Técnico, investido da sua autoridade científica, elaborou relatórios sobre pandemia em parceria com a Ordem dos Médicos. No último estudo conhecido, divulgado há pouco mais de dois meses pela imprensa, atribuía directamente às festas populares e aos concertos em Junho várias centenas de mortes por covid-19, numa altura em que os casos positivos até apresentavam, afinal, forte tendência decrescente. Perante a recusa em ceder a informação, o PÁGINA UM apresentou um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa. Independentemente do seu resultado prático – acesso à informação –, este processo acaba por ser revelador de uma certa forma de “fazer” Ciência em Portugal, e da postura dos denominados “peritos”.


Em processo que corre no Tribunal Administrativo de Lisboa (TAL) – intentado pelo PÁGINA UM para aceder a um alegado estudo (incluindo dados numéricos e metodologia) que associava as festas populares de Junho passado a um incremento directo de mortes por covid-19 –, o Instituto Superior Técnico (IST) veio agora reinterpretar o significado de “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”, conceito que usara inicialmente para classificar um relatório profusamente divulgado pela imprensa em final de Julho.

A notícia original foi elaborada pela agência Lusa – que garantiu ao PÁGINA UM que “o relatório (…) existe, naturalmente, caso contrário (…) não teria feito notícia” – e reproduzido então por mais de uma dezena de órgãos de comunicação social de âmbito nacional.

Relembre-se que o PÁGINA UM viu-se na necessidade de recorrer às instâncias judiciais perante a recusa expressa do Instituto Superior Técnico – incluindo do seu presidente, Rogério Colaço – em ceder tanto esse como os restantes relatórios elaborados desde Junho do ano passado em parceria com a Ordem dos Médicos. O PÁGINA UM também viu recusado o pedido de acesso aos dados brutos e à metodologia estatística usada. Saliente-se que o PÁGINA UM não fez mais do que pedir elementos essenciais comummente usados em instituições académicas para validação científica – aliás, esta é uma prática pacífica e aceite com respeito mútuo pelo requerido e pelo requerente.

Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes, na sede da Ordem dos Médicos, em Julho do ano passado, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico diz que não houve um acordo escrito desta parceria. O Tribunal Administrativo decidirá se obriga ou não uma instituição pública a ceder dados científicos para validação pública.

Numa alegação entregue na passada quarta-feira no TAL, a advogada mandatada por Rogério Colaço veio agora dizer que “o requerido [IST] nunca negou ter elaborado um ensaio, apenas afirmou que não se tratava do produto final do estudo, mas uma mera abordagem embrionária, por isso que era um esboço”. E diz ainda que a pretensão do PÁGINA UM “já se encontra satisfeita”, alegando que “o conteúdo do esboço foi dado a conhecer ao requerente [PÁGINA UM] assim que foi solicitado”.

Saliente-se, porém, que o PÁGINA UM apenas recebeu de um dos investigadores do Instituto Superior Técnico uma explicação vaga sobre a suposta metodologia, mas nunca lhe foi remetido qualquer parte do alegado relatório escrito – que chegou mesmo a merecer citações expressas no take da Lusa, difundido pela restante imprensa – nem qualquer ficheiro com dados numéricos que possibilitasse qualquer conclusão.

De acordo com a notícia da Lusa, de 28 de Julho passado – que continha sete citações expressas (vd. em baixo) do suposto relatório –, os peritos do Instituto Superior Técnico – supervisionados pelo próprio presidente – apontavam, entre outros aspectos, para a ocorrência da “morte de 790 pessoas com covid-19 devido ao levantamento das restrições e às festividades, dos quais 330 associados [sic] às festas populares de junho”.

Lusa noticiou as conclusões de um estudo do Instituto Superior Técnico sobre o impacte das festividades em Junho na transmissão e mortes por covid-19. Instituição universitária, que faz Ciência, quer convencer o Tribunal que aquilo que fez não foi um estudo, mas apenas “um esboço embrionário”. Ou uma “mera abordagem embrionária”, como agora esclarece.

Sucede, porém, que na realidade ao longo do mês de Junho se registou uma redução sistemática do número de casos positivos e de mortes atribuídas à covid-19, tornando paradoxal, e pouco sustentável cientificamente, que as festividades tivessem tido um impacte agravante. Ou seja, o levantamento das restrições e a maior proximidade física das pessoas sem máscara não foi acompanhada de um acréscimo de casos nem de óbitos.

Foi exactamente para averiguar o cumprimento de preceitos de rigor científico que o PÁGINA UM pretendeu aceder ao suposto relatório do Instituto Superior Técnico, que a Lusa diz existir, e que a instituição universitária pública esclarece agora que “não se tratava do produto final do estudo, mas uma mera abordagem embrionária, por isso (…) era um esboço”.

Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico.

No entanto, esboço ou qualquer outra coisa que seja, certo é que o Instituto Superior Técnico nunca veio a público negar a validade das notícias da Lusa e dos outros órgãos de comunicação social, mesmo se agora a sua advogada garanta que desconhece como aquele (esboço ou relatório) “chegou à comunicação social”.

Convém, aliás, notar que, na troca de e-mails no final de Julho passado entre o PÁGINA UM e o investigador Henrique Oliveira – coordenador da equipa de peritos do Instituto Superior Técnico –, aquele matemático não ignorava, pelo contrário, a repercussão mediática daquele esboço ou relatório.

Com efeito, argumentando que toda a equipa estava de férias – e que ele era “o único do grupo de trabalho mandatado a falar sobre esses assuntos de análise” –, Henrique Oliveira fez mesmo gala de ter recusado “diversos convites” da imprensa, “nomeadamente de três televisões nacionais para falar sobre o assunto”. E a sua recusa para falar às televisões não fora por não reconhecer o relatório – ou por não o considerar válido ou validado –, mas sim porque, adiantava ao PÁGINA UM, “entrei de férias e as férias são, digamos, pouco científicas”.

Resposta de Henrique Oliveira em 29 de Julho ao PÁGINA UM, em que informa ter recusado convites para falar com três televisões nacionais por estar de férias, nunca se demarcando da divulgação de informação não autorizada ou não validada cientificamente pela instituição universitária.

Acrescente-se também que o PÁGINA UM seguiu o conselho de Henrique Oliveira e pediu o relatório e os dados em bruto ao gabinete de imprensa do Instituto Superior Técnico, mas este não foi satisfeito. Essa recusa seria mesmo reiterada por Rogério Colaço por mensagem enviada do seu telemóvel. Um posterior pedido formal, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, nem mereceu resposta, razão pela qual o PÁGINA UM fez entrar um processo de intimação junto do TAL.

Mas agora o Instituto Superior Técnico ainda defende que, independentemente da classificação do documento em causa – relatório, ensaio, esboço ou outro qualquer termo –, o PÁGINA UM não deve ter acesso. “Considerando o princípio da proporcionalidade, salvo melhor opinião, não nos parece que o direito à informação do requerente [PÁGINA UM] se revele suficientemente relevante para justificar o acesso a um documento em estado embrionário, um estudo sem estar concluído”, acrescenta a defensora do Instituto Superior Técnico.

Um relatório anterior do Instituto Superior Técnico alertava que haveria um aumento das infecções com as festividades, mas tal não sucedeu. O suposto relatório de finais de Julho pretendia convencer o público que afinal as previsões estavam quase certas. Mas, na hora de mostrar a base científica dessas conclusões, a instituição universitário optou por recusar essa validação externa. As festas populares em Lisboa este ano tiveram grande fluxo, sem máscaras, mas os casos positivos de covid-19 regrediram face a Maio.

E conclui ainda que “não se vislumbra também qual a utilidade que um documento incompleto, ou seja, por concluir, possa ter para o requerente [PÁGINA UM], pois tratando-se de um ensaio de projeção/ estimativa, pode não conter informações exatas e precisas, para que o requerente como jornalista possa depois difundir, podendo até sugestionar interpretações contrárias à verdadeira pretensão.”

Saliente-se que a única pretensão do PÁGINA UM, neste caso, é analisar a qualidade da produção científica do Instituto Superior Técnico que, em articulação com a Ordem dos Médicos, ao longo dos meses apresentou e divulgou estudos sobre a pandemia. E sobretudo perceber se esta instituição científica fez algo para evitar que o seu nome fosse usado mediaticamente para transmitir informação errada ou inexacta, tanto mais que é o próprio Instituto Superior Técnico que admite que o seu (assim classificado) “ensaio de projeção/ estimativa” afinal “pode não conter informações exatas e precisas”.

Em Março passado, Henrique Oliveira, que é professor do Departamento de Matemática do Instituto Superior Técnico, zurziu no relatório semanal da Direcção-Geral da Saúde, dizendo que era pobre. Em declarações à CNN Portugal disse mesmo que tinha “muito pouca qualidade, nebuloso mesmo”, e que, “como matemático, não hesitaria em chumbar um aluno que me apresentasse um relatório destes”. Sobre os relatórios do próprio Henrique Oliveira, em breve o PÁGINA UM saberá da sua qualidade, se a sentença do Tribunal for favorável a esse conhecimento público.


Citações (entre aspas) do (suposto) relatório do Instituto Superior Técnico transcritas pela Lusa no take de 28 de Julho passado, que comprovam a existência de um relatório escrito, ou então estaremos perante uma “fraude” (transcrição de citações de um estudo inexistente). A Lusa recusou mostrar prova da existência do relatório, mas garante que existe. O PÁGINA UM apresenta as citações retiradas do artigo publicado pelo Diário de Noticias de 28 de Julho que transcreve o take da Lusa.

1 – “Se juntarmos os casos não reportados oficialmente atinge-se o número de 340 mil

2 – “não teriam impacto económico

3 – “os seus efeitos seriam cumulativamente menores e a descida seria mais cedo e mais rápida

4 – “O efeito aqui é mais lento e menor do que o efeito das medidas gerais, pois afeta diretamente população mais jovem, mas leva a contágios em cascata que acabam por vitimar os mais suscetíveis a doença grave

5 – “uma possível correlação com vagas de calor

6 – “com tendência de atingirmos os valores mais baixos de 2022

7 – “ter excesso de confiança é o risco que Portugal corre


N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM, contando com o FUNDO JURÍDICO, está envolvido em 13 processos de intimação junto do Tribunal Administrativo, quatro dos quais em segunda instância, e ainda em duas providências cautelares. Até ao momento foram angariados 12.025 euros, um montante que começa a ser escasso face à dimensão e custos envolvidos nos processos. Saliente-se que o PÁGINA UM tem de garantir uma “provisão” para as situações em que possa ter sentenças desfavoráveis, o que acarretará o pagamentos de custas que podem ser elevadas por cada processo perdido. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.

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