Correio Trivial

A lei da Saúde Mental

black and white abstract painting

por Vítor Ilharco // Julho 29, 2023


Categoria: Opinião

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Foi, finalmente, publicada uma nova Lei da Saúde Mental.

Apesar de toda a fragilidade do texto, que fica longe de resolver uma situação degradante, de imediato surgiram as mais diferenciadas reacções.

O que é surpreendente já que, se pensarmos por uns minutos, iremos concluir que o bom senso, e algum sentido humanitário, seria mais que suficiente para uma concordância generalizada sobre o modo de encarar o problema dos doentes mentais acusados de cometerem crimes.

woman sitting on black chair in front of glass-panel window with white curtains

Se um cidadão prevarica terá que, obviamente, ser levado a Tribunal.

Caso haja a suspeita de que, por doença mental, não é responsável pelo seu acto, os juízes, depois de consultados os peritos médicos, deverão determinar se é imputável ou inimputável.

Por outras palavras, se tinha, ou não, a faculdade de perceber a gravidade do delito que cometera.

Se o Tribunal concluir que é imputável, ou seja, que tinha perfeita consciência do seu crime, deve condená-lo e enviá-lo, em cumprimento de pena, para o Estabelecimento Prisional mais apropriado.

Se, pelo contrário, o considerar inimputável, concluindo que o crime foi cometido sem que o cidadão tivesse consciência do seu acto, deve entregá-lo, de imediato, aos cuidados médicos de modo a que possa ser internado num Hospital apropriado à sua doença.

A partir desse momento só os médicos devem ser responsáveis pelo futuro do doente.

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A explicação é simples: se for imputável deverá ser considerado criminoso, se for inimputável deve ser considerado doente.

E o lugar de internamento de doentes deverá ser um hospital (nestes casos um hospital psiquiátrico) e não uma cadeia.

Até porque, em casos de extrema gravidade, ele poderá continuar internado, em ambiente hospitalar, rodeado de enfermeiros e médicos que lhe poderão garantir a dignidade e os cuidados devidos a todos os cidadãos, até ser considerado curado.

Mesmo que isso signifique até ao fim da sua vida.

Só desse modo a Sociedade ficará salvaguardada de alguém perigoso.

Algo impossível de acontecer se optarem pela reclusão já que não poderá, neste caso, ultrapassar a pena máxima de vinte e cinco anos, que a Lei estipula, devendo ser libertado ao fim desse período, independentemente do perigo que a sua libertação possa causar, quer para os outros cidadãos quer para ele próprio, já que pode ser vítima de alguém que se defenda das suas investidas, de modo mais agressivo.

a man's hand with a handcuffs and a glass of water

A solução lógica, portanto, é que o autor de um qualquer crime, por grave que seja, sendo imputável deva ficar sob a responsabilidade dos Tribunais mas, sendo inimputável, deverá passar, de imediato, para a responsabilidade do Ministério da Saúde.

Prender alguém pelo “crime” de ser doente é que é contra tudo o que um Estado Democrático pode aceitar.

No entanto, o que acontecia e a Lei agora aprovada mantém, era a hipótese de um inimputável ficar “internado” numa cadeia.

A única alteração, com as novas regras, é o facto de não poder continuar em reclusão depois de terminar o tempo da sua pena e até ser considerado curado.

Desde logo porque não se percebia porque é que teria de ser um Magistrado a decidir se um Inimputável poderia ser considerado curado, ao ponto de reintegrar a Sociedade, ou não.

Até agora o documento que tornava isso possível era um mandato de libertação assinado por um Juiz.

Parece óbvio que essa decisão deveria ser um documento de alta, assinada por médicos, e sob a responsabilidade única destes.

Photo Of Woman Resting On The Couch

Argumentam, alguns, que o Juiz, antes de decidir, ouvia peritos médicos.

Porém, das duas um: ou o parecer dos médicos era vinculativo, e então não se percebe o papel do Juiz já que, neste caso, teria de obedecer aqueles, ou era simplesmente consultivo, e então há que perceber porque é que a opinião do Juiz, num caso de saúde, podia ser mais determinante do que a dos médicos.

Esta Lei, que anula a hipótese de prisão perpétua para reclusos doentes, vai permitir, contudo, que as nossas cadeias continuem a ter, nas suas celas, dezenas de doentes, inimputáveis.

Embora, a partir de agora, não se possa prolongar o tempo de prisão a que tiverem sido condenados em julgamento.

E aí a questão torna a colocar-se: se o condenado era inimputável, nos momentos do crime e em que foi julgado, como pode ser possível que haja uma qualquer condenação?

Red Haired Woman in Dark Room

Logo, não seria este o momento certo para a Lei obrigar à transferência de todos estes cidadãos para hospitais psiquiátricos, passando a ficar exclusivamente sob a dependência do Ministério da Saúde e não de Tribunais?

A realidade é que os reclusos são os cidadãos mais excluídos da nossa sociedade e que os inimputáveis são os mais desprotegidos entre aqueles.

Uma tristeza.

Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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