DEUS CHAMOU-ME DESTE MUNDO.
JÁ CHEGOU A MINHA HORA.
A CULPA FOI DO DESTINO.
NÃO FOI DA FÁBRICA DO MORA.
DEIXO PAI IRMÃOS E AMIGOS NA SAUDADE.
A culpa é do Destino. Francisco José morreu num acidente de trabalho. O patrão da fábrica não teve culpa. E mandou gravar isso mesmo na lápide cinzenta de mármore depois de pagar a campa. Um descargo de consciência que lhe custou cento e tal contos, mas pouco importa.
Francisco José da Silva tinha 13 anos.
Morreu a trabalhar.
O pai do miúdo ainda vai ao cemitério de vez em quando. A lápide, as flores murchas e o vento não farão perdoar o que aconteceu porque ninguém é culpado. É a versão do pai: a culpa é do Destino. E o Destino não é gente…
— O meu filho andava a trabalhar. E no elevador, ou seja, um porta-cargas, que subia de um andar, ou seja do rés-do-chão para cima…
— Numa fábrica…
— Numa fábrica. Ao para cima ia carregado. E ao para baixo eles iam de volta para aproveitar a vir no elevador vago para baixo, não é? Porque eles podiam-se deixar estar lá, mas com aquela coisa de brincadeiras iam de volta e vinham…
— Duas crianças juntas num elevador.
— É. Duas crianças juntas no elevador. Acontece que ele vinha a comer uma maçãzita e distraíu-se ao passar, que aquilo era uma espécie de um tunelzinho, só tinha coisas para transportar a carga. Lá ia com a cabeça levantada mais para cima, distraído, e apanhou-lhe a cabeça. E morreu. Ficou instantâneo. Eu julguei na ocasião que não tinha ficado instantâneo, mas depois é que acabei por saber que tinha ficado instantâneo.
— Tinha 13 anos…
— 13.
— Morreu a ganhar o pão…
— Pois. — responde-me Manuel Joaquim da Silva, o pai.
O homem coça a orelha lentamente e prossegue.
— Andava na escola industrial. Perdeu um ano porque mudou de ambiente. ..
— E o senhor tirou-o da escola e meteu-o o trabalhar. O senhor acha que lhe deu a existência que ele merecia ter?
— Eu dei-lhe a existência que ele merecia ter em virtude de não o deixar andar por aí na ‘vadiice’ ou seja para aí juntamente com outros…
— E a única solução era metê-lo numa fábrica?
— A única solução era metê-lo a trabalhar para que ele não andasse a fazer asneiras, não é?
— O senhor não sente remorsos do que aconteceu ao seu filho?
— Eu não sinto remorsos porque afinal de contas aquilo foi o Destino. Sim, isso foi o Destino. Absolutamente…
— O senhor não sente culpa nenhuma?
— Absolutamente nenhuma. Não tenho culpa nenhuma!
— Acha que é normal o que aconteceu a uma criança de 13 anos?
— Eu acho que é normal em virtude de ela estar a trabalhar, não é? Se andasse na brincadeira até também podia ser apanhado por um carro numa estrada ou numa coisa qualquer…
— O que é que aconteceu ao patrão?
— O patrão…
— Foi condenado?
— Pagou uma multa.
— Só uma multa?
— Sim. Pagou uma multa porque houve um acordo entre o tribunal…
— E ao senhor? O que é que ele pagou?
— A mim pagou-me… A companhia de seguros deu-me à volta de 100 contos.
— E o patrão o que é que lhe dá a si?
— …
— Umas meias pelo Natal?
— Sim.
Francisco José não é a única vítima do trabalho infantil. Como ele há mais alguns e em muitos casos eles até são mais novos. Trabalham em fábricas, oficinas e sementeiras, sobretudo no Norte do país.
Estrada Guimarães – Felgueiras.
Sete da manhã.
Três miúdos à espera de transporte para a fábrica.
— Bom dia.
— Bom dia. — reponde o petiz de saco de plástico verde dependurado numa mão.
— O que é que tens aí dentro do saco?
— É a comida.
— Para quê?
— Para levar para o trabalho.
— Para o trabalho. E já trabalhas há muito tempo?
— Há dois meses.
— Que idade é que tu tens?
— 10 anos.
— 10 anos. E o que é que tu fazes?
— Faço várias coisas…
— Numa fábrica de quê?
— Calçado.
— E vocês agora estão aqui à espera da camioneta…
— Já aí vem.
— Então até já.
Paulo mais o irmão José e um amigo aproveitam a boleia do patrão. A estrada é sempre a subir e depois também dá para falar um pouco com os outros colegas, com o patrão.
Aproximo-me da carrinha da fábrica Lirifel
[NOTA: a firma ainda existe. Está sediada em Três-Cancelas – Lagares].
— Bom dia.
— Bom dia.
— O senhor vai levar as crianças para a fábrica? É?
— É. É.
— É?
— Está claro vou levar tudo para a fábrica.
— E qual é a fábrica?
— Fábrica de calçado Lirifel.
— E tem lá muitas crianças a trabalhar?
— Não. Crianças, não. Desculpe…
— Não?
— Crianças depende do ponto de vista que vocês vêem… Não se pode considerar crianças, vá…
É uma explicação. Depois de a mãe dos rapazes combinar com o homem uma desculpa para o caso de haver mais perguntas indiscretas, a carrinha arranca.
Quando lá chegamos acabaram as surpresas para toda a gente.
— Era o seu filho que ia na camioneta a guiar? Era?
— Era.
— Então nós gostávamos de falar com ele porque o que acontece é que ele tem crianças muito novinhas a trabalhar… Havia uma criança de 10 anos a trabalhar…
— Parece que não…
— Parece que sim… Olhe, que sim.
— Parece-me que não…
— Não é verdade?
— Não… 14 anos para cima…
— 14 anos para cima… Então onde está a criança que vinha na camioneta?
— Foi uma boleia.
— Foi uma boleia… — sublinho.
Ninguém ousa chamar as coisas pelo seu nome. Até o contra-mestre depois de se descair inventa um filho que não teve só porque está a trabalhar com um menor de menos de 14 anos. Sabe que a lei o proíbe.
O decreto-lei 286 de 88 não deixa margem para dúvidas: «A utilização do trabalho de menores (…) é punida com multa de 50.000$00 a 250.000$00 por qualquer situação individual (…) e no caso de o menor não er ainda atingido o termo da escolaridade obrigatória ou de o trabalho se realizar em condições especialmente perigosas para a saúde ou moralidade do menor, a multa será elevada para o dobro» – entre 100 e 500 contos.
O facto é que a lei no seio de muitas empresas é a do patrão. O flagelo do trabalho infantil continua a propagar-se no Norte do país. Quem o diz são os sindicatos, sobretudo a União dos Sindicatos de Braga, mas também e curiosamente a própria Inspecção-Geral do Trabalho.
Um relatório síntese confidencial da Inspecção sobre trabalho de menores ou infantil datado de Julho deste ano (1988) refere que só entre o primeiro e segundo trimestres de 1988 houve um acréscimo de mais de 25%.
O mesmo documento indica que há sobretudo menores de 14 anos a trabalhar nas indústrias do vestuário e confecção, calçado, construção civil e hotelaria.
As razões: a ganância de alguns patrões e de muitos pais, a ineficácia dos organismos estatais como a Inspecção, uma política económica e social controversa, mas sobretudo a miséria — a económica e a outra.
A carrinha da fábrica passa agora sem parar. Paulo, José e o vizinho apearam-se algumas curvas antes. Desta vez, é preciso um corta-mato para irem almoçar a casa.
Os miúdos vivem nesta casa com os pais e uma avó. A família não é abastada, mas também não passa fome. O pai é funcionário na Câmara Municipal de Felgueiras. A mãe trabalha numa escola.
O casal tem casa, dois ordenados, um carro de serviço ao dispor, uma motorizada e um pastor alemão. E… uma vivenda em construção do outro lado da estrada.
— Não se importa só de se virar para mim um segundo? É uma reportagem sobre trabalho…
— …
— A pergunta é assim: a senhora tem uma criança — tem mesmo duas…
— Sim.
— E o seu filho de dez anos está a trabalhar numa fábrica…
— Não está, não. Ele é família. Ele é sobrinho…
— Aí, não a estamos a ver. Não se importa de… Sim, diga lá.
— Ela é sobrinha da minha mãe.
— Quem?
— A senhora da fábrica. E o meu filho vai para lá para olhar por eles. Eu trabalho. O meu marido trabalha na Câmara. Eu trabalho na Escola. E não temos a quem deixar o miúdo…
— E acha que uma fábrica…
— É uma fábrica de calçado.
— É o melhor sítio onde pode estar uma criança?
— Sim. Sim.
— Melhor do que em casa?
— Sozinho?
— Melhor do que na escola? Está aqui gente. Está aqui a sua vizinha. Está aqui mais gente…
— Ele anda na escola…
— Anda de escola à tarde e vai fazer depois também umas horas à fábrica…
— Não vai… Vai para ela ficar a olhar por ele.
— Mas não foi o que ele nos disse…
— Coitadinho… Sabe o que é…
— Ele disse que trabalhava, quantas horas, e temos amigos dele que nos confirmaram que é verdade. Temos testemunhas de que ele trabalha lá todos os dias. E o irmão também…
— O irmão…
— O irmão feriu-se na fábrica!
— Não foi, não.
— Não foi? Então o que é que foi?
— Foi na brincadeira.
Há pessoas que não sabem mentir talvez por nem sequer elas próprias acreditarem naquilo que contam.
— Aqui por estas fábricas há muitas crianças a trabalhar e os seus dois filhos seriam duas das crianças…
O pai das crianças põe-se a olhar para o relógio de pulso.
— Vem aí o carro.
O sujeito abala rapidamente.
O pai, pelo menos esse, com a desculpa de estar cheio de pressa não disse nada. A situação dos filhos até nem é das piores da região. Há crianças a sofrer bem mais e não é só em termos de dureza do trabalho ou de vencimento. A grande maioria ganha menos de 10 contos por mês e nem se queixa. É também a violência física tanto por parte dos patrões como dos empregados.
Exemplos não faltam.
Participação ao Procurador da República junto do Tribunal Judicial da Comarca de Vilaverde.
O proprietário de uma padaria admitiu Fernando. Despediu-o quase logo a seguir depois de o ter agredido corporalmente. As testemunhas acrescentam que o miúdo trabalhava entre as 22:30 da noite e as 14:00.
Fernando tinha 12 anos. Tinha jornadas de mais de 15 horas…
Uma fábrica de balanças de Celeirós processou um trabalhador que bateu num miúdo depois de o ter repreendido. O empregado voltou a agredi-lo segunda vez e como não há duas sem três voltou a arriar-lhe forte e feio a pretexto de coisa alguma. A nota de culpa refere que o agressor foi suspenso durante seis dias. A criança era muito novinha…
Oficialmente até estava a trabalhar na fábrica a título gratuito… durante as férias escolares para não andar pela rua a pedido dos seus pais.
Alguns já nem têm férias. Nem sequer chegam a entrar na escola… Vão directamente para a fábrica aprender o que é a vida.
— O que constato directamente nas aulas que dou é que turmas de 30 alunos na programação estão reduzidas a metade porque eles na idade em que estão de escolaridade obrigatória encontram-se já a trabalhar nas empresas vizinhas, sobretudo a zona de Moreira de Cónegos, que é para o lado em frente, e na zona da entrada de Vizela, vindo de Guimarães, a zona de Enfias. São zonas carenciadas de mão-de-obra a tal grau que são obrigados a recrutar o seu pessoal não só na zona em que estamos como estendendo a sua captação até à área do concelho de Cabeceiras de Basto. Fica-lhes mais barato evidentemente recorrer aos alunos e alunas locais. — denuncia Egídio Guimarães, professor da Escola Preparatória de Vizela.
Francisco abandonou a escola há uma eternidade. Agora, só conta com a força dos braços e das pernas para aguentar 11 e 12 horas de trabalho a fio, seis dias por semana. No dia de folga, amanha a horta da família. O momento de descanso ainda mais agradável é o do almoço, apesar da comida.
— E a seguir, vais para o trabalho…
— Hum…
— O que é que tu fazes?
— Ora bem, eu lá ando a descascar paus, faço qualquer coisa lá: ajudar…
— Numa serralharia…
— Sim.
— E há quanto tempo é que trabalhas?
— Um ano e meio.
— E que idade é que tu tens?
— 13 anos.
— E tens mais irmãos?
— Tenho.
— Quantos?
— Oito.
— E trabalham todos?
— Menos dois.
— Menos dois. E porque é que tu abandonaste a escola?
— Eu não gostava dela…
— E os teus pais também precisavam de dinheiro?
— Não era bem isso. Eu é que não gosto muito daquilo…
— E há mais rapazes novos a trabalhar na serralharia onde tu estás?
— Não. Sou o mais novo que ando lá.
— És o mais novo. E o patrão quanto é que te paga por mês?
— 11 contos.
— E trabalhas quantas horas por dia?
— 10.
— 10 horas. Todos os dias?
— Todos os dias. Só menos ao sábado que pegamos às seis e largamos às seis…
— E se nós agora formos lá à empresa onde tu estás a trabalhar o que é que tu achas que pode acontecer? O patrão manda-te esconder, o patrão… O que é que acontece?
— Não sei. Não sei o que pode acontecer.
— Não sabes o que pode acontecer, mas sabes que é proibido estar a dar trabalho a rapazes com a tua idade. E fala-se nisso lá na oficina? O patrão já te disse alguma vez alguma coisa?
— Já me disse isso.
— O que é que ele disse?
— Disse que se for lá alguém, um fiscal, pode mandar-me embora e ele pode pagar uma multa.
— E o que é que o patrão disse para tu dizeres ao fiscal ou às pessoas que lá forem?
— Eu escondo-me, não é? Para eu esconder ou que eu tenho mais que 13 anos. Que já saí da escola…
A descida ao inferno da clandestinidade passa contudo por situações bem mais sombrias.
«Esta sociedade esmaga sem dar conta» — palavras de Torga. Palavras de hoje no Norte onde atrás da prosperidade das pequenas e médias indústrias se esconde a degradação humana.
— O povo diz que quem não aproveita o trabalho das crianças embora pouco é louco. Efectivamente as crianças podem fazer muita coisa. Dar-lhes o sentido do trabalho, da educação por coisas pequenas, mas aliás há escolas. O escotismo, por exemplo, é uma escola maravilhosa nesse sentido. Por exemplo, o escotismo ocupa as crianças, os adolescentes na limpeza de praias, na limpeza de pinhais. Tem feito esse serviço, quer o escotismo de rapazes quer o escotismo das meninas e guias de Portugal. — diz-me Eduardo Melo, vigário geral da Arquidiocese de Braga. Ainda no verão passado limparam as praias de Esposende. Limparam matas, como por exemplo, ali de Bouro, na zona de Albergaria. São trabalhos que se fazem desportivamente sob a orientação de responsáveis. Educam e podem ganhar alguma coisa…
— O desporto na fábrica é mais difícil, senhor Cónego…
— Efectivamente que sim, mas eu julgo que um trabalho proporcionado, adequado no tempo, no lugar, na intensidade… Eu julgo que será profundamente educativo.
Nem todos os padres pensam como o vigário de Braga. Progressistas indecisos há-os por toda a parte. Uma coisa porém é certa: não se sabe qual é a dimensão real do trabalho infantil em Portugal. As previsões, quando existem, são muitas vezes curiosas ou duvidosas.
Para o Instituto Nacional de Estatística existiam no primeiro trimestre deste ano 46.900 crianças a trabalhar.
A Inspecção-Geral do Trabalho (IGT), um departamento governamental especialmente vocacionado para este assunto, apenas detectou durante esse mesmo trimestre 65 menores de 14 anos.
Das duas, uma: ou 46.835 crianças se perderam a caminho do trabalho ou a ineficácia da IGT é total…
Francisco trabalha em Moreiras numa serração de madeiras. O patrão está a chegar agora mesmo no camião com os troncos.
— Há falta de trabalhadores aqui nesta zona? — indago.
— Ora bem, isto é como em todo o lado. Nesta altura, há falta não é de trabalhadores. Há falta é quem queira trabalhar. Trabalhadores há muitos, está a ver… só que é trabalhadores para o café, está a perceber?
— E trabalho infantil? Tem garotos a trabalhar para si?
— Não!
— Não?
— Temos um com 14 anos…
— Quem é?
— É este. Tem 14 anos.
— Tem 14 anos.
— Ele em recibos? O senhor dá-lhe…
— Ora bem, ele veio para aqui há dias, está a perceber, e vai começar a trabalhar… Nesta altura está aqui. Está a ver, o meu irmão não está e ele está aqui a guardar isto, não é?
— Está a guardar? Só? Não trabalha?
— Para já não está metido ao trabalho porque…
— E está cá só há um mês e meio… Diga-me uma coisa: quantas horas é que ele trabalha por dia?
— Oiça lá, o horário normal, como nós.
— Quantas horas?
— O que trabalha mais aqui sou eu, está a perceber?
Mentiras e conivências que o hábito tece. E quem se desvia do rigor sumário do silêncio é imediatamente ou quase excomungado.
Este homem vive na região de Felgueiras há uma série de anos. Conhece bem a terra e a gente. Aceitou denunciar a situação. Depois, porventura pressionado por familiares industriais que empregam menores, proibiu a emissão das suas acusações.
A cobardia é outra maleita comum a esta situação. Só não vê quem não quer. Praticamente toda a gente tem crianças a trabalhar… Há crianças que ainda andam a estudar. Trabalham em part time. Outras, trocaram definitivamente a escola pela fábrica ou pelas obras.
— Esta situação acontece no distrito de Braga e não só – consideramos que é um problema nacional. É lamentável que os patrões vejam nas crianças o seguinte objectivo: hipotequem o futuro das mesmas crianças – portanto, abandonam a escola com a garantia de lhes pagarem miseráveis escudos a troco de trabalho que é feito por elas que devia ser feito pelos adultos. — constata Vítor do Vale da União de Sindicatos de Braga.
Mão-de-obra clandestina só na aparência legal. A teia de cumplicidades e a ineficácia das autoridades são tais que muita gente nem sequer se dá ao trabalho de se esconder.
— Não gostavas mais de estar a brincar? A estudar?
— Hum… Não sei.
— Os teus pais… o que é que eles acham disto?
— …
— Quantos irmãos tens?
— Lá em casa somos três irmãos.
— E trabalham todos?
— Não. Só dois…
— Um tem 11 e o outro tem quatro.
— E trabalham?
— Não. Trabalha só um.
— Que idade tem o que trabalha?
— Tem 12. (sic)
— E o que é que ele faz?
— É também desta profissão.
— É trolha?
— Sim.
— E ele quanto é que ganha?
— Não sei. Não sei quanto é que ganha. Ele começou há pouco. Começou ontem a trabalhar… (sic)
— E o teu pai trabalha?
— Trabalha.
Jorge foi para trolha, tentado por media dúzia de tostões e a fuga ao aborrecimento da escola. Trabalha 10 horas por dia. Ganha 18 contos por mês. Não gosta muito do que faz, mas também não se lamenta. É a opção do possível. Proibir o trabalho infantil não chega. É preciso criar alternativas — melhores alternativas. Caso contrário o trabalho infantil aumentará ainda mais à medida das misérias.
— Vieram aqui uns miúdos e disseram-me se que queria deixar o miúdo ir trabalhar e eu disse que não porque ele que não tinha 14 anos. E eles disseram-me que o patrão que diz que como ele está próximo a fazê-los que não fazeria mal, que não teria perigo. Prontos. Foi, mas não foi logo nessa ocasião. Eles vieram aqui uns dias e depois o miúdo foi. Passados aí uns dias é que foi trabalhar. — conta Maria Rosa Gomes.
António, o filho de Maria Rosa Gomes, começou a trabalhar aos 11 anos de idade. Primeiro, esteve numa fábrica de cerâmica. Depois, foi para as obras. O último emprego que teve foi numa fundição. E aí é que foram elas…
— Estava a trablhar como serralheiro. Trabalhava nove horas por dia. E assim…
— Quanto é que tu ganhavas por mês?
— 15 contos.
— 15 contos… E o que é que aconteceu?
— Ah… (silêncio) Um dia o disco apanhou a camisola e cortou-me o braço.
— E o que é tu achas desta história toda? É justo o que te aconteceu?
— É justo. Isso é justo. (sorriso imensamente triste e longo silêncio)
— E agora? Viver sem um braço é muito diferente?
— Já estou habituado. Para mim… já não… já não me interessa. Já pouca diferença faz.
António tem agora 13 anos. Talvez acabe por voltar para a escola primária. O dinheiro vai ter de dar com a pensão do pai e a indemnização que porventura venha a pagar o patrão, mas isso é outra história.
Para a família do rapaz o dono da fundição até nem é má pessoa. É verdade que não mandou avisar a família do acidente, não foi ver o miúdo ao hospital nem a casa, mas já avançou uma outra proposta de trabalho.
Meto conversa com a avó de António.
— O que é que a senhora acha das crianças que trabalham?
— Coitadinhos, eles agora não trabalham sem terem 14 anos, mas antigamente… — responde-me Ana Borges.
— Não. Agora também trabalham. O seu neto começou a trabalhar aos 12…
— Sim, trabalham. Mas antigamente trabalham mais cedo. Assim que pudesse começar a sacar um pouquinho de aqui e de acolá, já ia para ganhar o pão para comer.
— Mas as coisas mudaram. Passou muito tempo.
— As coisas mudaram mas…
— Ou não mudaram?
— Mudaram. Agora é mundo novo.
— Mas as crianças continuam a trabalhar…
— As crianças continuam a trabalhar, está bem, mas ele…
O patrão da fundição parece ter outra noção das responsabilidades. mandou encerrar as portas da fábrica por causa dos olhares intrusos. Recusou responder às nossas perguntas. (NOTA: A Fundibraga, Comércio de Metais, Lda já não está activa).
As oficinas e fabriquetas clandestinas que pululam por estas bandas, lugares comuns do trabalho negro começaram, contudo, a criar alguns esquemas defensivos.
Aqui, nesta oficina de Esporões o cartaz exterior da legalidade imposta não deixa margem para dúvidas: o patrão só aceite adolescentes com mais de 15 anos.
— Que idade é que tu tens?
— Ah… 13 anos.
— E estás a trabalhar aqui nesta oficina?
— Sim, senhor.
— E já trabalhas há muito tempo?
— Há mais ou menos um ano.
— E antes? Já tinhas trabalhado noutro sítio?
— Não, senhor.
— É o teu primeiro emprego?
— É, sim senhor.
— E saíste da escola há muito tempo?
— Não. Ainda ando a estudar. Trabalho de manhã e de tarde estudo.
— E quanto é que ganhas aqui por mês?
— Aqui não ganho nada. (sic) Estou aqui é para ocupar os meus tempos livres… (sic)
— Os teus tempos livres a trabalhar?
O miúdo acena que sim.
— Sim, senhor.
— E qual é o teu trabalho aqui?
— Faço… ajudo…
— O que é que fazes exactamente?
— Faço janelas quando posso… pequenas e ajudo a cortar ferros.
— E há mais rapazes com a tua idade a trabalhar?
— Não, senhor.
(Ouvem-se gritos)
— É o teu patrão que te está a chamar?
— Um momento. Já vou…
(Mais gritos insistentes ao longe.)
— O teu patrão está a chamar-te. E tens mais irmãos?
— Tenho.
— E trabalham também?
— Não.
— Não trabalham…
Passo à ofensiva.
— O senhor não se importa de vir aqui um segundo? O senhor é o patrão dele? Vamos ver se este senhor quer falar… O senhor dá-me licença? Podemos entrar? Bom dia, dá licença?
— Não, não.
— O senhor não quer falar? Tem menores a trabalhar aí…
— Ponha-se lá fora, de faz favor.
— Metemo-nos lá fora. É?
Pois é. O que vimos não devíamos ter visto. Se perguntámos não devíamos ter perguntado. Se ouvimos não devíamos ter ouvido. Deixem as crianças trabalhar em paz.
NOTA:
Esta reportagem foi efectuada em apenas três dias. Foi apresentada no programa «A Hora da Verdade» da RTP, no dia 22 de Dezembro de 1988 [ver AQUI]
O empenho de Norberto Lopes e de Sérgio Ramos (imagem), José António Fernandes (montagem VT e pós-produção vídeo), Carlos Germano (vídeo-grafismo electrónico), Rogério Lagos e Vítor Matela (pós-produção audio), Albano da Mata Diniz (sonoplastia) e de Luís Gonçalo Bettencourt da Câmara foi decisivo para fazer esta reportagem.
Miguel Sousa Tavares e Margarida Marante apoiaram o meu projecto.
Considero, aliás, que «Clandestinos da Vida» foi uma das reportagens mais importantes da minha carreira profissional.
E das mais difíceis também.
Tenho uma profunda admiração por aquelas crianças. E imenso respeito também pela sua coragem e força.
Rui Araújo
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