correio mercantil

Filantropia, lucro e sede de nomeada

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Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas semanais. Hoje, o piparote de Brás Cubas vai para as benfeitorias dos laboratórios clínicos em 2021 que se transmutaram em malfeitorias em 2024.


Quem sabe, sabe; quem não sabe, fica a saber agora, porque eu digo, ou escrevo: morri de pneumonia. Não será, daí, que me advém o interesse por assunto de farmacologia, de terapêuticas e de diagnósticos, nem é por aí que lamento não me terem dado um Paxlovid, ou, vá lá, uma Ivermectina nos idos de 1880, para me salvar daquela febre pulmonar. Se não fosse daquilo, seria daqueloutra.

Lamentei sim, e lamento de novo, ter o meu acabamento frustrado, por incompetência ou impotência, o alcance prático e concreto de uma ideia, uma ideia fixa, saída da minha cabeça antes da entrada nos meus pulmões da bactéria ou do vírus (coisa nunca ouvida em minha vida), que nada menos era que a invenção de um medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Como alguns sabem – e quem não sabe, eu digo outra vez, ou escreverei –, na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do Governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei antes, e continuo a não negar, e confidenciei aos amigos, as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos.

white paper on persons lap

Há 144 anos já confessara, e agora confesso de novo, que, continuando cá do outro lado da vida, aquilo que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplastro Brás Cubas.

Para que negá-lo? Eu tinha, e tenho, a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão-de reconhecer os hábeis. Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: – amor da glória.

Compreendo, por isso, muito bem a indisposição, a “indignação” da vossa Associação Nacional de Laboratórios Clínicos depois de verem a vossa Autoridade da Concorrência aplicar às empresas dos seus dirigentes umas coimas de uns quantos mil-réis, vertidos em euros. Deve valer muitos ouros dos meus tempos. Ainda andei a tentar saber quanto valeriam 57,5 milhões de euros nos meus réis do século XIX, mas perdi-me em contas, considerando que depois do meu fenecimento, no Brasil se trocou os réis pelo cruzeiro, depois este cruzeiro pelo cruzeiro novo, e depois este cruzeiro novo passou novamente a ser cruzeiro, depois este se mudou para cruzado, e depois este cruzado se transmutou para cruzado novo, e depois este cruzado novo se alterou (de novo) para cruzeiro, e depois este cruzeiro se renovou em cruzeiro real, e depois este cruzeiro real saltou, por fim, corria o ano de 1994, para o real – que, depois dos ciclópicos desvarios da minha nação, e mais a inflação, do meu real só tem a nominata.

Enfim, adiante. Compreendo, pois, e me solidarizo com a manifestação de “total desacordo e indignação” dos benfeitores laboratórios clínicos acusados de malfeitorias, porque, em abono dos factos, acho mesmo que houve “falta de compreensão crítica” da Autoridade da Concorrência sobre a resposta dos desditosos ditos, pobrezinhos, “aos apelos do Estado português” para “responder às necessidades impostas pela pandemia”.

a group of medals on display in a case

E eu acrescentarei, para dramatizar, sete adjectivos aos apelos do Estado português, embora inaudíveis por inexistirem registos, mesmo se manipulados: lancinantes, pungentes, excruciantes, torturantes, aflitivos, mortificantes e esmagantes. E escolho sete por terem sido sete os dirigentes da Associação Nacional de Laboratórios Clínicos que, correndo para os apelos do Estado, representam as sete empresas que, sem darem por isso – por estarem preocupadas só em responder “às necessidades impostas pela pandemia” –, se viram a lucrar muitos milhões em ajustes directos depois de combinarem preços entre si. Aliás, admira-me que os comentaristas da vossa imprensa, que andaram a aplaudir cada um dos 46 milhões de testes realizados em Portugal que apanharam 12 infectados (não necessariamente doentes) em cada 100 zaragatoadas, não se insurjam por uma benfeitoria praticada em 2021 se transmutar em malfeitoria em 2024.

Na verdade, sinto na alma – por as minhas frias carnes já há muito terem sido roídas pelos vermes –, aquilo que as empresas agora sentem na carteira: uma desalmada frustração. A ideia dos empresários dos laboratórios clínicos com os testes nas escolas era a mesma que eu tinha para o meu emplastro: uma medalha, com uma das faces virada para o público, reflectindo-os como ‘salvadores da Pátria’ na pandemia; e a outra virada para eles, com o ouro dos cofres da Pátria. Saíram-se mal. Ou não.

Até para a semana, e um piparote.

Brás Cubas


N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou sarcástico.


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