Estado-Maior da Armada 'oferece' contratos a quem fez consulta preliminar

Limpezas na Marinha: este ano, Gouveia e Melo já soma ajustes directos de quase quatro milhões

por Pedro Almeida Vieira // Agosto 22, 2024


Categoria: Res Publica, Exame

minuto/s restantes

Embora o actual Chefe do Estado-Maior da Armada, Gouveia e Melo, tenha usado o camuflado como ‘imagem de marca’ durante a pandemia, é o branco, a cor da limpeza, que mais se associa à Marinha. Mas este ano, o ramo das Forças Armadas liderado pelo homem que se tornou ‘herói da logística’, apenas consegue manter as suas instalações limpas recorrendo a sucessivos ajustes directos, porque um concurso público agregado aberto no início de 2022 ‘naufragou’, e no ano passado um novo concurso público só previu a limpeza durante três meses. Por via de contratos de ‘mão beijada’, que beneficiaram sobretudo duas empresas, este ano já foram ‘limpos’ quase quatro milhões de euros por esta via, três vezes mais do que em 2022 e 2023. Além disso, a Marinha usou um expediente que levanta muitas dúvidas legais: admitiu ao PÁGINA UM que ‘ofereceu’ os contratos às empresas a quem fez uma consulta preliminar ao mercado, algo que viola os princípios da não discriminação e da transparência.


Um concurso público da Marinha aberto em Novembro do ano passado para, entre outros lotes, comprar esfregonas, vassouras, esponjas em nylon, trapos, pás de plástico, panos de flanela para o pó e sacos de lixos foi concluído com sucesso no ‘tempo de um ai’. No início de Fevereiro deste ano, já estavam a ser celebrados contratos com diversas empresas concorrentes, para cumprir o plano de compras de 2024, com montantes que iam de 20,40 euros até pouco mais de 17 mil euros.

Porém, no ramo das Forças Armadas que tem hoje a liderar o homem que se destacou nas operações de logística da vacinação contra a covid-19, o almirante Gouveia e Melo, foi um autêntico ‘cabo das tormentas’ despachar um concurso público para a limpeza de diversas instalações militares aberto em Fevereiro de 2022. Em abono da verdade, o concurso público ‘naufragou’. Resultado prático: este ano têm-se somado sucessivos ajustes directos sem se conhecerem os verdadeiros motivos do imbróglio de um procedimento concursal iniciado há 30 meses nem os motivos para a preferência agora concedida sobretudo a duas empresas de limpeza, a Intelimpe e a Lucena & Lucena.

seven white push mops on wall

O mais recente ajuste directo desta natureza beneficiou a empresa Fine Facility Services, contratada até ao final de Dezembro por serviços de limpeza da Base Naval de Lisboa, do Comando do Corpo de Fuzileiros e do Depósito de Munições, entre outros departamentos da Marinha. Vai receber, de ‘mão beijada’, um total de 584 mil euros, que se ‘transformam’ em 718 mil euros com IVA. Mas mais ‘sorte’ teve a sua concorrente Interlimpe, que conseguiu arrecadar, apenas desde Fevereiro de 2024, seis ajustes directos que já totalizam mais de 1,47 milhões de euros, que aumentam para mais de 1,8 milhões de euros com IVA.

Também afortunada aparenta ser a Lucena & Lucena – uma empresa de Matosinhos com apenas três anos e um capital social de apenas 5.000 euros, que pertence a um casal que viverá no Brasil –, que celebrou, entre Fevereiro e Julho deste ano, quatro ajustes directos para limpeza de instalações da Armada. O valor potencial destes contratos sem concorrência aproxima-se dos 990 mil euros, que aumentam para mais de 1,2 milhões de euros com IVA.

De acordo com um levantamento do PÁGINA UM no Portal Base, incluindo um contrato de compra de papel higiénico com folha dupla de 12.450 euros – que deverá dar para 50 mil rolos, embora o caderno de encargos nem sequer indique a quantidade a entregar –, a Marinha já contabiliza, para serviços e produtos de limpeza, 16 ajustes directos nos primeiros oito meses do presente ano. No total, a factura já ultrapassa os 3,1 milhões de euros, ou seja, 3,85 milhões de euros contando com o IVA.

Confrontando os valores registados este ano para serviços de limpeza, mostra-se evidente um aumento substancial dos ajustes directos, não tanto em número mas sobretudo em montantes. Por exemplo, em todo o ano passado, a estrutura militar liderada por Gouveia e Melo celebrou 16 ajustes directos, embora totalizando 974 mil euros (sem IVA), ou seja, apenas um terço daquilo que registou em apenas oito meses de 2024. Em 2022, o primeiro ano com Gouveia e Melo em funções de topo, a Marinha tinha celebrado 35 ajustes directos, mas sem chegar à fasquia de um milhão de euros (995 mil, sem IVA). Em contraste, os serviços de limpeza e de aquisição de produtos de limpeza contratados por concurso público atingiram 2,01 e 1,21 milhões de euros, respectivamente em 2022 e 2023. Este ano, em oito meses, por concurso público apenas se celebraram contratos no valor de 131 mil euros, todos de pequeno valor.

Almirante Gouveia e Melo, Chefe do Estado-Maior da Armada. Foto: DR

Um conjunto de seis questões foram enviadas pelo PÁGINA UM ao Chefe do Estado-Maior da Armada, pedindo esclarecimentos, entre outros aspectos, sobre a sistemática opção pelos ajustes directos em serviços de necessidade contínua e programável, uma porta-voz da Marinha diz terem sido “motivos extraordinários e num âmbito muito restrito” que levaram à decisão dos ajustes directos, após o concurso público de 2022 – que agregava 22 lotes de diversos ramos das Forças Armadas – ter sofrido “diversas vicissitudes procedimentais, normais em procedimentos contratuais”, tendo estes sido concluídos apenas “no final de Maio”.

Acrescente-se, contudo, que, além de a Marinha não ter explicitado, apesar de pedido reiterado, quais as vicissitudes procedimentais que alegadamente existiram, não é (ou não deveria ser) uma situação normal a não conclusão de um concurso público ao fim de 30 meses. Aliás, aparentemente, o Estado-Maior da Armada não terá contado toda a ‘história verdadeira’ ao PÁGINA UM, porque o concurso aberto em Fevereiro de 2022 já nem sequer será aproveitável. Tanto assim que em Julho do ano passado foi aberto pela Marinha um novo concurso público para serviços de limpeza, mas para apenas os três últimos meses de 2023, provavelmente por razões orçamentais.

Apesar de o Estado-Maior da Armada ter colocado a informação errada no Portal Base sobre este concurso público, repartido em 20 lotes, referindo que foi ganho apenas pela Interlimpe, contra cinco concorrentes, na verdade esta empresa arrecadou 11 lotes e a Lucena & Lucena um total de nove, com um custo global de 733 mil euros. Certo é que, neste caso, este concurso público ficou decidido em menos de quatro meses, uma vez que os contratos para os 20 lotes foram assinados em Outubro do ano passado.

Porém, terminada a vigência de apenas três meses destes contratos dos 20 lotes, e sem haver novo concurso público concluído para garantir serviços de limpeza ao longo de 2024, a Marinha decidiu então lançar mão de sucessivos ajustes directos. E esta é a principal razão para já se atingirem quase quatro milhões de euros em serviços e produtos de limpeza. E é para tentar justificar a falta de planeamento que a Marinha tenta usar a estratégia da tergiversação.

Base Naval de Lisboa, no Alfeite. Foto: DR

Com efeito, perguntado como são feitas as escolhas específicas das empresas que, por ausência de concorrência, beneficiam dos ajustes directos, e se existe uma justificação por escrito (para ser enviada), a porta-voz de Gouveia e Melo diz ter-se optado “por efectuar consultas preliminares ao mercado nos termos do artigo 35º-A do CCP [Código dos Contratos Públicos], tendo como racional na escolha dos operadores económicos a consultar as empresas que já se encontravam a prestar os serviços de limpeza e as empresas a quem, no âmbito do procedimento agregado do MDN [Ministério da Defesa Nacional], foram adjudicados os serviços, ou seja, aquelas que dispunham de capacidade de resposta imediata por conhecer os serviços e as infraestruturas  a limpar”.

Em termos práticos, apesar de não explicado, o Estado-Maior da Armada estabeleceu ajustes directos, pelo que se apura, apenas com as duas empresas – Intelimpe e Lucena & Lucena – que tinham vencido os concursos públicos do último trimestre de 2023, em detrimento da concorrência. E alega urgência imperiosa que, na verdade, se deverá prolongar, na generalidade dos casos, até ao final do presente ano. Acrescente-se também que o alegado uso pela Marinha de uma consulta ao mercado para decidir pela escolha das empresas beneficiadas com ajustes directos mostra-se opção polémica e eventualmente ilegal. Com efeito, a consulta ao mercado constitui somente uma fase de preparação do procedimento para a formação de contratos e requer, por isso, especiais cuidados, devendo cingir-se a consultas informais de mercado, através da “solicitação de informações ou pareceres de peritos, autoridades independentes ou agentes económicos, que possam ser utilizados no planeamento da contratação”.

Nessa linha, a consulta preliminar às “empresas que já se encontravam a prestar os serviços de limpeza e as empresas a quem, no âmbito do procedimento agregado do MDN [Ministério da Defesa Nacional], foram adjudicados os serviços”, como refere a Marinha na resposta ao PÁGINA UM, aparenta configurar uma violação ao CCP. E isto porque a lei destaca que a consulta preliminar “não pode ter por efeito distorcer a concorrência, nem resultar em qualquer violação dos princípios da não discriminação e da transparência”, o que sucederá se, posteriormente à consulta a uma empresa, a entidade pública adjudicante lhe oferece de ‘mão beijada’ um ajuste directo.

Aliás, a norma do CCP sobre a consulta preliminar ao mercado explicita, por esse motivo, que ”quando um candidato ou concorrente, ou uma empresa associada a um candidato ou concorrente, tiver apresentado informação ou parecer à entidade adjudicante ou tiver sido consultada […] ou tiver participado de qualquer outra forma na preparação do procedimento de formação do contrato, a entidade adjudicante [neste caso, a Marinha] deve tomar as medidas adequadas para evitar qualquer distorção da concorrência em virtude dessa participação”.

Fuzileiros em acção. Foto: DR.

E acrescenta essa norma que “são consideradas medidas adequadas, entre outras, a comunicação aos restantes candidatos ou concorrentes de todas as informações pertinentes trocadas no âmbito da participação do candidato ou concorrente na preparação do procedimento de formação do contrato, com inclusão dessas informações nas peças do procedimento”. Ora, como a Marinha fez ajustes directos com as empresas que consultou, sem ponderar sequer outros procedimentos, esta norma do CCPJ terá sido assim violada.

Saliente-se que o PÁGINA UM solicitou a Gouveia e Melo que fossem enviadas as justificações escritas para a escolha por ajuste directo das empresas, mas sem sucesso. Também não foi respondida a questão sobre as regras existentes no Estado-Maior da Armada com vista à redução dos contratos de ‘mão beijada’, sobretudo para a aquisição de bens e serviços onde exista concorrência conhecida, como é o caso evidente dos serviços de limpeza.


PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

APOIOS PONTUAIS

IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

MBWAY: 961696930 ou 935600604

FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.