Vértebras

Da corrompida luta contra a corrupção: o caso do Prémio Tágides

Vértebras

por Pedro Almeida Vieira // Novembro 25, 2021


Categoria: Opinião

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A corrupção é um dos maiores flagelos das sociedades. É um lugar-comum. Tal como é algo banal discutir-se a necessidade de promover normas e códigos de ética e de conduta para lutar contra a corrupção. De apoiar quem luta contra a corrupção. Para extirpá-la. Por exemplo, na Assembleia da República não há tema mais recorrente.

Uma breve consulta dos Diários da República no período democrático descarrega 1.254 debates parlamentares em que se falou de corrupção. Desde 1974. Só este ano foram 81. E lá veio mais uma Estratégia Nacional Anti-Corrupção para o período 2020-2024, convenientemente aprovada.

O explícito desejo de acabar com a corrupção é, diria, universal. Não conheço nenhuma Liga, Sociedade ou Clube em prol do uso deste expediente. Porém, todos sabemos que a corrupção existe, subsiste e persiste. Sob todas as formas, e sobretudo sob formas sub-reptícias, e por isso mesmo engrandece-se como uma mina invisível à superfície, mesmo quando se propala que se combate a corrupção.

Na verdade, o termo corrupção é bastante vasto, e subentende sempre uma suposta alteração de pureza original (física, ética, mental, de valores, etc.). Embora esteja associada à entrega de uma mala de dinheiro – método clássico, mas já ultrapassado –, a corrupção está longe de se cingir à troca de uma imediata compensação monetária pela aprovação de um acto ilícito. A corrupção está também no lobby, nas alterações legislativas feitas a preceito, na introdução de excepções, nas interpretações jurídicas enviesadas em legislação propositadamente ambígua. E, hélas, até pode estar em supostos paladinos da luta contra a corrupção.

euro banknote collection on wooden surface

Porque, na verdade, no âmago do acto final da corrupção – a troca de bens materiais ou imateriais que prejudica indevidamente outrem ou a sociedade – está um corrompimento inicial dos valores éticos e morais.

A corrupção é – insista-se no termo “na verdade” –, antes de mais, uma “modificação, adulteração das características originais de algo”, conforme se pode observar no Dicionário Houaiss (que se mostra sempre muito útil nestas verificações).

Tudo isto a pretexto de um caso particular, que acidentalmente me envolve, mas que me obrigou a reflectir sobre até por onde podem chegar os meandros da corrupção, não aquela da “mala de dinheiro” mas sim da corrupção moral e de valores – que é a antecâmara para as outras formas mais graves.

Em Outubro passado, mais precisamente, no dia 14, recebi uma mensagem que assim se iniciava: “Muitos Parabéns! Após ter sido nomeado por alguém que conhece o seu trabalho, foi selecionado para a final [d]o Prémio Tágides 2021: pessoas que nos inspiram no combate à corrupção promovida pela Associação All4Integrity e que conta com o Alto Patrocínio de Sua Excelência o Presidente da República.”

Mais adiante, a remetente da mensagem, a vice-presidente da All4Integrity – que, pesquisei depois, é uma associação recentemente criada, e dinamizada por André Corrêa d’Almeida, um economista português da Columbia University – informava-me que houvera um período de candidaturas (feitas por terceiros) e que “após várias iterações 81 pessoas foram apuradas para a final que se realizará na semana de 9 ou 16 de dezembro de 2021, em Lisboa”. Pedia-me que lhe transmitisse a minha aceitação de nomeação para a final, além de outros dados pessoais, e que fizesse reserva da informação “até que o(a)s finalistas sejam anunciado(a)s publicamente na última semana de outubro”.

Eu assim fiz, mas pelo menos uma das tais 81 pessoas apuradas para a final não guardou reserva. Assim, também para minha surpresa – porque não o imaginaria no lote e até me incomodaria pessoalmente me encontrar com ele numa lista de pessoas que lutam contra a corrupção – vi escarrapachado na imprensa que André Ventura era um dos designados para o Prémio Tágides. Tal como eu.

Não será necessário discorrer sobre o desonesto aproveitamento político de André Ventura (até porque a sua candidatura poderá ter sido apresentada por pessoas próximas), nem será preciso dissertar sobre a imprudência e falta de tacto da All4Integrity em, “após várias iterações”, incluir André Ventura nos 81 finalistas, mais ainda sabendo, pelos jornais, que houvera 359 candidaturas (vd. edição de 7 de Outubro do Diário de Notícias”. Enfim, mas o “mal” a haver, estava feito. A “correcção”, a fazer-se, seria ao nível do júri, entidade soberana na escolha final dos vencedores em cada uma das cinco categorias (Projecto de Investigação, Projecto da Sociedade Civil, Iniciativa Política, Iniciativa Empresarial e Iniciativa Jovem).

Note-se que, entre os 35 membros do júri (distribuídos pelas cinco categorias) anunciados pela All4Integrity, constavam pessoas de vários quadrantes, ideologias e sensibilidades, como Maria José Morgado, Ana Gomes, José Ribeiro e Castro, Henrique Neto, Camilo Lourenço, Poiares Maduro, Henrique Neto e Sandra Felgueiras. Por certo, julgo eu, os membros do júri tomariam as decisões correctas para atribuir os galardões às pessoas devidas.

Porém, a All4Intgrity permitiu-se “inovar”: num prémio contra a corrupção, decidiu que seria melhor proceder a uma profunda “modificação, adulteração das características originais de algo”, sendo que o “algo” foi tão-só o regulamento do próprio prémio.

E assim, para eliminar o incómodo da “nomeação” de André Ventura, onde se lia no regulamento inicial (que esteve em vigor durante o período de candidaturas) que “após a validação das candidaturas/nomeações, a equipa do Prémio, presidida pelo Professor Doutor André Corrêa d’Almeida, (…) procederá à divulgação pública de uma lista com o Top 25, 50 ou 100 das candidaturas/nomeações pré-selecionadas (dependendo do número de candidaturas que vierem a ser submetidas)”, o novo regulamento (uma corruptela do original, já feita muito depois do encerramento das candidaturas) deixou de fazer constar a divulgação desse “Top” de finalistas, passando a decisão de divulgar uma lista mais restrita de “três a cinco finalistas, por categoria do Prémio” para os membros do júri.

Dessa forma ardilosa, conseguiu a All4Integrity – apenas perdendo a integridade – solucionar o problema “André Ventura”, embora expondo-se perante os outros 80 finalistas, que poderiam afinal já não ser finalistas, contrariando o que a associação lhes garantira.

Mas, perdido por um, perdido por mil. Assim, a All4Integrity decidiu introduzir ainda mais “corrupções”. No regulamento inicial indicava-se que os 35 membros do júri “não podem ser nomeados para a categoria do Prémio de que são júris”, mas agora já consta o seguinte: “se algum elemento do júri for nomeado ser-lhe-á dado a oportunidade de escolher entre a nomeação e a função de jurado.”

Embora ainda não seja conhecida a lista dos tais novos finalistas (ou finalistas dos finalistas afinal não anunciados), será muito curioso contabilizar quanto deles pertenciam ao júri inicial. Em todo o caso, refira-se que já “desapareceu” uma dezena de membros do júri anunciado pela All4Integrity em Agosto passado, que foram substituídas por outras.

Por fim, terceira “inovação” da All4Integrity na mudança de regulamentos a meio do jogo: na categoria da Iniciativa Jovem, inicialmente os candidatos eram aceites se tivessem entre 18 e 30 anos. Subiu agora para os 35 anos, sendo também curioso observar quantos dos finalistas a anunciar para esta categoria terão mais de 30 anos…

Enfim, tudo isto sei, e tudo isto escrevo porque, entretanto, recebi a informação de que, afinal, não constarei da lista dos tais (novos) finalistas. Confesso que me sinto aliviado. E por dois ponderosos motivos.

Primeiro motivo: assim nem sequer tenho de estar a lutar internamente para saber se aceitaria uma nomeação final para um prémio contra a corrupção que, na verdade, se “corrompeu” na sua essência, alterando várias regras do jogo inicial. Isto faz-me lembrar um concurso público em que os pressupostos são alterados pela entidade adjudicante depois do encerramento do prazo da entrega das propostas.

Não está aqui em causa sequer algo patrimonial, nem relacionado com o Estado, mas a gravidade é similar, porquanto se está perante um prémio contra a corrupção, ainda mais com o Alto Patrocínio da Presidência da República.

A corrupção existe, porque, na verdade, existem sempre beneficiados. Poder-se-ia sempre dar o caso de eu, na hipótese de ser “um finalista afinal mesmo finalista”, esquecer estas “embrulhadas” da All4Integrity. E isso era uma corrupção. Livrei-me disso, assim. A corrupção, tendo uma raiz moral e ética, também se revela em omissões e no silêncio.

Segundo motivo: estou também aliviado – e talvez até orgulhoso – porque, em devido tempo e antes de uma decisão final da All4Integrity, ter criticado as alterações do regulamento e do “modus operandi” do Prémio Tágides. Com efeito, há cerca de duas semanas, estranhando a não-divulgação dos finalistas e de alterações no júri, contactei a All4Integrity e reconfirmei a alteração do regulamento.

Referi então, em mensagem dirigida à vice-presidente da All4Integrity, que “alterar um regulamento a meio é tema muito delicado, é uma medida susceptível de maior polémica, ainda mais tendo em conta a temática do prémio. Digo isto desde já, independentemente de vir a estar ou não no lote final. Qualquer que seja a situação não me sinto muito confortável.”

E acrescentei ainda: “Sinto que alterar o regulamento, para acertar um processo de construção ‘on the job’ – e para tentar também corrigir uma situação incómoda (para mim e, por certo, para muita gente mais) que resultou numa ‘fuga de informação’ sobre um dos ‘finalistas iniciais’ (que terá sido mais um aproveitamento político) – não será porventura uma decisão pacífica para o exterior. Nunca vi um regulamento alterar-se a meio. Arriscam a apanhar com um ‘processo de vitimização’ do visado (porque, por mais agradável que nos pareça a vossa solução, só a alteração do regulamento evita que ele não seja publicamente divulgado como finalista), além de não ser muito agradável ver que uma boa parte daqueles que estariam para ser finalistas afinal não o serão. A alteração que permite um júri passar, por sua opção, a nomeado também me parece inopinada. E até eu estar, nesta fase, a opinar sobre estas matérias, atendendo que sou (agora) candidato a finalista”.

Escrevi isto em 11 de Novembro. Ontem, poucas horas depois da All4Integrity me ter informado da minha não-inclusão na lista de finalistas, respondi a pedir-lhes que, no futuro, me excluíssem de qualquer candidatura, nomeação ou ligação ao Prémio Tágides.

Com entidades destas a defender a luta contra a corrupção, por certo continuaremos a ter corrupção. Pelo menos, moral. Para mim, que tento lutar contra a corrupção, o Prémio Tágides morreu logo na sua primeira edição. Por corrupção moral, por onde tudo começa. E não entender isto é não entender nada. Será bom que essa corrupção não se transforme em putrefacção. Por isso, esta minha denúncia.


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