Vértebras

Do jornalismo ao Estraca, terminando em José Mário Branco

Vértebras

por Pedro Almeida Vieira // Dezembro 7, 2021


Categoria: Opinião

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Um jornalista que se preze tem duas obrigações: informar e não ser ridículo. Geralmente, o ridículo encontra-se intimamente associado à ignorância. E à maldade. João Amaral Santos, jornalista da Visão, talvez não seja completamente ignorante, mas não informa e é ridículo. E é mau. Mau jornalista. E má pessoa, uma pessoa para quem os meios mais escroques justificam os seus “beatíficos” fins.

Num texto publicado hoje no site da Visão – catalogado na secção Sociedade, mas que se assume claramente como artigo de opinião, embora dissimulado –, o escriba Santos, que recebeu a carteira profissional 7544, mas jamais deve ter lido o Código Deontológico, avisa ao que vem no título: “Movimentos negacionistas e antivacinas usam Hip Hop para espalhar teorias da conspiração em Portugal”. O pretexto: a música “Jornalixo”, do rapper Estraca, nome artístico de Carlos Guedes, 24 anos.

João Amaral Santos não tem qualquer relevância no meio jornalístico, e o seu percurso na imprensa nada tem de assinalável. Porém, exactamente por esse motivo merece este destaque: a maldade surge a partir da mediocridade. Ele constitui, à falta de qualquer cume qualitativo abonatório, o expoente de uma forma de estar no jornalismo de hoje: o jornalismo dogmático e securitariamente ideológico, com posturas missionárias, inquisitoriais e populistas, usando execrável manipulação e falsificação, cimentadas pela inanidade, fruto da ignorância e impreparação técnica e científica das escolas de Jornalismo e Comunicação.

Ele, João Amaral Santos de nominata, corporiza o jornalista mediano da nossa imprensa. Mediano,, no sentido estatístico do termo; medíocre no sentido qualitativo, devido ao actual estado da classe.
São jornalistas como João Amaral Santos – e a ausência de uma comissão deontológica séria e interventiva – que fazem proliferar a má imprensa, o “jornalixo” retratado por Estraca, que medram um “jornalismo de merda”. Ameaçam-nos eles, no mínimo, de ficar na História como um lastimável e lamentável episódio da vida em democracia. Mas temo que, na pior das hipóteses, venham a contribuir para minar e destruir as democracias ocidentais, tornando a liberdade individual e o livre arbítrio em direitos maléficos, a serem coarctados em prol de um imaginário bem comum, que beneficiará somente elites políticas e financeiras.

Estamos no prelúdio de um paraíso de democratas com sonhos ditatoriais: a aceitação pacífica de uma felicidade sanitária colectiva aliada à infelicidade individual; a imposição ordeira da versão século XXI da biopolítica e do biopoder teorizadas por Foucault. E os jornalistas serão os teólogos e missionários deste novo mundo.

Não desejo, contudo, fugir muito ao tema que suscitou a escrita desta opinião. Nem vou sequer perder demasiado tempo a dissertar, e muito menos em direcção a “periodistas” do quilate de João Amaral Santos, por que motivo um jornalista decente jamais pode catalogar como negacionistas os críticos e contestatários da gestão da pandemia.

Nem mesmo quem nega a existência do vírus merece uma denominação de conotação tão depreciativa e específica para um período negro da História da Humanidade. E muito menos se pode catalogar como negacionista quem apela para a transparência da informação das autoridades políticas; quem aponta alternativas; quem denuncia incongruências; quem crítica o uso de certificados supostamente sanitários como instrumentos de segregação; quem abomina que vacinas (com tão pouco tempo de “vida”) sejam utilizadas sem ponderação; e/ou quem defenda que estas sejam aplicadas em função de dois princípios básicos: o da precaução e o do risco-incerteza-benefício.

Na verdade, a questão essencial no artigo de opinião de João Amaral Santos é a sua inata e intrínseca maldade. Maldade nas suas diversas acepções. Somente por maldade, pela mais sublime má-fé, pode João Amaral Santos escrever o seguinte: “Com letras que incluem os chavões e as teorias da conspiração de sempre, artistas como Estraca ou Penhx recorrem a uma amálgama de palavras e frases cantadas, onde se incluem acusações a políticos, jornalistas ou médicos e enfermeiros, entre outros, e se fala de corrupção, pedofilia ou satanismo – uma retórica próxima da utilizada pelos norte-americanos QAnon.”

Eis a alusão à extrema-direita agora como cereja em cima do bolo da retórica jornalista contra quem contesta e crítica. O poder nem precisa de opinar nem criticar quem os critica. Há sabujos e jagunços dispostos ao servicinho: os jornalistas. Salazar não fez, não faria melhor. Sempre! Sempre a merda da extrema-direita! Isto já não apenas chateia; faz perder as estribeiras.

Enfim, só um jornalista calaceiro, imberbe e maldoso – ou seja, só se sendo um João Amaral Santos – pode ignorar o estilo e forma das canções de intervenção, desde os tempos dos tempos. Desde, recuemos à História Pátria, os tempos do pós-25 de Abril. Como pode alguém então, sem cair no ridículo, e manter amanhã a carteira profissional de jornalista, considerar que são “amálgamas de palavras e frases cantadas” isto aqui em baixo que Estraca canta?

Estraca, nome artístico de Carlos Guedes (n. 1997)

E hoje é puros contra impuros
São cultos contra incultos
Estudos, estudos e mais estudos para te fazerem mais burro
Grupos, grupos e mais grupos, medo forma novos surdos
Questionar o questionável é conversa de malucos
Então eu sou louco, assumidamente louco
Se loucura é questionar aquilo que injetam no meu corpo
Sim, então eu sou louco
Conclusivamente louco
Só existem duas escolhas: homem livre ou homem morto
Eu escolhi ser livre e lutar pela liberdade
Dignidade pela vida ou vida pela dignidade
Escolhas dignas de injustiça, tempos de desigualdade
Ataque a direitos base e crimes contra a humanidade
Regras e novas medidas anti-constitucionais
Querem passes sanitários mas com direitos iguais
Sinais que fazem lembrar tempos ditatoriais
Até miúdos viram escudos para proteger os pais.

Contudo, no meio da diatribe que é o texto (chamemos assim por convenção) de João Amaral Santos, causa-me ainda maior fúria – e eu não sou o Estraca – a colagem do rapper a teorias conspirativas de extrema-direita.

Associar Estraca à extrema-direita é como tentar misturar a decência com o João Amaral Santos: temos, de um lado o azeite, do outro a água.

Questiono-me, aliás, como pode uma anémona sequer pensar que Estraca pode estar ao serviço de interesses de extrema-direita quando, no seu magistral “Terra Nostra”, escrito no início do ano passado, ele se expõe assim:

Chega de aventuras dum Ventura partidário
E de um comentário CM pa’ fascista parlamentário
Marcelinho nosso querido, muito pouco autoritário
A passear pelo país com os impostos do meu salário.

Enfim, estará sim ele, João Amaral Santos, ao serviço de um propósito, que não a decência, e esse propósito não é digno do Jornalismo. Ele e muitos jornalistas, e infelizmente são mesmo muitos – e um bastaria para ser demais – justificam plenamente a música de intervenção de Estraca. As suas reacções justificam cada palavra do rapper. E mereciam mais ainda de mim, para além destas que acabei de escrever. Tivesse eu melhor arte.

E já que estamos numa de abordar canções de intervenção, deixo-vos uma das minhas passagens preferidas de “FMI”, do José Mário Branco, escrita “de um só jorro, numa noite de Fevereiro de 79”, como ele cantou, e que estranhamente, ou talvez não, se encaixa, perfeita, na realidade dos nossos distópicos dias:

José Mário Branco (1942-2019)

Vá mandem-me lavar as mãos antes de ir para a mesa
Filhos da puta de progressistas do caralho da revolução que vos foda a todos!
Deixem-me em paz porra, deixem-me em paz e sossego
Não me emprenhem mais pelos ouvidos caralho
Não há paciência
Não há paciência
Deixem-me em paz caralho
Saiam daqui
Deixem-me sozinho, só um minuto
Vão vender jornais e governos e greves e sindicatos e polícias e generais para o raio que vos parta!
Deixem-me sozinho
Filhos da puta
Deixem só um bocadinho
Deixem-me só para sempre
Tratem da vossa vida que eu trato da minha
Pronto, já chega
Sossego porra
Silêncio porra
Deixem-me só, deixem-me só, deixem-me só
Deixem-me morrer descansado.


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