A crise financeira na imprensa nacional lançou-a para “aventuras” comerciais de duvidosa legalidade, mas de deontologia maculada. Um dos casos mais graves mostra-se na Global Media, que tem estado a transformar-se numa “fábrica de notícias” para quem pagar. Garante até sigilo. Mas estes estranhos negócios comerciais mercadejando o jornalismo não são caso único. Este é o primeiro artigo de um dossier que mergulha no mundo financeiro sem escrúpulos da nossa imprensa.
A Global Media – que detém, entre outros, os periódicos Diário de Notícias e Jornal de Notícias, e a rádio TSF, para a além de uma participação relevante na agência Lusa – tem estado a assinar contratos para a produção de notícias, sob a forma de prestação de serviços, para as Câmaras Municipais. Como contrapartida suplementar, estes contratos possuem uma cláusula de sigilo, que impedirá potencialmente a publicação de notícias prejudiciais às autarquias.
O caso mais evidente, mas não único, detectado pelo PÁGINA UM, passa-se com um contrato assinado em 28 de Julho passado entre a Câmara Municipal de Valongo e a Global Media – e tendo como um dos signatários o jornalista Domingos de Andrade, simultaneamente director-geral editorial e director da TSF – que contratualizou a produção de “52 (cinquenta e duas) reportagens anuais”, a inserir no Canal JN Directo, e ainda “12 (doze) páginas anuais” em suplementos.
Este contrato, com o prazo de 24 meses, surge no seguimento de um outro assinado no início de 2019 (mas não disponível no Portal BASE), tendo como objecto do contrato a “aquisição de serviços de promoção das marcas identitárias e tecido económico local do Município de Valongo”. Ambos com um preço contratual de 74.000 euros.
A contratação de produção de reportagens pagas – e portanto, dependendo de critérios não editoriais – é uma das questões mais sensíveis na imprensa portuguesa e mesmo mundial. Contudo, aparentemente a Comissão da Carteira Profissional do Jornalista não tem colocado em causa a inserção, cada vez mais abundante, de notícias com conteúdos patrocinados, grande parte dos quais não assinadas para esconder a identidade dos jornalistas que as escrevem.
Com efeito, a Lei da Imprensa destaca que o exercício da profissão de jornalista é incompatível com o desempenho de “funções de angariação, concepção ou apresentação, através de texto, voz ou imagem, de mensagens publicitárias” e ainda de “funções de marketing, relações públicas, assessoria de imprensa e consultoria em comunicação ou imagem, bem como de planificação, orientação e execução de estratégias comerciais”.
No entanto, essa regra legal (e sobretudo deontológica) não é cumprida na Global Media mesmo ao alto nível. Domingos de Andrade, detentor da carteira profissional 1723, sendo director-geral de todas as publicações da Global Media e director da TSF, demonstra participar activamente nas estratégias comerciais do grupo. Por uma simples razão: é um dos signatários do contratos dessa natureza.
Porém, a cláusula de sigilo que se encontra expressa no contrato da Global Media com a autarquia de Valongo, mostra-se ainda de maior gravidade.
Em todo o caso, esta cláusula aparenta ser desnecessária tendo em conta as excelentes relações comerciais entre a Global Media e a Câmara de Valongo. De acordo com um levantamento do PÁGINA UM no Portal Base, apenas desde 2019 estão já contabilizados 18 contratos entre estas duas entidades no valor total de 248.300 euros. Somente 16.300 euros dizem respeito à inserção de publicidade – que, até há anos, era a forma básica de financiamento dos media.
O grosso do montante pago pela autarquia liderada pelo socialista José Manuel Ribeiro refere-se, para além dos contratos já referidos, ao patrocínio de etapas do Grande Prémio de Ciclismo Jornal de Notícias (60.000 euros, no total de dois contratos) e à aquisição de diversos serviços de comunicação das actividades daquela autarquia do distrito do Porto, algumas das quais relacionadas com a actual pandemia, e com a participação activa de jornalistas e mesmo de responsáveis editoriais.
Com efeito, a cláusula 8ª do citado contrato de Julho passado estabelece que “o segundo outorgante [Global Media] garantirá o sigilo quanto a informações que os seus funcionários [que inclui, obviamente, os jornalistas] venham a ter conhecimento relacionados com a actividade do primeiro outorgante [Câmara Municipal de Valongo]. Em suma, como esta cláusula se estende à “actividade” (toda, salvo a inexistência de referência contrária), tal significa que se qualquer jornalista dos órgãos de comunicação social da Global Media souber, por exemplo, de um caso de corrupção naquela autarquia, estará impedido de a noticiar.
Nesses “eventos”, que são efectivamente uma prestação de serviços contra pagamento de verbas, mostra-se à saciedade um franco convívio entre as partes, pouco consentâneo com a equidistância e independência exigida aos jornalistas perante as entidades e responsáveis políticos.
Por exemplo, em 21 de Abril passado, num webinar patrocinado pela autarquia de Valongo em redor da pandemia, e organizado pelo Jornal de Notícias, a directora desta publicação, Inês Cardoso – com a carteira profissional 2511 –, não se inibiu de tecer encómios ao patrocinador do evento. Cite-se: “Uma saudação também especial ao presidente da câmara de Valongo. Nós temos tido algumas iniciativas com Valongo. São particularmente significativas pela forma como o presidente da câmara tem uma perspectiva muito mobilizadora e focado nos cidadãos, nas suas emoções. E por isso foi particularmente desafiante a preparação e a montagem deste webinar”.