A Direcção-Geral da Saúde preferiu ouvir Helena Pereira de Melo, vice-presidente da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, do que pedir parecer ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. A jurista tem ligações ao Partido Socialista e é presidente de uma associação em consórcio com o Grupo José de Mello.
A conselheira de bioética da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC), que proferiu um parecer favorável para a vacinação universal de crianças – sem sequer analisar as incertezas a longo prazo e as questões éticas que tal encerra –, tem fortes ligações ao Partido Socialista e também ao Grupo José de Mello, que integra a CUF, gestora de 14 hospitais e clínicas privadas.
A alegada inexistência de problemas éticos, assumida no parecer final da CTVC, terá sido um dos aspectos determinantes para a decisão esta semana da Direcção-Geral da Saúde (DGS) em aprovar a vacinação universal de crianças.
Recorde-se que, até ao momento, nenhuma criança entre os 5 e os 11 anos morreu em Portugal por causa de covid-19. Além disso, apenas 0,21% dos casos positivos nesta faixa etária tiveram necessidade de hospitalização ao longo deste ano, uma significativa redução na gravidade em relação a 2020, que apresentou um rácio quase três vezes superior (0,61%), de acordo com dados divulgados no recente parecer da CTVC.
Uma investigação do PÁGINA UM descobriu que a autora do parecer de bioética, a jurista Helena Pereira de Melo – cuja identidade apenas foi revelada ontem com a divulgação a contragosto de todos os documentos do polémico parecer integral da CTVC –, foi indicada em 2019 pelo Partido Socialista para integrar o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida.
No ano anterior integrou também, por convite do Governo socialista, a comissão para a revisão da Lei de Bases da Saúde, presidida por Maria de Belém.
Além das suas funções académicas e como vice-presidente da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, esta jurista é ainda preside à ABIO – Associação para o Estudo do Biodireito. Criada em 2016, esta associação surge apresentada como um “consórcio entre a José de Mello Saúde e a Universidade Nova de Lisboa”, que inclui a TAGUS Tank – Tagus Academic Network for Knowledge, com actividades na área da Medicina e apoio à investigação.
Apesar de também acumular a vice-presidência da Associação Portuguesa de Bioética, Helena Pereira de Melo não integra a lista obrigatória de consultores da DGS, segundo confirmado pelo PÁGINA UM no site da DGS. Ou seja, o pedido de parecer solicitado pela CTVC terá sido pontual e específico para o fim em vista.
Saliente-se que, por obrigação legal, os consultores da DGS não podem ser membros de órgão social de sociedade científica, associação ou empresa privada que tenham recebido financiamento superior a 50 mil euros por ano (em média no último quinquénio) de empresa produtora, distribuidora ou vendedora de medicamentos ou dispositivos médicos.
Em todo o caso, refira-se que, apesar da directora-geral Graça Freitas ter nomeado por despacho os membros da CTVC, não os obrigou a apresentar qualquer declaração de incompatibilidades. Assim, de entre os membros desta comissão, apenas Manuel do Carmo Gomes e Válter Fonseca o fizeram, por já serem consultores da DGS há vários anos. Todos os outros – Ana Maria Correia, António Sarmento, Diana Costa, João Rocha, Luís Graça, Luísa Rocha, Maria de Fátima Ventura, Maria de Lurdes Silva, Marta Valente, Raquel Guiomar e Teresa Fernandes – não apresentaram qualquer documento desta natureza. Por exemplo, Luís Graça, imunologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, recebeu este ano um pouco mais 7.000 euros de farmacêuticas, dos quais 2.050 euros da AstraZeneca.
No entanto, aquilo que mais poderá chocar no parecer de Helena Pereira de Melo é a ligeireza na abordagem da ética na vacinação de crianças, porque nada refere sobre a incerteza e os efeitos a longo prazo.
No seu texto de apenas três páginas, a jurista ocupa grande parte do espaço a apresentar uma mera síntese de documentos enviados pela DGS e a expor uma súmula da “leitura dos relatórios que nos foram facultados, da autoria do Centro Europeu de Controlo de Doenças (ECDC) e da Agência Europeia de Medicamentos (EMA). Lista depois os “efeitos benéficos prováveis”, e acrescenta existirem “benefícios para a saúde mental da criança decorrentes de ser vacinada, uma vez que, se não for infectada, não sofrerá os efeitos negativos associados a uma ou várias situações de confinamento”.
Um artigo publicado em 5 de Outubro passado na revista Nature, que cita David Eyre, epidemiologista da Universidade de Oxford, revelou que o efeito benéfico da vacina na transmissão da variante Delta diminui para níveis quase insignificantes pouco tempo depois. Por exemplo, em pessoas que sejam infectadas já com a vacina da Pfizer em acção (duas semanas após a tomada das doses), o risco de contaminar outra é de 42%, aumentando para 58% pouco mais tarde. O risco de um não-vacinado contaminar outra pessoa é de 67%.
Ou seja, se o objectivo for beneficiar as crianças vacinadas em detrimento das não-vacinadas – um aspecto polémico do ponto de vista legal e ético, e ainda não decidido pelo Governo à data do parecer –, não mandando para quarentena os primeiros, os efeitos da medida serão nulos do ponto de vista epidemiológico.
Na verdade, sobre questões concretas de bioética, o parecer de Helena Pereira de Melo elenca só os mais básicos princípios da bioética, que se podem encontrar num simples manual académico.
Com efeito, a jurista escreve em apenas um breve parágrafo que a vacinação de crianças contra a covid-19 cumpre os “três princípios da não-maleficência (não causa, previsivelmente, prejuízo à sua vida, à sua saúde e à sua integridade pessoal), da beneficência (apresenta probabilidade elevada de prevenir a contração da doença e contribui, deste modo, para a saúde física e mental da criança), e da justiça (contribui para a quebra das cadeias de transmissão da doença, pelo menos relativamente às variáveis conhecidas, em particular a Delta (…)”. E justifica isto com “os dados epidemiológicos [que] revelam uma alta transmissibilidade da doença nesta faixa etária, em Portugal”.
Por fim, destaca ainda que o princípio da autonomia nem sequer merece discussão no caso das crianças, porque “este grupo etário não goza de maturidade indispensável para consentir ou não consentir na administração da vacina em causa”.
No seu parecer, Helena Pereira de Melo não apresenta sequer uma reflexão teórica nem uma única referência bibliográfica sobre bioética e vacinas, e especialmente sobre vacinas contra a covid-19 e aplicadas a crianças – um dos temas sociológicos actualmente em ebulição nas ciências sociais.
Por exemplo, uma consulta breve ao Google Scholar identifica cerca de 18.200 artigos científicos que debatem as questões de ética relacionados com a vacinação (obrigatória ou não), incluindo largas centenas sobre a vacinação contra a covid-19, a aplicação de certificados de acesso, a eventual vacinação universal obrigatória e a discriminação de não-vacinados. Temas nem sequer foram aflorados neste parecer da professora de Direito da Universidade Nova de Lisboa.
Recorde-se que anteontem, em declarações à rádio TSF, Maria do Céu Patrão Neves, presidente da Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida – que seria o organismo “natural” para emitir um parecer ético desta natureza – defendeu “o maior interesse das crianças”, pelo que “ponderar a vacinação em termos de proteção dos adultos não é aceitável do ponto de vista ético”.
Esta professora catedrática de Ética na Universidade dos Açores, e também consultora do Presidente da República para a Ética da Vida – e que foi eurodeputada do PSD entre 2009 e 2014 – considerou que a decisão de se avançar, nas actuais circunstância, para um programa de vacinação neste grupo etário deveria ser tomada “na sua dimensão física, psicossocial, afectiva, ou seja, uma forma holística”.