DOSSIER P1 - IMPRENSA & ISENÇÃO

Governo paga webinar ao Público moderado pelo próprio director

10 euro on white printer paper

por Pedro Almeida Vieira // Dezembro 28, 2021


Categoria: Imprensa

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A Secretaria-Geral da Educação e Ciência exigiu que evento online de duas horas, organizado pelo Público, tivesse moderação de um jornalista, cobertura noticiosa garantida, e convidados por si indicados. O director do jornal, Manuel Carvalho, não apenas aceitou essas condições como se prestou mesmo ao papel de moderador, ajudando à execução de um contrato comercial. Eis mais um episódio da investigação do PÁGINA UM aos (novos tipos de) financiamentos da imprensa portuguesa.


O director do Público, Manuel Carvalho, aceitou moderar um webinar pago pelo Governo, e aceitou ainda que fossem publicados “conteúdos editoriais e de publicidade” nos canais em papel e online sobre o Programa Operacional Capital Humano (POCH), em contrapartida ao ajuste directo, no valor de 16.000 euros, feito pela Secretaria-Geral da Educação e Ciência (SGEC).

A compra factual de “conteúdos editoriais” está explicitada no contrato assinado em 15 de Outubro passado entre Purificação Cavaleiro Pais, secretária-geral adjunta da SGEC, e a administração do Público. Além do webinar de cerca de duas horas, transmitido em directo na plataforma do Público no dia 28 daquele mês – que consistiu num debate em torno dos resultados da avaliação da Estratégia de Comunicação do POCH –, o jornal fez muito mais do que promover o evento, com recurso à habitual publicidade.

Com efeito, no contrato a que o PÁGINA UM teve acesso, o Público concordou em publicar, como contrapartida para o recebimento daquela verba proveniente do Governo, quatro artigos em formato digital e/ou impresso.

Director do Público aceitou moderar um evento pago pelo Governo, mas promovido pelo seu jornal, e nem pôde escolher convidados.

De acordo com o contrato a que o PÁGINA UM teve acesso, o Público viu-se obrigado a cumprir escrupulosamente “especificações/requisitos técnicos”, constantes na cláusula 15ª, entre os quais publicar um artigo pré-evento, um “artigo de antevisão (digital) + artigo de cobertura (digital + imprensa)” do webinar, e por fim um “artigo pós-Talk”. Neste último caso, estipulou-se mesmo a obrigação de o conteúdo possuir “declarações dos intervenientes” e um prazo de execução: “2 a 3 dias após”.

Pelo menos dois dos artigos terão sido publicados como menção a serem conteúdo comercial, mas ignora-se se o artigo impresso em papel teve similar tratamento.

Num dos textos de antecipação editado na secção estúdio P, no site do Público, o POCH era considerado “um dos mais dinâmicos programas operacionais que compõem o Portugal 2020.” Este texto, em estilo jornalístico, não foi assinado – como todos aqueles classificados como conteúdo comercial neste jornal –, mas o seu director não quis esclarecer se existe, para esta secção, uma equipa de redactores sem carteira profissional. Por lei, os jornalistas estão proibidos de escrever textos de conteúdo comercial.

Em todo o caso, o contrato determinou algo que se reveste de especial gravidade no contexto da independência editorial, exigida por lei, e das tarefas que são incompatíveis para os jornalistas.

Extracto do contrato que estipula os conteúdos a publicar e a obrigatoriedade de o evento ser moderado pelo Público, apesar dos convidados serem indicados pela Secretaria-Geral da Educação e Ciência.

Nas cláusulas contratuais para a execução do webinar, a moderação teria obrigatoriamente de contar com um jornalista do Público – que acabou por ser o próprio director – e os quatro participantes foram escolhidos a dedo pelo ”cliente”, a saber: Joaquim Bernardo (presidente do POCH, a entidade a ser promovida neste evento), Gustavo Cardoso (professor do ISCTE, e coordenador do MediaLab), António Figueiredo Dias (director na Quaternaire Portugal e coordenador da avaliação do POCH) e ainda Mónica Silvares (jornalista do jornal ECO). Em suma, o jornal Público – e o seu próprio director – subordinaram-se a uma entidade estatal durante este evento, a troco de 16.000 euros.

Outro aspecto polémico do contrato encontra-se na alínea g) do número 2 da cláusula 6ª, que acabava por limitar a liberdade do jornal Público em realizar uma cobertura isenta do evento. De facto, a empresa detentora do Público comprometeu-se contratualmente a “manter o sigilo e garantir a confidencialidade, não divulgando quaisquer informações que obtenha no âmbito da formação e execução do contrato, nem utilizar as mesmas para fins alheios àquela execução, abrangendo esta obrigação todos os seus agentes, funcionários, colaboradores ou terceiros que nelas se encontrem envolvidos”. Ou seja, abrange os jornalistas do Público.

Contactado pelo PÁGINA UM, o director do Público, Manuel Carvalho, garante que o evento por si moderado, “foi celebrado pelo departamento comercial (…), sem qualquer intervenção da Direcção Editorial na sua concepção ou organização”, acrescentando que apenas se disponibilizou “a utilização da plataforma ‘Ao Vivo’ para a transmissão em streaming do webinar e, em paralelo, a publicação de conteúdos sobre o evento no Estúdio P.”

O director do Público defende que a publicação de conteúdos comerciais do Estúdio P adoptam a mesma linha seguida “na imprensa internacional (ver Guardian Labs ou a TBrand do NYT)”, estando dependente “do departamento comercial do Público e não tem qualquer ligação à área editorial”, apontando mesmo o grafismo diferente. Sendo isto certo, Manuel Carvalho não esclareceu, porém, o motivos de os textos do Estúdio P, em estilo jornalístico, nunca serem assinados, e não constar na ficha técnica do seu jornal qualquer menção às pessoas ou à equipa redactorial desses conteúdos comerciais.

Manuel Carvalho, director do Público, ao lado da jornalista Mónica Silvares, diz que aceitou a moderação do evento como o fez “tantas outras vezes com eventos similares promovidos por entidades públicas ou privadas”.

Manuel Carvalho salienta ainda que “na qualidade de director do jornal, [foi] convidado para moderar o debate” – que, repita-se, se enquadrava num contrato comercial entre uma entidade governamental e a empresa detentora do Público –, e que aceitou o convite como fez “tantas outras vezes com eventos similares promovidos por entidades públicas ou privadas”. Acrescentou ainda ao PÁGINA UM não ter obtido qualquer remuneração por essa participação.

Recorde-se, entre os deveres dos jornalistas, previstos no seu Estatuto (Lei nº 1/99), está a recusa em exercer “funções ou tarefas susceptíveis de comprometer a sua independência e integridade profissional”.

Além disto, os jornalistas estão ainda impedidos de participar em acções de marketing ou de relações públicas. A moderação num evento de divulgação (marketing) de uma entidade governamental no contexto de um contrato de prestação de serviços pode ser classificada como actividade incompatível. Até porque, no caso em apreço, o jornalista (e director) está, com a sua participação, a cumprir uma exigência contratual que beneficia financeiramente o periódico onde trabalha.

As eventuais incompatibilidades cometidas por Manuel Carvalho neste contrato – que, aliás, não é único, tanto no Público como em outros periódicos de âmbito nacional – apenas poderão ser alvo de procedimento disciplinar por iniciativa da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista. Recorde-se que esta entidade é presidida por Leonete Botelho, que acumula funções de grande repórter na secção de política do próprio jornal Público.

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