Não foi apenas ao Público que o Governo comprou a divulgação dos resultados de um programa estatal. A Impresa também lucrou pela promoção do Programa Operacional Capital Humano. A moderação de um debate por uma pivot da SIC Notícias e dois artigos no semanário Expresso, usando jornalistas, deram um encaixe de quase 20 mil euros.
A Impresa – detentora da SIC e do semanário Expresso – também assinou, tal como o Público, um contrato com a Secretaria-Geral da Educação e Ciência (SGEC) para a promoção do Programa Operacional Capital Humano (POCH), recebendo 19.500 euros pela produção de um debate e de duas notícias. Para a execução do contrato – assinado no próprio dia do evento, em 30 de Junho passado – foram usadas duas jornalistas com carteira profissional.
De acordo com dados recolhidos pelo PÁGINA UM no Portal BASE, a Impresa comprometeu-se, entre outras iniciativas de divulgação, a realizar um debate online, obrigatoriamente com “moderação por director do Expresso/SIC ou jornalista/pivot da SIC Notícias”, a emitir em Zoom e na plataforma do Expresso no Facebook. Ficou ainda acordado a “cobertura da conferência no Caderno de Economia do Expresso”. O contrato definia mesmo a dimensão dessa notícia: “1 página”.
O contrato não estipulava, como sucedeu com o do Público, que seria a SGEC a escolher os participantes no debate, mas obviamente esteve presente em estúdio o presidente da Comissão Directiva do POCH, Joaquim Bernardo. O tema do debate – que contou, entre outros, em painel virtual, com a deputada bloquista Joana Mortágua – versou a avaliação do contributo do programa Portugal 2020 para a qualificação e empregabilidade dos jovens.
Deu a cara e voz pela moderação do evento, e execução de um contrato comercial da Impresa, a pivot da SIC Notícias Ana Patrícia Carvalho (CP 7225), que aliás teve dificuldade em soletrar o Programa Operacional Capital Humano no início do debate.
Com a duração de quase duas horas e meia, o evento comercial seria abordado em duas notícias do Expresso, dirigido pelo jornalista João Vieira Pereira (CP 2725). Ambas assinadas pela jornalista Fátima Ferrão (CP 6197), nunca se refere que são conteúdos comerciais, ou seja, sem independência editorial e pagos por uma entidade externa. Pelo contrário, ilude-se a sua origem.
Embora encaixados, tanto na edição digital como em papel, numa secção denominados Projectos Expresso – que incluem textos de dúbia classificação, entre o comercial e o editorial, uns assinados e outros não –, pela leitura dos artigos noticiosos ninguém desconfiaria que o Governo, através da SGEC, os tinha afinal pagado para os fazer sair.
Com efeito, na notícia online, a jornalista Fátima Ferrão escreveu que o evento (uma prestação de serviços contratualizada) se tratou afinal de uma “conferência promovida pelo Programa Operacional de Capital Humano (POCH), à qual o Expresso se associou.”
Já a notícia desta colaboradora do Expresso, na edição impressa do caderno de Economia, possui um claro estilo noticioso, elogiando os efeitos do POCH, ao destacar que 54% dos alunos de cursos profissionais arranjam emprego em seis meses. E apresenta, além disso, um enganador destaque: “O Expresso junta-se ao Programa Operacional Capital Humano (POCH) para medir, através de um estudo, o que está a ser feito para o aumento da qualificação da população, para a redução do abandono escolar precoce e para a melhoria do desempenho escolar.” Ou seja, nem implicitamente se descortina tratar-se de um conteúdo comercial.
O POCH, no seu site, também não revela que o evento foi pago, referindo que o debate foi realizado “em parceria com o Jornal Expresso”. E acrescenta, mais adiante que “o Jornal Expresso, que se juntou ao POCH nesta iniciativa, disponibilizou já um artigo na sua versão online e outro na edição semanal, que sintetizam as principais conclusões do estudo e das intervenções dos palestrantes.” Faltou referir que “se juntou” a troco de 19.500 euros.
Recorde-se que o Estatuto dos Jornalistas (Lei nº 1/99) estipula que estes profissionais, para garantir a sua independência, estão impedidos de participar em acções de marketing ou de relações públicas.
A moderação num evento de divulgação (marketing) de uma entidade governamental no contexto de um contrato de prestação de serviços, bem como a escrita de conteúdos comerciais “travestidos” de notícias, pode ser considerada incompatível com a actividade jornalística. Ademais sabendo que, tal como sucedeu com o Público, a participação dos jornalistas constituiu uma exigência contratual de uma entidade externa, e que beneficia financeiramente os órgãos de comunicação para onde trabalham.
As eventuais incompatibilidades cometidas por estas jornalistas apenas poderão ser alvo de procedimento disciplinar por iniciativa da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista. Porém, também a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) tem competências para intervir junto dos órgãos de comunicação social, disciplinando esta agora prática corrente de oferta de “prestação de serviços” a empresas privadas, e mesmo ao Governo, em que se utilizam jornalistas.
Em 2013, a ERC considerou que contratos similares celebrados entre a empresa detentora do Porto Canal – detida maioritariamente pelo Futebol Clube do Porto SAD – e as Comunidades Intermunicipais de Tâmega e Sousa e do Minho-Lima colocavam “em causa a autonomia editorial”. E obrigou “o operador do canal [Avenida dos Aliados, S.A.] a denunciar os mesmos contratos”, caso ainda não o tivesse feito.