Nascido em 2019, o SARS-CoV-2 deixou, até agora, muito mais do que as cerca de 5,45 milhões de mortes. Ao entrar pelo quarto ano da sua existência confirmada (2019, 2020, 2021 e 2022), a covid-19 transformou o Mundo em algo diferente, atulhado em pânico e medo, em medidas cada vez mais autoritárias mesmo em países democráticos, acentuando a falta de solidariedade dos países ricos com os pobres, e a Ciência – esse outrora bastião do conhecimento dinâmico e do perpétuo questionamento – por bolandas anda agora, ora demonstrando ser a solução, ora rodando ao sabor dos interesses financeiros, ora rodopiando pelos circunstancialismos políticos.
No novo mundo distópico, o ano 2022 anuncia-se incerto, e despediu-se de um ano de 2021, que terminou paradoxal. O PÁGINA UM mostra como, através de uma análise detalhada à situação pandémica na Europa, incidindo sobre os países da União Europeia, onde também se incluiu, neste lote o Reino Unido.
Quase com dois anos completos de uma pandemia em pleno, que já atingiu 290 milhões de pessoas, mesmo com vacinas supostamente milagrosas a proteger 48% da população mundial, os últimos dias de 2021 mostraram novos recordes de casos positivos. A culpa – pelo que argumenta a esmagadora maioria dos políticos – justifica-se pelos não-vacinados e pela nova variante Ómicron, mas a evidência mostra outras realidades.
A vacina acabou por não apresentar o desempenho prometido – e muito menos na inicialmente prometida capacidade de criar imunidade de grupo. A duração da protecção também se mostrou demasiado curta. Por outro lado, a suposta elevada transmissibilidade da variante Ómicron trouxe o resto: o ritmo de testagem subiu para níveis quase estratosféricos na última semana. Em Portugal, por exemplo, o máximo de testes por dia em 2020 foi ligeiramente inferior a 60 mil. Ao longo dos 11 primeiros meses de 2021 nunca superou a centena de milhar. No passado dia 30 de Dezembro foram feitos 402.756 testes.
Mais testes sempre darão mais casos em termos absolutos, sabendo-se que uma parte significativa das pessoas infectadas não apresenta sequer sintomas, pelo que somente uma testagem massiva a apanharia. A nível mundial, em termos de média móvel de sete dias, o dia 31 de Dezembro passado registou 1.323.362 casos positivos– um valor jamais antes alcançado desde o início da pandemia. Fogo fátuo, mesmo tendo em conta o desfasamento entre casos e eventuais desfechos fatais. Com efeito, nesse dia, os óbitos contabilizados à escala mundial foram apenas de 5.919 – o valor mais baixo desde 24 de Outubro de 2020 –, evidenciando a consistente tendência decrescente da mortalidade por covid-19 desde finais de Agosto. Em contra-ciclo com aquilo que ocorrera no ano anterior.
De facto, em contraste com o dia homólogo de 2020 (com 11.768 óbitos), o último dia de 2021 registou metade do número de mortes. Mais relevante se mostra essa tendência decrescente por ocorrer com a chegada do Inverno no Hemisfério do Norte – onde vive 87% da população mundial.
Recorde-se que o Inverno de 2020-2021 registou um padrão muito similar ao que ocorre com as épocas gripais, independentemente de mostrar um maior impacte. As infecções e a mortalidade por covid-19 começaram a subir, de forma consistente, a partir de Outubro, e agravou-se em Janeiro de 2021, com o pico de óbitos a nível mundial a ser atingido a 28 daquele mês (14.815, em média móvel de sete dias).
Analisando a situação dos países da União Europeia – incluindo, neste lote, ainda o Reino Unido –, e tendo como referência a média móvel de sete dias em 28 de Dezembro, confirma-se, de uma forma ainda mais marcante, a falta de “sintonia” entre casos de infecção e mortes, o que pode, afinal, evidenciar a transição da pandemia para a endemia. Ou seja, mais infecções por um vírus menos letal.
Com efeito, para o período de referência, observa-se que apenas a Espanha, Suécia, Roménia, Letónia, Hungria e Eslovénia apresentavam uma menor incidência (percentagem de casos positivos na sua população) em 2021 do que em 2020. Em alguns casos, a subida foi enorme. Por exemplo, a Grécia tinha uma incidência de 0,07% em 2020 e era de 1,0% em 2021, enquanto na Irlanda aumentou mais de 10 vezes: passou de 0,34%, em 2020, para 3,74%, em 2021. No entanto, a Finlândia – que é, de entre os países da União Europeia, aquele com menor impacte da pandemia em termos de mortalidade – registou nas últimas semanas um aumento muito significativo dos casos positivos. Se em 2020 este país escandinavo tinha, no período em análise, apenas 0,16% da sua população infectada, agora está com 3,48%, sendo apenas ultrapassada pela Irlanda.
Em termos gerais, quase todos os países em análise registavam, no final de 2021, mais de 1% da respectiva população infectada. As únicas excepções eram a Suécia (0,98%), a Eslováquia e a Lituânia (0,91%, ambas), a Alemanha (0,86%), Eslovénia (0,80%), a Espanha (0,58%), a Letónia (0,57%), a Croácia (0,55%) e a Áustria (0,32%). No outro extremo, cinco países contabilizavam 3% ou mais da população infectada: Chipre (3,79%), Finlândia (3,48%), Irlanda (3,74%), Reino Unido (3,21%) e Bélgica (3,00%). Ao invés, em período homólogo de 2020, apenas a Espanha (2,11%) tinha mais de 2% da população infectada, registando-se mesmo 21 países com menos de 1%, dos quais nove abaixo dos 0,5% (Finlândia, Grécia, Malta, Roménia, Áustria, Croácia, França, Alemanha e Irlanda).
Embora haja um desfasamento temporal entre um pico de casos e a ocorrência de um pico de óbitos – geralmente, duas semanas –, a “agressividade” do SARS-CoV-2 aparenta agora ser francamente menor.
Note-se, porém, que se deve ter em consideração que a política de testagem de assintomáticos tende, em princípio, a diminuir a taxa de letalidade, sobretudo se se concentra em população jovem, onde a gravidade da doença foi sempre estatisticamente irrelevante.
Com efeito, padronizando os óbitos de todos os países da União Europeia (mais Reino Unido) à população portuguesa – de modo a se ter uma melhor percepção comparativa da actual situação pandémica na Europa –, constata-se uma redução quase generalizada, e muito significativa, das mortes no final de 2021 em relação ao final de 2020. De facto, apenas a Grécia, a Polónia e a Hungria apresentavam nos últimos dias de 2021 uma situação pior do que em período homólogo de 2020.
A norma foi uma descida muito significativa. A maior redução relativa registou-se no Luxemburgo, um pequeno país de 630 mil habitantes. No final de 2020, os óbitos diários (padronizados à população portuguesa) foram 84; no final de 2021 nenhum. Outras reduções muito relevantes (superiores a 60%) observam-se em Portugal (71 óbitos em 2020 vs. 14 em 2021), no Reino Unido (70 vs. 11), na Suécia (95 vs. 2), Bélgica (81 vs. 23), Áustria (86 vs. 20), Itália (78 vs. 24), Malta (66 vs. 21), Eslovénia (148 vs. 40).
Note-se, porém, que em alguns destes países, sobretudo no Leste europeu, verificou-se um pico muito relevante de mortalidade em Novembro, seguido de uma descida abrupta.
Em todo o caso, aparentando ser um padrão sobretudo regional, a mortalidade atribuída à covid-19 ainda atingia valores elevados no final de 2021 na parte oriental da Europa.
Numa altura em que os óbitos por esta doença em Portugal se situavam nos 14 por dia (média móvel de sete dias), três países superavam os 100 óbitos diários (padronizados à população portuguesa): Croácia (129), Hungria (126) e Polónia (111). Mais cinco registavam mais de 50 óbitos: Bulgária (97), Eslováquia (96), Lituânia (77), Grécia (70) e Letónia (59).
A influência directa da vacinação na letalidade da covid-19 nos diversos países europeus tem sido uma discussão recorrente nos últimos meses. Ou seja, será que os países com maior taxa de vacinação automaticamente registarão uma menor mortalidade?
Essa suposta evidência colocou-se sobretudo durante o mês de Novembro do ano passado, quando o Leste europeu foi “varrido” por um número inusitado de casos, enquanto os países ocidentais continuavam num Outono bastante ameno em termos de infecções e mortes.
Porém, nessa “evidência” havia sempre um aspecto esquecido: a partir de níveis razoavelmente elevados de taxa de vacinação – dir-se-ia acima dos 60% da população do país –, mostra-se admissível supor que a quase totalidade das pessoas idosas e vulneráveis estarão já vacinadas. Recorde-se que, por norma, entre 25% e 30% da população de um país europeu tem mais de 65 anos, e é esta a faixa etária mais vulnerável à covid-19 e com prioridade na vacinação.
Se se considerar os últimos dias de 2021, a relação directa entre a taxa de vacinação (com duas doses) e os óbitos por covid-19 (padronizados à população portuguesa) já não parece muito evidente. Na aparência os países com menor taxa de vacinação têm mais óbitos, mas existe também, de uma forma bastante clara, um padrão regional: Leste europeu tem mais mortes do que o Oeste europeu. Qual o factor que conta mais?
Além disso, existem muitas excepções. Por exemplo, a Roménia, o Chipre e mesmo a Eslovénia estavam, no final de 2021, com níveis de mortalidade relativamente baixos, mas ainda com taxas de vacinação da população abaixo dos 65%. A Roménia, apesar de ter apenas 40,1% da sua população vacinada, apresentava mortalidade abaixo de seis países com taxas de vacinação superiores a 70%.
Um outro aspecto interessante de observar é a evolução da pandemia na Europa desde 2020, e de como a maior ou menor incidência cumulativa nos diversos países se repercutiu em termos de mortalidade acumulada e actual por esta doença.
Convém notar que estas comparações devem ser observadas com algumas reticências, por três razões. Primeiro, a incidência da covid-19 dependeu das distintas medidas não-farmacológicas adoptadas pelos diversos países, e da sua verdadeira eficácia, e também das respectivas estratégias de detecção das infecções (maior ou menor testagem de assintomáticos). Segundo, a introdução da vacinação, e a sua eficácia, pode ter alterado, de uma forma mais ou menos significativa, a taxa de letalidade ao longo do período pandémico. Terceiro, ignora-se ainda, em grande medida, a relevância de factores ambientais ou mesmo populacionais (ou sociais) que possam determinar uma menor ou maior mortalidade.
Ponderado tudo isto, uma coisa parece certa: uma menor incidência cumulativa não constituiu, até agora, uma garantia de baixa mortalidade na população, nem ao longo da pandemia nem em relação à situação mais recente.
Mas antes de dissecar esta questão, talvez seja mais importante relevar primeiro que o SARS-CoV-2 atingiu de forma muito distinta o continente europeu. Considerando a população respectiva dos 28 países em análise, a incidência vai desde os 4,3% na Finlândia até aos 23,1% da República Checa (ou seja, quase um em cada quatro checos tiveram covid-19 em menos de dois anos). Portugal regista 12,9% – isto é, quase 1 em cada 8 pessoas teve um teste positivo. Em todo o caso, a maioria dos países apresenta incidências relativamente próximas: 18 países estão com este rácio entre os 12,5% e os 18,5%.
O senso comum diria que uma menor incidência resultaria, de imediato, numa menor mortalidade. O caso da Finlândia aparenta indiciar isso. Com apenas 4,3% da sua população com teste positivo desde o início da pandemia, a taxa de mortalidade por covid-19 é, até agora, a mais baixa da União Europeia: 2,8 por 10.000 habitantes. Porém, este país escandinavo é uma excepção.
De facto, alguns países com incidência cumulativa relativamente baixa (em comparação aos outros países) apresentam taxas de mortalidade muito mais elevada. São os casos, sobretudo, da Roménia (terceiro país com menor incidência, mas quarto com maior taxa de mortalidade), da Bulgária (sexto país com menor incidência, mas com a pior taxa de mortalidade) e da Hungria (décimo com menor incidência, mas a segunda pior taxa de mortalidade).
Portugal – com uma incidência de 12,9% (12º maior no grupo de 28 países em análise) e uma taxa de mortalidade de 12,9 óbitos por 10.000 habitantes (17ª posição) – encontra-se numa situação intermédia.
Existem muitos factores que podem explicar a ausência de relação directa entre incidência e mortalidade causada pelo SARS-CoV-2. Por um lado, a incidência pode ser muito distinta entre grupos etários, o que produz efeitos muito distintos. Ou seja, enquanto 1.000 casos positivos no grupo dos mais idosos pode resultar em muito mais de 100 óbitos, o mesmo número em jovens terá consequências irrelevantes, ou mesmo nulas.
Nesse aspecto, a maior ou menor incidência da doença nos idosos, e particularmente nos lares, é um aspecto determinante para o impacte da doença em cada país. Além disso, cada país – e mesmo nas distintas regiões de um mesmo país – registaram-se níveis distintos de resposta à pandemia, incluindo ao nível do tratamento hospitalar, com efeitos directos muito relevantes na mortalidade.
Por fim, a incidência cumulativa desde o início da pandemia não aparenta ser relevante nos níveis de mortalidade por covid-19 no período mais recente. Com referência aos óbitos de 28 de Dezembro de 2021 (média móvel de sete dias), e padronizados à população portuguesa, não se observa de forma directa um padrão de menor mortalidade nos países com maior incidência cumulativa desde o início da pandemia.
A Croácia é o país que apresenta maior mortalidade na União Europeia (129 óbitos padronizados no dia 28 de Dezembro), mas contava já com 17,3% da sua população com teste positivo à covi-19. A República Checa, o país com maior incidência cumulativa na União Europeia (23,1%), apresentava mesmo assim o 9º valor mais elevado de mortalidade (58 óbitos).