DOSSIER P1 - IMPRENSA & ISENÇÃO

Contrato entre revista Visão e Grupo Águas de Portugal com água no bico

pouring water on person's hands

por Pedro Almeida Vieira // Janeiro 5, 2022


Categoria: Imprensa

minuto/s restantes

A troco de 60.000 euros, a Visão apresentou um menu de notícias, entrevistas e espaço para artigos de opinião aos responsáveis do Grupo Águas de Portugal. Cerca de três semanas após a decisão deste ajuste directo com esta empresa pública, a directora da Visão já estava a fazer uma entrevista à presidente da Águas do Tejo Atlântico. Mafalda Anjos diz, porém, que essa entrevista nada tem a ver com o contrato, mas não explica quem vai escrever os artigos e fazer as entrevistas previstas nos contratos. Por lei, os jornalistas não podem.


A directora da Visão, Mafalda Anjos, fez recentemente uma entrevista a uma administradora de uma subsidiária do Grupo Águas de Portugal (AdP) para cumprir um dos compromissos previstos num contrato comercial, no valor de 60.000 euros, entre aquela empresa pública e uma empresa de publicidade do antigo jornalista Luís Delgado, dono da Trust in News e detentor desta revista semanal.

O contrato ficou decidido em 30 de Setembro pela Águas de Portugal, através de ajuste directo, mas acabou assinado apenas em 23 do mês seguinte. Quatro dias antes, já Mafalda Anjos entrevistava Alexandra Serra, presidente da Águas do Tejo Atlântico – uma subsidiária da Águas de Portugal, que trata os esgotos da região de Lisboa – aparentemente para cumprir, desde logo, uma parte da execução do contrato.

Este caso da Visão é mais um dos detectados pela investigação do PÁGINA UM aos novos modelos de financiamento da imprensa portuguesa, que envolvem agora, em muitos casos, contratos comerciais com a participação activa de jornalistas e que subvertem a independência editorial exigida por lei.

Mafalda Anjos entrevistou para o podcast uma administradora de uma subsidiária do Grupo Águas de Portugal, mas garante que esta conversa não integrava um contrato já decidido com esta empresa pública.

Neste episódio que, aparentemente, terá levado Mafalda Anjos a realizar uma entrevista que nem sequer livremente decidiu, está em causa um contrato para “concepção, produção e divulgação de conteúdos de comunicação associados aos Prémios Verdes Visão”, assinado entre a TIN Publicidade e Eventos – que tem um capital social de 100 euros – e a AdP – que possui um capital social de 434,5 milhões. Além de pacíficos compromissos publicitários e de naming, no contrato ficou estabelecido que a revista Visão se obrigaria a produzir diversos conteúdos e artigos noticiosos combinados ou em parceria com aquela empresa pública.

Em concreto, de acordo com o contrato, a TIN – em nome da Visão – prometia à empresa pública um menu de conteúdos editoriais, que são, na verdade, puramente comerciais.

Na cláusula 4 do contrato, a empresa de Luís Delgado concordou em “redigir em parceria com a AdP SGPS um artigo sobre os compromissos do Grupo Águas de Portugal em matérias de sustentabilidade”, a ser publicado “na versão impressa da revista (…) em data a acordar entre as partes”; a realizar entrevistas a dois representantes designados por aquela empresa pública, publicando-as na versão impressa e na rubrica “Conversa Verde ”; e ainda a publicar, no seu site, “dez artigos de opinião redigidos pela AdP SGPS”, dos quais quatro a serem também republicados na revista com uma periodicidade trimestral.

brown duck on water during daytime

A participação de Mafalda Anjos nesta entrevista não deixa, porém, de ser inusitada – por não ser habitual observar a responsável editorial máxima a fazer este tipo de entrevistas – , mas também ser reveladora de um novo estilo de jornalismo.

Por um lado, a entrevista foi integrada num podcast habitual da Visão Verde – um site específico de ambiente desta revista –, já com 36 episódios, onde nunca antes a directora da Visão aparecera como entrevistadora.

Por outro lado, a entrevista, sobretudo versando o tratamento de esgotos na zona de Lisboa, pautou-se por um estilo demasiado informal, com diversas interrupções de Mafalda Anjos para dar opiniões pessoais. Por exemplo, quando quis explicar como aprendeu algo sobre o destino das águas residuais urbanas. A partir do minuto 25, a directora desta revista explica que “um dia fui estudar essa matéria porque a minha filha (..) me perguntava: ó mãe, mas para onde é que vai esta água? (…) e eu verifiquei que não sabia dar uma resposta muito concreta sobre o tema. E então fui estudar, e até há um livro muito interessante produzido sobre isto”. E, por fim, para reparar, houve uma derradeira e sapiente pergunta da directora da Visão: “Isso é muito importante, é uma área importantíssima: o que é que não se pode meter na sanita ou pelo cano das nossas casas?”

spiral water droplets

A directora da Visão, Mafalda Anjos, garantiu ao PÁGINA UM que a sua entrevista “foi uma conversa puramente editorial, motivada pelo Dia [Mundial] do Saneamento, e pelo facto de a AdP ter uma nova CEO que acabou de entrar em funções”, acrescentando que a conversa se desenrolou de “forma didática e explicativa”. Explicando que a sua participação se deveu à impossibilidade do coordenador da Visão Verde, por estar “com Covid, facto que é público”, Mafalda Anjos salienta que o contrato entre a TIN e o Grupo AdP visa “a atribuição dos Prémios Verdes 2022”, e que estabelece “uma série de acções de divulgação dos mesmos, onde – cumprindo todas as regras deontológicas –, todos os conteúdos serão claramente identificados como uma parceria.”

Em conclusão, a directora da Visão referiu ainda ao PÁGINA UM que as “entrevistas [previstas] ainda não aconteceram, serão feitas no âmbito destes prémios e estarão identificadas com logo dos prémios e da parceria, como aliás estipula o contrato.”

Na verdade, como pode ser verificável pela leitura da cláusula 4ª do contrato, entre as alíneas h) e p), nada ali está explícito nem implícito de que os conteúdos venham a ser “identificados como uma parceria” nem com outra qualquer menção que mostrem ser comerciais. Por outro lado, Mafalda Anjos parece ignorar até as funções da sua entrevistada: Alexandra Serra não é “uma nova CEO que acabou de entrar em funções” na AdP. O presidente da AdP é, na verdade, José Carlos Remédios Furtado, que ocupa este cargo desde Maio de 2020. A sua entrevistada é sim a presidente do conselho de administração da Águas do Tejo Atlântico, uma das 23 subsidiárias da ADP, estando ao nível, por exemplo, da EPAL.

Mafalda Anjos também não esclarece quem, independentemente de existir menção ou não a conteúdos pagos, fará os artigos noticiosos e mesmo as entrevistas. O Estatuto dos Jornalistas impede, nestas circunstâncias, que sejam realizadas por jornalistas.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.