DOSSIER P1 - IMPRENSA & ISENÇÃO

Revista da Galp ligada aos servidores da Impresa é feita por jornalistas

por Pedro Almeida Vieira // Janeiro 6, 2022


Categoria: Imprensa

minuto/s restantes

Dois jornalistas com carteira profissional têm estado livremente a criar conteúdos comerciais e artigos noticiosos em simultâneo para jornais e para empresas privadas. O ataque dos hackers à Impresa incomodou indirectamente a investigação do PÁGINA UM sobre a Mad Brain, a empresa contratada para produzir a Energiser, a revista corporativa da Galp, mas cujos partners colaboram assiduamente com o Expresso, Eco, Diário de Notícias, Dinheiro Vivo e Forbes. Mais um episódio sobre a promiscuidade no jornalismo.


A revista Energiser, propriedade da Galp e alojada nos servidores da Impresa, está a ser produzida por jornalistas colaboradores do Expresso e de outros órgãos de comunicação social. Uma investigação que o PÁGINA UM estava a desenvolver sobre esta publicação corporativa – antes dos hackers do denominado Lapsus$ Group terem bloqueado os servidores da empresa detentora do Expresso e da SIC –, apurou já que os textos e outros conteúdos estavam a ser escritos pelos jornalistas Francisco de Almeida Fernandes (CP 7706) e Fátima Ferrão (CP 6197), através de uma empresa de conteúdos comerciais, a Mad Brain.

A publicação online corporativa da Galp – dedicada à inovação e aos desafios do sector energético – começou a ser produzida há três anos em parceria com a Divisão de Novas Soluções de Media da Impresa Publishing. Antes de ser “desligada” pelo ciberataque no dia 2 deste mês, poder-se-iam ler ali textos sobre as novas tendências de mobilidade, cidades inteligentes, sustentabilidade e transição energética. Eram claramente conteúdos comerciais, não assinados, mas a “solução” da Galp e da Impresa terá passado por contratar os jornalistas-empresários da Mad Brain, que já colaboravam e continuam a colaborar com aquele semanário fundado por Pinto Balsemão.

Site da Energiser, da Galp, bloqueado pelos hackers do Lapsus$ Group, é produzido e divulgado pela Mad Brain, tendo como partners dois jornalistas com carteira profissional.

No entanto, na revista em papel, os autores dos textos são identificados. Por exemplo, na revista número 2, em edição bilingue, Fátima Ferrão escreveu sete artigos, ou seja, cerca de metade dos textos assinados.

A Mad Brain – criada em 2017 para a organização de eventos, animação turística e serviços de comunicação e produção de conteúdos – tem sido particularmente activa tanto na escrita de textos comerciais como jornalísticos para o Expresso, Diário de Notícias, Dinheiro Vivo, Eco e Forbes.

A empresa nem sequer esconde estas ligações incompatíveis entre jornalistas e empresas privadas fora da esfera da comunicação social, anunciando-as nas redes sociais.

Recorde-se, entre os deveres dos jornalistas, previstos no seu Estatuto (Lei nº 1/99), está a recusa em exercer “funções ou tarefas susceptíveis de comprometer a sua independência e integridade profissional”. Além disto, os jornalistas estão ainda impedidos de participar em acções de marketing ou de relações públicas.

Na página do Facebook da empresa de conteúdos de Ferrão e Almeida Fernandes, muitas vezes os textos produzidos são apresentados como tendo “cunho #MadBrain” com links que remetem para, por exemplo, as páginas do Diário de Notícias. É o caso da série de perfis do “Projecto Mulheres Promova”, onde serão destacadas 20 líderes femininas de empresas concretas, e que constitui uma “parceria que junta o DN à CIP/CGD/Fidelidade/Luz Saúde/Ranstad”, conforme é referido numa primeira notícia publicada em 27 de Outubro do ano passado. Francisco de Almeida Fernandes já assinou 11 perfis de mulheres. O primeiro foi, curiosamente, ou talvez não, dedicado a Sofia Contente, legal manager da Randstad, que elogiou o apoio que aquela empresa de recursos humanos “dá aos colaboradores, nomeadamente o programa de incentivo e apoio à natalidade”. Também já foram publicados perfis de mulheres que trabalham na Sanofi, Sonae MC, CIP e, obviamente, Galp.

Mad Brain co-produz eventos comerciais para jornais da Global Media, e os seus partners publicam também aí notícias como jornalistas.

Outro exemplo também recente com a participação da Mad Brain, e do seu partner Francisco de Almeida Fernandes, foi a cobertura do primeiro nascimento português de 2022, cuja notícia destaca a existência “de uma parceria entre o Diário de Notícias e o Continente, que premeia o primeiro bebé a nascer no distrito de Lisboa em 2022”. Os pais receberam um cheque-prenda de 250 euros. Por regra, o Diário de Notícias classifica como “parcerias” as relações com empresas e autarquias que estão consubstanciadas em contratos que envolvem muitas dezenas de milhar de euros.

A Mad Brain, através de Francisco de Almeida Fernandes, também esteve, por exemplo, particularmente activa na cobertura da iniciativa “Movimento faz pelo planeta by Electrão”, patrocionada por uma associação de gestão de resíduos eléctricos e electrónicos. Foi mais uma das habituais “parcerias” da Global Media, neste caso usando o Dinheiro Vivo.

Na sua actividade empresarial, a Mad Brain chegou mesmo a anunciar publicamente estar a “garantir cobertura mediática para vários dos seus clientes”, como foi o caso da WebSummit em 2020. Neste caso, o jornalista-empresário Francisco de Almeida Fernandes fez quatro reportagens para o Diário de Notícias, das quais três destacavam apenas responsáveis da Huawei. Aliás, a tecnológica chinesa, através da prosa da Mad Brain, é presença assídua nas páginas nas publicações da Global Media.

As relações da Mad Brain, que apresenta publicamente o Diário de Notícias como “um dos [seus] clientes”, estende-se também à co-organização de eventos de carácter comercial. A cobertura noticiosa é depois executada, geralmente, por Francisco de Almeida Fernandes, que por vezes também serve de moderador. Foi ele que, em Junho passado, moderou um webinar – e depois escreveu dois artigos no Diário de Notícias – intitulado “Covid-19: é tempo de olhar em frente”, apresentado como sendo “promovido pelo DN/TSF com apoio da AbbVie”. Ou seja, pago pela AbbVie.

No final de 2020, a Mad Brain anunciou estar a cobrir evento tecnológico para os seus clientes. O DN publicou quatro artigos, três dos quais dando destaque à Huawei.

Apesar destas actividades de grande promiscuidade, tanto Francisco de Almeida Fernandes como Fátima Ferrão publicam, assinando como jornalistas, artigos noticiosos genéricos nas publicações da Global Media, no Eco e também no Expresso.

No caso do semanário sediado em Paço de Arcos, tanto Francisco de Almeida Fernandes como Fátima Ferrão têm ali vários textos publicados, tanto sob a forma de conteúdos comerciais (sobretudo na secção “Projectos Expresso”) como sob a forma de artigos no jornal impresso ou no site, entretanto bloqueado. Fátima Ferrão foi a jornalista que fez a cobertura para o caderno de Economia do Expresso da polémica parceria entre a Impresa e a Secretaria-Geral da Educação para promover, através de um contrato comercial de 19.500 euros, o Programa Operacional Capital Humano. Antes do ataque dos hackers, o PÁGINA UM tinha registado diversos artigos que comprovam a colaboração de ambos os jornalistas com o jornal da Impresa enquanto produziam a revista corporativa da Galp.

O PÁGINA UM pediu comentários e esclarecimentos à Galp, ao director do Expresso, João Vieira Pereira, à directora do Diário de Notícias, Rosália Amorim, e aos jornalistas Francisco de Almeida Fernandes e Fátima Ferrão. Apenas os dois partners da Mad Brain reagiram, por mensagem, solicitando que fosse enviado e-mail para a empresa. Ainda não responderam.

Artigo com colaboração de Maria Afonso Peixoto

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.