IVERMECTINA

O milagre da terra que a pandemia sujou

persons eye in close up photography

por Maria Afonso Peixoto // Janeiro 10, 2022


Categoria: Exame

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Descoberta a partir de uma amostra de solo, a ivermectina já valeu um Prémio Nobel e o seu reconhecimento como “fármaco milagroso”. A pandemia, porém, manchou-lhe os créditos. Independentemente da sua eficácia no combate à covid-19 – que move paixões diametralmente opostas –, ninguém de bem poderá colocar em causa um bem da Natureza que deu (melhor) vida a milhões de pessoas.


Até ao início de 2020, era um dos fármacos mundiais mais amado pela Organização Mundial de Saúde, elogiada por médicos e endeusada por investigadores. Os louvores vinham de todos os lados, sobretudo da comunidade de farmacologia, e logo no título de artigos científicos, que a consideravam uma wonder drug, um fármaco maravilhoso, ao lado da penicilina e da aspirina. Entre 1990 e 2019, o Google Scholar contabiliza cerca de 16.400 artigos sobre a ivermectina. Nenhum a maldiz. Pudera: o seu descobridor, o japonês Satoshi Omura e o irlandês William Campbell – que a “purificou” – foram galardoados com o Prémio Nobel da Medicina em 2015, pelas maravilhas produzidas por este “milagre da terra”.

Hoje, no decurso de dois anos de pandemia, ivermectina é quase uma palavra maldita. Quem a invoca para o combate contra a covid-19, facilmente recebe epítetos como “bolsonarista”, “negacionista” ou “defensor do uso de medicamentos veterinários em humanos”.

A oncocercose, ou cegueira dos rios, é uma das mais incapacitantes doenças na África e América Letina, agora com cura graças à ivermectina.

Independentemente da sua eficácia ou não contra o SARS-CoV-2, invectivar – ou seja, injuriar – a ivermectina é uma das acções mais injustas para um medicamento que já salvou milhões e milhões de pessoas, sobretudo em países subdesenvolvidos, de doenças mortais ou incapacitantes como a oncocercose (cegueira dos rios), a estrongiloidíase, a filariose linfática (também conhecida como elefantíase) e outras doenças parasitárias.

Em 2016, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considerava a ivermectina como um fármaco com “capacidade para controlar a transmissão da malária”, uma vez que mata os mosquitos Anopheles que a ingerirem se estiver no sangue humano. E, na verdade, não houve quase nenhuma doença em que não se tenha experimentado os seus efeitos.

Além do seu uso veterinário, a ivermectina tem sido utilizada ou testada, com maior ou menor sucesso, no tratamento de uma panóplia de doenças humanas, desde miíase, esquistossomose e triquinose até leishmaniose, tripanossomíase africana (também chamada doença do sono) e americana (doença das chagas), passando ainda por certos tipos de asma, epilepsia (por exemplo, síndrome de Nodding) e afecções neurológicas. A sua acção antibacteriana também tem sido estudada – por exemplo, no controlo da tuberculose e da úlcera de Buruli –, bem como os seus efeitos antivirais.

A sua acção contra o SARS-CoV-2 foi apenas mais uma tentativa de confirmar a sua fama de “fármaco maravilhoso”. Porém, aquilo que, por agora, mais conseguiu foi ver “conspurcados” os seus créditos, sobretudo por quem, vivendo as suas vidas sossegadas na cómoda Europa, nunca conheceu os seus milagres por terras de pobreza e miséria.

A “descoberta” da ivermectina foi sobretudo um achado, fruto do acaso. Em 1973, Satoshi Omura, um bioquímico do Kitasato Institute de Tóquio, decidiu recolher um pouco de solo junto a um campo de golfe de Kawana, na região de Shizuoka, no centro da principal ilha japonesa. Foi uma única colheita, num dos sacos que Omura costumava trazer consigo, mesmo em momentos de lazer. Dali descobriu a existência de uma estranha bactéria, baptizada de Streptomyces avermitilis, cujos produtos de fermentação tinham poderes antiparasitários.

Satoshi Omura, colhendo solo do local onde colheu a primeira amostra da bactéria que daria origem à ivermectina (© Andy Crump)

Essas propriedades das então chamadas “avermectinas” seriam depois “purificadas”, já nos laboratórios da farmacêutica norte-americana Merck & Co (conhecida na Europpor Merck Sharp & Dohme, ou simplesmente MSD), por William Campbell, então já com dupla nacionalidade. E daí nasceria a ivermectina, como uma substância de largo espectro antiparasitário. Jamais, sem a recolha de Omura tal seria possível, até porque em mais lado nenhum se descobriram, até agora, aquelas bactérias.

Durante a sua primeira década de “vida”, a ivermectina foi administrada apenas em animais, tratando doenças que causavam prejuízos de muitos milhões de euros no sector pecuário. Por exemplo, o Brasil é um dos países com maior utilização como remédio veterinário.

Ainda somente em animais, a ivermectina logo revelou ser extremamente eficaz contra a maioria dos vermes intestinais comuns (excepto ténias), e a sua administração por via oral facilitava o uso. Além disso, não apresentava sinais de resistência cruzada com outros compostos antiparasitários.

Mas esse foi apenas o seu ponto de partida. Em 1981, a MSD – que registou a patente da ivermectina – conseguiu autorização para uso humano, graças ao seu poder contra algumas das denominadas Doenças Tropicais Negligenciadas (DTN). Seis anos mais tarde, a farmacêutica tomou uma decisão rara no mundo deste sector: libertou a patente e criou um programa de doação contínua, permitindo o uso da ivermectina em programas da OMS contra a oncocercose, uma doença desfigurante e incapacitante causada por um nemátodo parasita (filárias) das espécie Onchocerca volvulus.

Este parasita, transmitido pela picada de uma mosca preta do género Simulium, permanece no hóspede durante anos, maturando sexualmente e libertando depois milhões de larvas microscópicas sob a pele. Além de graves lesões cutâneas, também o sistema linfático e o nervo óptico são afectados. No limite, causam cegueira. A doença, que assombrou durante séculos os países mais pobres, desenvolve-se sobretudo em comunidades ribeirinhas – daí ser também conhecida por cegueira dos rios.

William Campbell, recebendo o Nobel da Medicina em 2015, pela descoberta da ivermectina (© Nobel Media AB 2015. Foto: Pi Frisk)

Antes da introdução da ivermectina no Programa Africano de Controle da Oncocercose, estimava-se que entre 20 milhões e 40 milhões de pessoas sofriam de oncorcecose, e cerca de 200 milhões estavam sob risco de infecção, sobretudo na África subsariana, Iémen e diversos países da América Latina.

Anos mais tarde, graças à ivermectina, o objectivo de controlo desta doença passou para um nível superior: a sua eliminação.

Desde que teve início, o programa incentivado pela OMS possibilitou a distribuição gratuita de mais de quatro mil milhões de embalagens de ivermectina em dezenas de países. Segundo a OMS, a cegueira dos rios já foi erradicada na Colômbia, Equador, México e Guatemala, enquanto Venezuela, Uganda e Sudão estão próximos de atingir esse objectivo.

Em meados da década de 1990, a ivermectina foi, igualmente, considerada um excelente tratamento para a filariose linfática. Também conhecida por elefantíase, esta doença é provocada por um parasita que se concentra nos vasos linfáticos, causando um inchaço da pele e dos tecidos, nomeadamente nos pés, pernas e genitais. A eficácia deste fármaco levou também à sua introdução no programa da OMS contra a filariose linfática, sobretudo em regiões onde coexiste com a oncocercose. Em 2015, quase 374 milhões de pessoas necessitavam de tomar regulamente ivermectina para evitar esta doença.

O Programa Africano para o Controlo da Oncocercose 1995-2019 estimou que a administração em massa de ivermectina também conferiu benefícios secundários em termos de Saúde Pública, devido ao seu impacte em infecções não-alvo. Durante o período 1995-2010, estima-se que, por via da sua administração, se tenha conseguido um acréscimo de cerca de 19,6 milhões de anos de vida à população africana, tanto no controlo da cegueira dos rios como de outras doenças parasitárias.

Considerada extremamente segura – por ter efeitos secundários mínimos e poder ser administrada por via oral sem necessidade de supervisão médica –, este antiparasitária e anti-inflamatória poderá ainda ter outras propriedades.

Fábrica da farmacêutica portuguesa Hovione, em Macau, que produz ivermectina.

Surpreendentemente, ou não, apesar de 40 anos de sucesso global incomparável, os cientistas ainda não têm certezas absolutas sobre como a ivermectina funciona para controlar todas estas doenças, embora aparente agir através de processos imunorregulatórios. Sabe-se, contudo, que possui elevada lipossolubilidade, o que a faz distribuir-se rapidamente pelo corpo, eliminando, por exemplo, as microfilárias dos vasos linfáticos periféricos com grande rapidez e efeito de longa duração.

Mas esses aspectos já pouco importaram para que, em 2015, Omura e Campbell tenham tido o reconhecimento do Comité Nobel. Mas quem talvez devesse receber essa honra fosse, afinal, a bactéria Streptomyces avermitilis. “Eu apenas dispus do poder dos micróbios”, confessaria Satoshi Omura aquando da conferência de imprensa de entrega do Nobel da Medicina.

Uma das (muitas) curiosidades da ivermectina é a sua actual “costela portuguesa”. A Hovione, uma farmacêutica nacional sediada em Loures, produz este medicamento para uso humano desde 1997 na sua fábrica em Macau, e é atualmente o maior produtor mundial. Na verdade, fabrica o princípio activo em forma de pó, que depois segue para os quatro cantos do Mundo para ser transformado em comprimidos ou em gel, e ser comercializada a preços acessíveis.

Texto editado por Pedro Almeida Vieira

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