Sustentável Peso do Ser

O medo ao serviço de um regime (muito pouco) democrático

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por Gabriela Teixeira Borges // Janeiro 14, 2022


Categoria: Opinião

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José Saramago (1922-2010) escreveu em 1997, o seguinte: “Tudo se discute neste mundo. Menos uma coisa que não se discute, a democracia. A democracia está aí, como se fosse uma espécie de santo no altar, de quem já não se espera milagres. E não se repara que a democracia que vivemos é uma democracia sequestrada, condicionada, amputada porque o poder do cidadão, de cada um de nós, limita-se na esfera política – repito, na esfera política – a tirar um governo de que não gostamos e pôr outro que, talvez, venhamos a gostar. Nada Mais!”

Volvidos 25 anos, com uma pandemia que já celebrou dois aniversários, pouco faltando para soprar as velas para seguir o terceiro, e com eleições legislativas à porta, parece-me pertinente, se alguma vez o deixou de ser, refletir sobre o regime político português, e se este continua a ser, de facto, democrático.
A democracia é o regime político em que todos os cidadãos elegíveis participam igualmente, diretamente ou através de representantes eleitos, na proposta, no desenvolvimento, e na criação de leis, exercendo o poder de governação através do sufrágio universal.

Contrariamente, o autoritarismo é uma forma de governo caracterizada pela obediência absoluta ou cega à autoridade, oposição à liberdade individual, e pela expectativa de obediência inquestionável da população. Tais definições bastariam, ou deveriam bastar, para que fosse impossível qualquer sobreposição entre estes dois regimes políticos.

O famoso psicanalista alemão Erich Seligmann Fromm (1900-1980) defendeu que, em períodos de crise, durante os quais as pessoas sentem mais medo, o conflito entre os valores de liberdade e de segurança torna-se mais agudo, e mais fértil se mostra o terreno para o avanço do autoritarismo.

Quando assisti ao nosso actual primeiro-ministro, António Costa, socialista segundo se afirma, questionar o seu oponente, num debate eleitoral em pleno canal público, sobre se já havia ou não tomado a vacina contra a covid-19, questionei-me: estava ele preocupado com a segurança do seu opositor, e de nós portugueses, ou estava mais arreliado com o exercício de liberdade de escolha, que nos é garantido a todos pela Constituição da República Portuguesa.

Após uma pequena (e penosa) incursão pelas redes sociais, percebi que, de facto, um grande número de pessoas está bastante interessado em saber quem são os vacinados (puros) ou os não vacinados (impuros) deste país.

Ao estudar as relações entre o nazismo e o autoritarismo, Fromm afirmou que a personalidade autoritária é imbuída de uma orientação ambivalente entre autoridade e poder. Disse ele que o indivíduo autoritário é, em simultâneo, submisso em relação àqueles que percebe como mais fortes – a autoridade – e dominador diante daqueles que julga mais fracos.

Seguindo esta lógica, parti do ponto de vista de um “vacinado autoritário”, para argumentar e contra-argumentar (tal como a democracia incentiva) a razão que leva a este medo (já transformado em discriminação) contra aqueles que escolheram não ser inoculados.

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1º argumento: os não-vacinados aumentam os contágios!

Contra-argumento: não existem provas científicas de que existe uma maior propensão de transmissão do vírus pelos não vacinados do que pelos vacinados.

2º argumento: a vacina reduz a possibilidade de doença grave e de morte!

Contra-argumento: independentemente de os números (sobre os quais eu tenho bastantes reservas) comprovarem essa realidade, a vacina protege apenas quem a tomou. De igual forma, quem não a tomou, e seguindo-se o raciocínio apresentado, está apenas a colocar a sua própria vida em risco.

3º argumento: os não vacinados atrofiam o serviço nacional de saúde!

Contra-argumento: os últimos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) colocavam, no top da lista das mortes normais – isto é, provocadas por doenças – as doenças do aparelho circulatório e os tumores malignos. Existindo actualmente um amplo conhecimento sobre medidas preventivas destes tipos de doenças (ter uma alimentação saudável, praticar actividades físicas, controlar o peso, evitar cigarros e consumo de bebidas alcoólicas), passaria pela cabeça de alguém, mesmo assim, acusar estas pessoas de entupirem os hospitais ou de levarem o staff médico à exaustão? Parece-me muito pouco provável.

Mas então como chegamos a este estado de preconceito e discriminação com os não-vacinados? Talvez toda a propaganda de medo feita em torno da covid-19 nos tenha tornado a todos, de forma sub-reptícia, o polícia do nosso próximo, em prol de um bem comum (ainda a identificar).

Fomos a isso incentivados desde o início: primeiro, com o elogio perante o uso da máscara (mais tarde tornada obrigatória) e a crítica perante aquele que demonstrava falta de civismo, de solidariedade, e de “noção” por se recusar a usá-la; de seguida, através de incentivos à vacinação que iria salvar o mundo e permitir-nos a todos regressar à normalidade, e a consequente caça às bruxas aos que não aderiram às filas indianas ordeiramente criadas pelo novo salvador da pátria; e por fim, com a imposição de um certificado digital para aceder a qualquer espaço público, a medalha de bom comportamento atribuída apenas àqueles que demonstraram ser cidadãos de bem e pelo bem comunitário.

Assim sendo, porque é que existe tanto medo e discriminação contra os não-vacinados? Ou a lógica me falha, ou então falha o pensamento crítico de muita gente que por aí se passeia. Alguns deles até participaram, no ano de 2020, em manifestações contra a discriminação aquando da morte de George Floyd.

Tenho para mim que ser-se ou não discriminador se transformou num buffet de comida chinesa em que cada um põe no prato aquilo que lhe apetecer comer. Neste caso, as pessoas estão a escolher que preconceitos e discriminações colocam nos seus pratos, e na impossibilidade de devoração, há que domesticá-los ou excluí-los.

Quando leio afirmações do tipo “as regras são para cumprir”, e “são iguais para todos” – e, portanto, se o Novak Djokovic não está vacinado, então tem é de voltar “para a terra dele” – pergunto-me se as pessoas já se esqueceram que a democracia no nosso país se deve ao facto de alguns terem contrariado as regras do regime autoritário vigente. Os chamados revolucionários não concordaram com as “regras” e levaram a cabo um golpe militar, a revolução do 25 de Abril de 1974.

Como julgo ter ficado demonstrado neste texto, sou uma pessoa de dúvidas, de questionamentos, de inquietações, mas vou tendo também algumas certezas. Uma delas é que, enquanto permanecer este costume, antigo e mesquinho, de apontar o dedo aos outros, de criar bodes expiatórios, e de os culpar pelos males comuns, reinará também a incitação à discriminação, ao ódio, e à violência, e assim vamo-nos tornando cada vez mais estranhos e alheios à condição dos “outros”, que são os nossos semelhantes.

Outra é a de que, se aceitarmos sem questionamento, as regras e restrições normalmente contraditórias, cientificamente infundamentadas, e muitas vezes insultuosas – que nos são impostas pelos mesmos políticos que propagam a cultura do medo –, estamos a compactuar com uma aproximação perigosa a um sistema autoritário, e isso sim devia ser motivo para medo.

Termino esta crónica da mesma forma que a comecei citando José Saramago, não em jeito de derrotismo, mas sim de esperança, porque essa persiste, e continua a persistir, em ser a última a morrer: “Eu acredito no respeito pelas crenças de todas as pessoas, mas gostaria que as crenças de todas as pessoas fossem capazes de respeitar as crenças de todas as pessoas.”

Professora universitária


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