Consta por aí, pelos mentideros – palavra castelhana que significa lugar onde se agrupam pessoas para conversar, mas que aportuguesando passa a ser sítio onde se propagam boatos e mentiras –, que sou negacionista da covid-19. Basicamente – e, nessa querela, jamais interessa dirimir argumentos, porque os epítetos servem para rechaçar o debate –, porque sempre contestei a estratégia de gestão da pandemia; sempre defendi que a gravidade da doença dependia de diversas variáveis – sendo a idade, o sexo (mulheres mais fortes) e certas morbilidades as principais – e que, nessa linha, face às características, “juventude” e limitações das vacinas, os programas de inoculação deveriam depender da necessária ponderação entre precaução, risco, benefício e incerteza.
Em seriedade – que hoje, num mundo maniqueísta, já é palavra vã –, ninguém jamais me poderia acusar de negacionismo. Mas acusaram. E muito menos depois de Junho do ano passado. Mas acusam. E mesmo depois daquilo que estou a escrever, também me acusarão.
Pois bem, que seja.
Talvez seja o meu segredo mais mal guardado – porque nunca neguei nem nunca confirmei, embora ainda há poucos dias falei en passant –, mas é mesmo verdade: já tive covid-19. Não é algo surpreendente: se considerarmos apenas os casos positivos, já foi atingida quase 20% da população portuguesa. Presumo, pelo que foram mostrando algumas estimativas com base em estudos serológicos, que poucos serão hoje os portugueses ainda “virgens”.
Enfim, mas apanhei mesmo: foi no ano passado, em finais de Maio.
Não estava vacinado.
Nessa altura, não tinham ainda chamado as pessoas da minha idade (51 anos).
Não vou ser hipócrita: não ponderava vacinar-me.
Não por negar os benefícios das vacinas em geral, nem por não defender que podem ser uma das “ferramentas” de combate, sobretudo nas populações mais idosas, em função de uma análise risco-benefício.
Para o meu caso em concreto, baseava-me então numa livre escolha de base científica e probabilística, tendo ademais em consideração a impossibilidade de imunidade de grupo, a incerteza sobre efeitos adversos a longo prazo da vacina. Conhecia, além disso, com detalhe, o “perfil” da doença, e não me considerava com comorbilidades relevantes, excepto ser ex-fumador (com sete anos de abstinência) e estar com um pouco de colesterol em excesso (efeitos da sedentarização pandémica).
Como sempre tive acesso a informação relevante, sabia que das cerca de 5.100 pessoas da minha idade que tinham apanhado covid-19, desde o início da pandemia até Maio de 2021, 10% tinham necessitado de internamento (510) – embora em muitos casos por causa de outras maleitas – e 0,6% acabaram por falecer (31).
Não se pense que é valor demasiado elevado: o quociente de mortalidade (por todas as causas) de homens da minha idade é, segundo o Instituto Nacional de Estatística, de quase 0,52%, ou seja, o risco de morte no prazo de um ano é de 1 em 200. Tem de se saber viver com esse risco – e felizes os que vivem sem o conhecer. Se se considerar a população masculina da minha idade (cerca de 70 mil homens), então a taxa de mortalidade por covid-19 afigurava-se bastante reduzida: 31 homens caídos em cerca de 70 mil dá apenas 0,044%.
Enfim, o melhor que se pode fazer, nestes casos, é tentar não estar do lado dos mais vulneráveis – cuidando da saúde o melhor possível sem demasiados pecadilhos – e ter algumas precauções para evitar os azares da vida.
Enfim, mas apanhei com o SARS-CoV-2 antes de ter de tomar a decisão, pelo que o meu desfecho seria, presumo, igual em qualquer dos casos.
Terei, pelo que desconfio, sido infectado em finais de Maio, pois comecei com sintomas em 2 de Junho. Ao dia 4 telefonei para o SNS24, desconfiando da maleita. Porém, como mantive olfacto e paladar, descartaram a possibilidade de ser covid-19. Ben-u-ron para cima. Não passou. Entretanto, era 6 de Junho e já não podia em mim – com dores, alguma tosse e um quadro de alguma confusão –, e veio por fim a confirmação de um caso positivo de amigo próximo, com quem estivera. Novo telefonema para o SNS24, marcação de testes para o dia seguinte. Da Rua de São Lázaro, no centro de testagem, já nem fui a pé para o Hospital de São José.
Só em 7 de Julho, salvo erro, regressei à vida civil, depois de estadia para o Hospital Curry Cabral – onde até escrevi posts sem me recordar como –, regresso ao Hospital de São José, para cuidados especiais, e uma última passagem, já em recuperação, no Hospital dos Capuchos. Só praticamente nesta última unidade de saúde recuperei completa consciência de mim. Dos outros dias, apenas vos posso dizer que fiquei com experiências entre o terrífico e surreal. Não guardo dores nem traumas; pelo contrário. Se tivesse partido, seguia sem dores.
Segundo consta, nos momentos de consciência, entre a lucidez e a loucura, portei-me mal e bem, agradeci e maldisse muita gente que me tratava, fiquei com a plena consciência que quem faz mexer os hospitais são os enfermeiras e enfermeiros, bem como os auxiliares. Médicos vi-os pouco, mesmo sabendo que muitos contribuíram para me salvar.
Salvaram-me todos da covid-19?
Sim, oficialmente, sim. Se tivesse morrido, seria essa a causa do meu certificado de óbito.
Porém, do hospital público teriam, porventura, esquecido de informar a minha família e amigos que, ao 11º dia de internamento (e ao 16º dia de infecção), me descobriram uma pneumonia bacteriana causada por Staphylococcus aureus. Foi infecção nosocomial, mas, não sendo incomum, ainda hoje pergunto porque demoraram tanto tempo a fazer análises a outras tantas coisas para saber a razão do agravamento do meu estado de saúde.
Do hospital público também teriam, porventura, esquecido de informar a minha família e amigos que um médico interno (estagiário), não devidamente supervisionado, se esqueceu de retirar o fio-guia do cateter quando aplicou a técnica de Seldinger, nem notou que não o tinha nos “despojos”, e assim andei – ou deitado estive – com o dito literalmente enrodilhado entre aurículo e ventrículo por meia dúzia de dias, até que um TAC ao coração o detectou, e um excelente médico de intervenção do Hospital de Santa Marta o lá foi buscar sem necessidade de me abrir. Pelo que soube muito mais tarde, fui um dos dois desafortunados em 10.000 pacientes que já ficaram com um fio-guia do cateter a passear-se pelo interior do coração.
Enfim, não estou aqui a escrever para me queixar de erros médicos – que os há, e muitos que os sofrem nem podem escrever já sobre eles –, porque estes, a terem existido no meu caso, não foram suficientes para se sobreporem aos bons procedimentos clínicos ministrados, de sorte que, aqui estou, ainda por cima sem long covid, contrariando as “estatísticas” do Doutor Filipe Froes.
Estou aqui, sim, a queixar-me porque, na verdade, o Estado – na pessoa da presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central Rosa Matos Zorrinho, que até já foi secretária de Estado da Saúde (2017-2018), e é casada com o eurodeputado socialista – acha que não tem nada que me disponibilizar os meus dados clínicos nem assumir quem e como me foram prestados cuidados médicos em unidades do Serviço Nacional de Saúde.
Faço este relato, porque considero inadmissível esta postura. Diria mesmo criminosa, de ocultação.
E faço esta denúncia porque desconfio ser esta uma prática comum de encobrimento de actos de negligência médica, que funcionam sobretudo se os visados não conhecem os mecanismos de defesa dos seus direitos.
Vamos então relatar como se tem portado o CHULC, e mais a sua principal responsável, em relação à cedência de informação que me pertence por direito.
Fiz um primeiro requerimento à CHULC em 15 de Julho de 2021, solicitando cópia de todos procedimentos médicos com “indicação precisa em termos cronológicos”.
No dia seguinte, o CHULC envia um e-mail para que preencha um formulário, onde me exigem que preencha um formulário em que indique o “destino da informação”. Uma das opções seria “Processo Judicial”. Respondo que não tenho de justificar o motivo para aceder aos meus dados clínicos, de acordo com a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos.
Enrolaram. Não me deram os dados requeridos. Apenas a nota de alta, que nada refere em concreto sobre o que se passara durante o internamento.
Apresento queixa à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos em 9 de Agosto.
Por pressão da CADA, o CHULC enviou alguns documentos, mas em linguagem quase sempre codificada, e sem referir pormenores identificativos dos intervenientes do famigerado fio-guia no coração. Mesmo sobre a infecção nosocomial, muito pouco ou quase nada.
Volto a insistir com a CADA, informando que a informação está absolutamente incompleta.
Finalmente, no dia 20 de Dezembro – quase quatro meses e meio depois da minha queixa –, a CADA concedeu o seu parecer sobre o meu caso, referindo que “deverá a entidade requerida [CHULC] facultar a informação solicitada existente que esteja por facultar”, e acrescentando que isso deveria ser comunicado “no prazo de 10 dias”.
Que fez o CHULC e a sua presidente do Conselho de Administração?
Nada! Ainda.
Um país decente, ou não, vê-se pela forma como trata estes “pormenores”.
Seguem-se, em breve, mais capítulos, mas por aqui se entende as razões para a culpa em Portugal morrer tantas vezes solteira.
P.S. Em breve saberão quais foram os motivos para nunca ter usado o certificado digital de recuperado e porque não me vacinei entretanto. Não foi por negacionismo; foi por Ciência.