Existe uma regra no jornalismo, e no próprio Código Deontológico, que prescreve que um jornalista não deve abordar assuntos sobre os quais possui um interesse directo.
Essa regra, convém dizer, é teórica, porque qualquer jornalista tem, em princípio, e se for decente, que pugnar pela promoção ou defesa dos sistemas democráticos, pela paz, pela liberdade de expressão e de auto-determinação, pela justiça, pela equidade, pelo respeito dos seus concidadãos. Logo, como tem ele, em princípio, interesse directo em viver numa sociedade democrática, então a aplicação literal dessa norma implicaria que nunca ele poderia denunciar atropelos à democracia.
Em abono da verdade, um jornalista “apenas” pode e deve defender causas comuns. Ponto. E jamais deve, por isso, de prescindir do seu poder efectivo – ele existe, de facto, e tenho essa experiência, sobretudo dos tempos em que fui jornalista do Expresso ou da Grande Reportagem –, independentemente de ser um agente envolvido ou um mero observador.
Deve, porém, esse assunto que lhe diga respeito estar integrado num interesse colectivo; não pode ser um interesse somente seu, ou do seu “clube”. Deve o jornalista, sim, usar a sua influência e as suas vivências para, relatando de forma objectiva e explicitando o seu interesse também particular, alertar ou denunciar situações que não o afectam apenas a si, mas que atinjam negativamente outros. E até mais os outros.
Assim, quando no dia 18 passado escrevi sobre a recusa do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central (CHULC) em ceder o meu processo clínico integral, eu sabia que não estava somente a representar-me, a denunciar algo sobre o qual tinha um interesse exclusivo.
Estava eu, sim, a acusar um problema frequente: o obscurantismo da Administração Pública.
O obscurantismo, ou falta de transparência do Estado, é, para mim, um dos mais graves sintomas da falta de sentido democrático de um país. E tenho a percepção – diria mesmo a certeza plena – que, se esse mal comigo sucede, sucede a milhares de pessoas. Nesse aspecto, não me considero diferente dos demais concidadãos nem alvo de particular flagelação, embora por vezes pareça.
Com efeito, por exemplo, o facto de o PÁGINA UM ter já apresentado cerca de uma dezena de queixas na Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) por recusa de informação pública, ou a ausência de respostas da Direcção-Geral da Saúde às inúmeras questões que tenho colocado, não é um problema estritamente pessoal. É sim algo intrínseco, ou até inato, que está na “massa do sangue” de políticos e, sobretudo, de funcionários públicos mais preocupados em servir um Governo, ou um partido, do que servir os seus concidadãos. Esconder, esconder, esconder: mostrar dá trabalho, e por vezes chatice. A divulgação de informação e o escrutínio sempre foram uma chatice, excepto em sistemas não-democráticos, onde essas “excentricidades” não se mostram deveres para as autoridades.
Na verdade, não é o Estado, coitado, que é obscuro, ou que fomenta e vive na penumbra, enquanto ostensivamente deixa os cidadãos na ignorância, até em relação a informação que lhe diz muito respeito, como a saúde. O Estado, ou a máquina do Estado, são pessoas. São funcionários públicos. São servidores públicos. Ou do público. De todos nós.
Devem ser nomeados sempre que recusam executar as suas funções.
Por esse motivo, o meu artigo de opinião do passado dia 18, intitulado “Eu e a covid-19: como sobrevivi e a minha aventura nos meandros burocráticos da obscura negligência”, tinha de ter nomes. Tinha eu a obrigação de dizer aquilo que eu fizera: um pedido no dia 15 de Julho do ano passado, o qual não obtivera resposta cabal do CHULC, e que cerca cinco meses depois, a CADA emitira um parecer instando ao cumprimento do meu pedido. E tinha a obrigação de escrever aquilo que o CHULC fizera: nada ainda, passadas mais de três semanas.
Mas tinha de nomear uma responsável. A Administração Pública são pessoas, que têm obrigações. Exijamos que as cumpram. Exijamos que as nomeemos se não as cumprirem. Os jornalistas têm esse direito e esse dever, o de denunciar comportamentos contrários à democracia e à gestão da res publica.
Por isso mesmo, como jornalista, eu tinha o direito e o dever de recordar publicamente quem era a responsável máximo do CHULC. Quem era a presidente do Conselho de Administração deste centro hospitalar: a senhora Rosa Matos Zorrinho, que não é uma pessoa qualquer (e mesmo que fosse), porquanto foi presidente da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (2016-2017) e do Alentejo (2005-2011), secretária de Estado da Saúde (2017-2018) e é casada com o eurodeputado e ex-dirigente socialista Carlos Zorrinho.
Se pessoas com experiência e responsabilidades políticas como ela não têm, ou não incutem nos funcionários públicos, uma cultura de transparência, o que podemos esperar da democracia no futuro, e mesmo no presente?
Daí o papel fundamental de uma imprensa independente, apenas dependente em prestar serviço público àqueles que a alimentam: os cidadãos. A denúncia é a mais nobre função do jornalismo. O questionamento do poder, também.
Até porque, cumprindo o papel de (bom) denunciante, de (bom) inquisidor, o jornalista independente consegue resultados eficazes.
Deste modo, não sei se este artigo deveria ser assinado pelo jornalista Pedro Almeida Vieira, ou antes pelo paciente e cidadão Pedro Alexandre de Almeida Vieira.
Sei sim que o paciente Pedro Alexandre de Almeida Vieira deveria mesmo agradecer, se não fosse isso um acto algo esquizofrénico, ao jornalista Pedro Almeida Vieira por aquele artigo de opinião, escrito no dia 18 de Janeiro de 2022, que teve rápidos resultados: no dia a seguir, o CHULC classificou a solicitação como URGENTE, e logo a seguir, e em carta registada, enviou os documentos pedidos pelo dito (im)paciente há mais de seis meses.
Uma coincidência, dirão muitos.
Eu direi antes ser este um sinal do nobre poder do jornalismo: fazer aumentar as coincidências.