Vértebras

Da democracia podre, ou das alergias do doutor Miguel Guimarães

Vértebras

por Pedro Almeida Vieira // Janeiro 25, 2022


Categoria: Opinião

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Comecemos com um pouco de História: a Ordem dos Médicos, criada em 1938, é uma associação pública profissional. Chama-se Ordem, mas é uma associação: aliás, herdeira da Associação de Médicos Portugueses, fundada em 1898. Uma associação defende os seus sócios, em primeiro lugar, mesmo que até seja filantrópica, ou mesmo que os seus sócios tenham feito sim o Juramento de Hipócrates, e não estejam apenas a fazer o favor de nos salvarem a vida. Há muitas profissões, aliás, que nos salvam a vida.

Por vantagens mútuas, o Estado foi concedendo a esta associação diversos direitos especiais – que passam, de forma sucinta, por regular o exercício da profissão dos médicos, quer no seu reconhecimento e formação quer na sua disciplina e deontologia. Porém, esses direitos trouxeram-lhe também deveres perante a sociedade: a Ordem dos Médicos é uma pessoa colectiva de direito público, e sendo assim, é escrutável pelos cidadãos. Pelos jornalistas. A sua acção pode e deve ser questionada, inquirida, analisada, criticada. São os “males” da democracia. E pode também, e deve, ser elogiada, quando é merecedora.

Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos.

Não está nem nunca estará em causa – e muito menos num país civilizado e com um sistema democrático – o reconhecimento do papel fundamental dos médicos – e da sua Ordem – no bem-estar da sociedade, na melhoria da qualidade de vida, no aumento da longevidade.

Podia aqui enumerar rácios e indicadores. Se quiserem, aconselho, a título de exemplo, a leitura de um artigo do PÁGINA UM sobre a evolução de indicadores de saúde de bebés, crianças e jovens ao longo das últimas décadas. Os médicos tiveram uma quota parte fundamental nestas melhorias.

Porém, não devemos confundir a Estrada da Beira com a beira da estrada.

Há médicos extraordinários, outros bons, alguns sofríveis e uns poucos maus. Todos se podem encontrar, embora em proporções bem distintas: aqueles que, miraculosamente, salvam vidas, e aqueloutros que, por vezes, de forma desastrada, acidental ou negligente (espero que nenhum por intencionalidade), deixam morrer ou causam danos desnecessários.

Estamos fartos de saber isso. Num curto espaço de tempo podemos assistir a desgraças e a milagres perpetrados por médicos. Eu que o diga. Há uns meses, um médico do Hospital de São José – que ainda, enfim, não consegui que o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central o identificasse voluntariamente (embora eu até lhe tenha feito chegar um dos meus romances, de oferta, para o animar) – cometeu uma argolada, de má sorte que estive cinco dias com um fio-guia do cateter enrodilhado no coração. A probabilidade daquilo me suceder era de 1 em 10.000. Cinco dias depois, o dito fio acabou sacado, de forma miraculosa, sem me abrirem, por um cardiologista de intervenção do Hospital de Santa Marta. Cinco dias entre um erro e um acto extraordinário.

Portanto, não estou aqui, agora, para avaliar nem médicos nem a prática de Medicina. Estou para avaliar pessoas. Comportamentos de cidadãos. Acções de concidadãos. Tenho esse direito como cidadão. Tenho o dever como jornalista.

Nessa perspectiva, posso e devo olhar para o comportamento do senhor José Miguel Ribeiro de Castro Guimarães que, circunstancialmente, é presidente de uma associação pública profissional, de uma pessoa colectiva de direito público, que dá pelo nome de Ordem dos Médicos. Chamam-no bastonário – advém de bastão, o símbolo de antanho empunhado pelo líder de uma confraria.

Página 2 do parecer da CADA destacando as afirmações da Ordem dos Médicos sobre o “comportamento” do director do PÁGINA UM

Como tal, enfim, está ele – o senhor Miguel Guimarães, mais o seu bastão de confrade-mor– e ela – Ordem dos Médicos – sob escrutínio público, e sobretudo da imprensa, em pé de igualdade com um Governo, um Ministério, uma Secretaria de Estado, uma Direcção-Geral, um Instituto Público, uma entidade ou empresa pública, ou uma autarquia.

Sendo assim, imaginemos, um autarca, um presidente de um instituto público, um director-geral, um secretário de Estado, um ministro, um primeiro-ministro escrever à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) a acusar um jornalista, que lhe solicita documentos administrativos, de estar, “desde há vários meses, (…) a adotar um comportamento suscetível de integrar a prática de crimes para com a Ordem dos Médicos, o Bastonário (…) e alguns dos médicos seus membros”.

Imaginam? O senhor Miguel Guimarães, sim. Tanto assim, que o escreveu, ou mandou que escrevessem por ele. Acusou um jornalista de ser criminoso. Um jornalismo de ser criminoso.

Ora, vejamos, quais são os crimes – nem sequer alegados – que eu tenho cometido, através do PÁGINA UM, “desde há vários meses”?

Será o crime o ter escrito o artigo “Filipe Froes tem incompatibilidades para ser consultor da Direcção-Geral da Saúde”?

Será o crime o ter escrito o artigo “Relatora da Ordem dos Médicos que quer condenar médica por ‘negacionismo’ tem ligações a farmacêuticas”?

Será o crime o ter escrito o artigo “Parecer admite desconhecimento dos efeitos da vacina em crianças e usa estudos não publicados nem revistos”?

Será o crime o ter escrito o artigo “Sociedade Portuguesa de Pneumologia teve ano de ouro em receitas de farmacêuticas com 370 mil euros da Pfizer”?

Será o crime o ter escrito vários artigos revelando dados escondidos sobre o que se passa nos hospitais portugueses e sobre o obscurantismo da directora-geral da Saúde, uma médica?

Será o crime eu ter escrito, e fundamentado, sobre a gestão da pandemia?

Ou será antes o crime eu andar a investigar as sociedades médicas e as suas relações perigosas – sobre as quais escrevi já o artigo “Sociedade Portuguesa de Pneumologia teve ano de ouro em receitas de farmacêuticas com 370 mil euros da Pfizer”?

Ou será antes o crime eu andar a investigar os donativos recebidos pela Ordem dos Médicos, entre as quais a Merck, e a aplicação de mais de 1,4 milhões em donativos numa campanha (pouco transparente) denominada Todos por Quem Cuida?

white concrete building under blue sky during daytime

Como pode um bastonário da Ordem dos Médicos, comportar-se como um rajá, e ter a ousadia de escrever à própria CADA a garantir que se reserva “o direito de continuar o acesso à documentação” que eu lhe vier a solicitar [e que, aliás, solicitei ainda ontem à noite]?

Como pode um bastonário da Ordem dos Médicos acusar um jornalista de pretender “instrumentalizar a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos para atingir os seus objectivos”? Eu? Eu, que escrevo críticas à CADA por se atrasar nos prazos de elaboração dos pareceres? Eu, que critico o carácter não vinculativo dos pareceres? Eu, que critico algum enviesamento da CADA em matérias mais sensíveis?

Qual será, enfim, o meu crime? O crime de informar? O crime de indagar? O crime de analisar? O crime de criticar? O crime de não ser um pé de microfone? O crime de não ser um jornalista-fofinho?

Eu confesso: seria um criminoso, certamente, como jornalista, se vivesse na China ou na Coreia do Norte, ou em outro qualquer país sem liberdade de imprensa, sem liberdade de investigar e questionar. Aí sim, nesses países, o senhor Miguel Guimarães até se alegraria de ser o meu carrasco.

Aliás, arrisco dizer, ser esse o sonho do senhor Miguel Guimarães: encarcerar-me, silenciar-me. E nem precisa de ser bastonário na China ou na Coreia do Norte. Basta-lhe deixar a nossa democracia apodrecer um bocadinho mais. Falta pouco, senhor doutor: o senhor tem contribuído para isso, “desde há vários meses”.

P.S. Estou em lamentável incumprimento de uma promessa, mesmo não sabendo ele que a fiz. Já passaram sete meses. Tenho mesmo de ir ao Hospital de Santa Marta deixar não um mas talvez todos os meus quatro romances ao Dr. António Fiarresga, o médico que retirou o fio-guia enrodilhado no meu coração.

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