Na véspera de Natal de 2020, um jovem de 31 anos, doente com SIDA, despediu-se da vida: tinha uma trombose da veia porta, hepatite C crónica, cancro do fígado e sarcoma de Kaposi na pele e no intestino. Um teste à covid-19 deu positivo. Até Maio de 2021, ele foi uma das 40 vítimas do VIH que a Direcção-Geral da Saúde “transformou” em vítimas do SARS-CoV-2.
Em Dezembro no ano passado, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) alegou “desvio de recursos”, por causa da pandemia, para não apresentar o relatório da evolução da infecção VIH (vírus da imunodeficiência humana) relativo ao ano de 2020, mas decidiu já “encaixar” 40 mortes de doentes com SIDA nas estatísticas da covid-19. Portugal foi o único país da União Europeia a não divulgar o relatório anual sobre aquela doença, como era habitual, no Dia Mundial de Luta contra o VIH/SIDA. Recorde-se que em 2019 foram reportados 778 novos casos e registados 197 óbitos em doentes infectados por VIH.
De acordo com a base de dados a que o PÁGINA UM teve acesso, relativo ao período entre Março de 2020 e Maio do ano passado, os infectados com o VIH foram sempre considerados como doentes-covid se tivessem um teste positivo ao SARS-CoV-2, mesmo quando a causa da hospitalização era claramente outra, sobretudo, nestes casos, relacionada com os efeitos da imunodeficiência adquirida.
Este é um dos exemplos mais flagrantes de serem falsas as garantias dadas ao jornal digital Observador pela directora-geral da Saúde, Graça Freitas, de que “não são reportados os óbitos de pessoas que, embora infetadas com covid-19, não tenha sido a infeção a causa que levou ao óbito.”
Segundo os dados consultados pelo PÁGINA UM, nos primeiros 15 meses da pandemia foram hospitalizados, como doentes-covid, um total de 171 infectados pelo VIH, dos quais 113 durante o ano de 2020.
Pela interpretação dos registos destes doentes, com quadros clínicos bastante diversificados, muitos apresentavam já diagnóstico positivo à covid-19 na admissão hospitalar. No entanto, pelo menos 67 terão sido internados por outras causas directamente relacionadas com o VIH, atendendo que a referência a esta enfermidade (código B20 na CDI – Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde) se encontra nas posições 0, 1 ou 2 da ordem de diagnóstico.
Apesar da taxa de mortalidade hospitalar dos infectados por VIH e com o SARS-CoV-2 não ter sido muito mais elevada do que a dos doentes sem VIH (em ambos os casos rondando os 23%), foram contabilizados 40 óbitos por covid-19 que, em condições normais, seriam classificados como SIDA.
Em todo o caso, em linha com o perfil de letalidade da covid-19 em condições normais, a idade foi determinante para o desfecho: a média de idade dos infectados com VIH que sobreviveram ao SARS-CoV-2 era de 52,7 anos, enquanto aqueles que acabaram por falecer tinham uma média etária de 60,7 anos.
A mais idosa vítima com VIH e SARS-CoV-2 foi uma mulher de 88 anos, que morreu em Janeiro do ano passado na região do Alto Minho. No caso do mais idoso sobrevivente com ambos os vírus, foi um homem de 83 anos, que esteve internado no Hospital Amadora-Sintra durante 10 dias entre Janeiro e Fevereiro do ano passado.
Os internamentos dos sobreviventes foram, contudo, bastante longos: média de 19 dias, o que indicia que, em grande parte dos internamentos, as causas não foram apenas a covid-19, ou não as foram de todo.
No caso das vítimas mortais, a média também foi bastante elevada (mais de 20 dias), mas sobretudo devida à complexidade das afecções associadas ao VIH.
Um dos casos evidentes foi a de um homem de 46 anos, que faleceu em Janeiro ano passado no Hospital de Setúbal como doente-covid – entrando assim nas estatísticas da pandemia feitas pela DGS –, depois de ter sido internado em Outubro de 2020 com um quadro terminal de SIDA, designadamente pneumocistose e sarcoma de Kaposi.
Contudo, em 13 casos fatais, o desfecho foi muito rápido: logo na primeira semana de internamento, o que indicia situações de grande fragilidade.
Está aqui incluída a vítima mais jovem: um homem de apenas 31 anos, internado no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central em Dezembro de 2020, numa situação já muito crítica e de grande debilidade: uma trombose da veia porta (obstrução do vaso sanguíneo que leva sangue dos intestinos ao fígado), hepatite C crónica, cancro do fígado e sarcoma de Kaposi na pele e nos intestinos.
Foi-lhe realizado um teste ao SARS-CoV-2, que deu positivo. Morreu em oito dias. Na véspera de Natal. E como doente-covid, assim classificado pela DGS.