Vértebras
O caldeirão da indigência jornalística: Spotify, Young, Rogan, Tesla, Musk e o que mais quiserem

A Tesla teve uma queda bolsista na semana passada de 10,3%. Entretanto, vamos imaginar que Elon Musk se preocupava com isto – numa empresa cotada que valorizou 20 vezes nos últimos dois anos e meio –, e aflito corria a twittar, como efectivamente fez, a dar apoio ao Freedom Convoy, o movimento de camionistas canadianos que se manifestam em Ottawa.
Como esta segunda-feira a Tesla – da qual este empresário detém cerca de 20,7% – está a subir, no momento em que escrevo, 9,57% – “comendo” praticamente as perdas da semana anterior –, se eu fosse um jornalista acéfalo, com conhecimentos de Economia ao nível da regra de três simples mal-amanhada, poderia já fazer o seguinte título bombástico: “Apoio a negacionistas canadianos faz Elon Musk enriquecer 15,2 mil milhões de euros”.
Depois, no lead, se fosse um jornalista sem escrúpulos, especularia que, por obra e graça de mais umas postas de pescada, o empresário sul-africano-canadiano poderia agora aproveitar a onda para reforçar ainda mais o apoio ao tal Freedom Convoy, porque dois tweets lhe tinham rendido numa só sessão bolsista do Nasdaq o equivalente a 7,3% do produto interno bruto (PIB) português.

Se eu quisesse ser ainda mais populista – e para me aproveitar da desoladora iliteracia económica cá do burgo –, ainda fazia os crédulos comer como verdade que o suporte de Musk aos tais “negacionistas” das vacinas, afinal tinha feito todos os accionistas da Tesla empochar tanto guito como aquele que Portugal acumular este ano até finais de Abril. ↓
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Enfim, se assim agisse, esquecia tudo o resto, esquecia o essencial, esquecia como funcionavam os mercados, esquecia que era jornalista que não embarca no primeiro navio nem surfa a primeira onda que lhe surge, nem veste a primeira camisola que lhe estendem.
Vamos ser claros: o absurdo do meu imaginário título, e da minha esdrúxula história de Elon Musk, da Tesla e do Freedom Convoy, não difere em nada dos bizarros e verdadeiros títulos de recentes notícias do Expresso – copiando a Variety – e do Público sobre o alegado impacte do ultimato e posterior boicote ao Spotify do músico Neil Young por causa dos podcasts do comediante Joe Rogan.
Vejam. O Expresso titula “Spotify vê o seu valor de mercado cair 1,8 mil milhões de euros devido ao boicote de Neil Young e ao movimento #CancelSpotify”, enquanto o Público adianta: “Spotify em queda acentuada no mercado após diferendo com Neil Young”, acrescentando logo no lead que “as acções da empresa caíram 6% entre a quarta-feira e a sexta-feira da semana passada”. E diz ainda mais a jornalista Inês Nadais, a autora desta rica peça: o “impacto da saída de Joni Mitchell e de uma possível vaga de cancelamentos de assinaturas pode agravar as perdas do serviço de streaming dominante no segmento áudio”.

Eis um caso clássico do jornalista que olha a asa sem ver a mosca, e só sabe fazer contas de merceeiro: pega numa semana, observa um evento e extrapola logo que um efeito é só e apenas do evento que observou.
É aquele jornalista que, se lhe metessem um Excel com o número absoluto de padres e ladrões num vasto conjunto de cidades, concluiria logo serem os padres atreitos a quadrilhas, porquanto nas cidades de maiores dimensões havia, em número, mais padres e também mais ladrões do que em cidades pequenas.
O absurdo deste tipo de notícias manipuladoras – perfeitas, vergonhosas e intencionalmente manipuladoras – deveriam ser o opróbrio para qualquer jornalista decente. Ou, pelo menos, à decisão voluntária ou obrigatória de não voltar a escrever sobre aquilo de que pouco ou nada sabe, de sorte a evitar usar uma nobre profissão para desinformar.
Não sei qual seria a cara da jornalista Inês Nadais – não sei mesmo, porque nem a conheço, e surge aqui porque assina a peça do Público, mas não está sozinha – se tivesse de justificar o que estará por detrás da cotação de hoje do Spotify no NYSE, que, à hora que escrevo, apresenta uma valorização de 12,03% em relação ao fecho de sexta-feira passada. Comeu a perda de toda a semana da polémica de Neil Young. Qual a explicação, Inês? Há-de haver uma, que envolva obrigatoriamente o Neil Young e Joe Rogan, mesmo se inventada, não é?
E então, Ineses desta vida, quais foram os Neils Youngs ou Joe Rogans que estiveram por detrás da queda de 47% na cotação do Spotify desde 19 de Fevereiro do ano passado? E o que sucedeu para antes disso se ter registado uma subida de 200% a partir do início da pandemia? Foram também os Neils Youngs ou Joe Rogans desta vida? Ou há mais palpites por aí?
Foi mercado, minhas senhoras e meus senhores. Foi apenas mercado.
Tal como foi o mercado que causou as quedas na semana passada da Tesla (-10,3%), do Airbnb (-8,9%), da Intel (-8,3%) ou da Electronic Arts (-5,1%). Nada disto teve a ver com o Neil Young ou com o Joe Rogan, ou com o Elon Musk ou com outra qualquer causa explicada por “cartomantes da pena”.
Na verdade, se os jornalistas, antes de escreverem parvoíces do género da polémica com o Spotify, olhassem fora dos “óculos de uma narrativa”, veriam que a empresa sueca de streaming fez o que andava a fazer desde Outubro do ano passado: cair de forma consistente, ou seja, na sexta-feira registava, nesta período, uma queda acumulada de 40%.
E hoje, como poderia ser amanhã, ou nunca, recuperou. Que teve isto a ver com o Neil Young ou o Joe Rogan? Pode ter sido tudo. Pode ter sido nada. E o jornalismo tem de acabar com essa bengala irresponsável do “pode isto”, ou do “pode aquilo”. Basta!