Visto de fora

A coerência do comboio canadiano

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por Tiago Franco // Fevereiro 12, 2022


Categoria: Opinião

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O Comboio da Liberdade, ou Freedom Convoy – um protesto iniciado em Ottawa, no Canadá, contra o certificado digital covid –, trouxe um certo embaraço a quem tenta diminuir qualquer manifestação com a narrativa do negacionismo. E isso leva-me para um assunto que, há meses, me é caro.

Desde que apareceu o passaporte digital que me manifestei contra por considerar que se tratava de uma medida de segregação.

A lógica é relativamente simples para mim. Se um Estado aconselha uma vacina, está a dizer aos seus constituintes que decidam, sozinhos, se a devem tomar ou não. Não pode, pois, esse mesmo Estado, em seguida criar dois tipos de cidadãos, com direitos diferentes no que à sua mobilidade diz respeito.

Apesar de ser vacinado, respeito quem não o queira ser, e defendo esse seu direito. O mesmo é dizer que não entendo a utilidade do certificado digital, especialmente quando até há pouco, este era pedido em simultâneo com um teste PCR (por exemplo para entrar em Portugal). Mas mesmo que o certificado tivesse alguma utilidade, a minha posição seria a mesma. Em momento algum posso aceitar um regime que cria cidadãos de primeira e outros, de segunda.

Faz-me lembrar outros tempos, que felizmente não vivi, e que só conheci pelos livros de História.

Há uma certa atração por associar estas manifestações a “negacionistas”, “anti-vacinas”, e por aí fora. Desde logo, qualquer pessoa que se questione o porquê da enxurrada de testes, lucros dos laboratórios e a não abertura da patente das vacinas, é logo negacionista. Pensar deixou de ser permitido a partir de 2020.

A comunicação social parece pouco interessada em tentar perceber porque é que um país com 80% da população vacinada (Canadá) se insurge contra a exigência de um passaporte que só afecta uma minoria. A solidariedade dos trabalhadores e das pessoas em geral não fazem boas cachas, não ajudam nas audiências e não servem para “alertas CM/CNN”.

Ao fim de dois anos na rua, camionistas, e outros que nunca estiveram em teletrabalho, acharam que não fazia sentido que lhes pedissem um certificado para a sua movimentação nas horas de lazer. E estão, obviamente, cobertos de razão. É mais ou menos o mesmo ridículo que cada um de nós passa à porta de um cinema em Lisboa, ao sábado, depois de uma semana no comboio da linha de Sintra com distanciamento de 10 centímetros.

Liberta-se a produção e a geração de capital, restringe-se o lazer e o tempo em família. É a transformação lenta de cada um de nós num objecto produtivo, sem qualquer respeito por aquilo que deve ser o equilíbrio, os afectos e as relações humanas.

O comboio de Ottawa inspirou mais protestos em Paris e, segundo notícias de hoje, dia em que escrevo, também na Holanda se ouvem vozes. Em direto da capital francesa, um repórter da CNN explicava-nos o teor das manifestações enquanto procurava uma etiqueta política. “Vejo ali grupos de extrema-esquerda e também de extrema-direita”. Bem visto, assim agrada à audiência toda. A CNN Portugal está a tornar-se dona de um estilo de jornalismo que faz o Correio da Manhã parecer o New York Times.

Como é que se explica que, também em Franca, uma população com cerca de 77% de vacinados, se parta para as ruas contra uma medida de segregação? Nas redações pergunta-se quantos negacionistas e amigos da Le Pen caminham por Paris, eu limito-me a pensar que, em princípio, a maioria de vacinados percebe que nada de interessante aguarda uma sociedade que valida a segregação. Vem nos livros.

Em Portugal não vemos manifestacões, segundo a narrativa corrente, porque “há poucos negacionistas”. Mas não, não é por isso. Em Portugal a maioria vacinada não se manifesta contra uma medida que cria cidadãos de segunda, pela mesma razão que não se queixa da falta de memória do Salgado, da fuga do Rendeiro ou dos desvios do Sócrates. Temos opinião para tudo mas pouquíssimo sentido cívico na luta pelos direitos e liberdades.

Os canadianos fizeram um favor ao Mundo e foram os primeiros a bater o pé a uma imposição governamental sem sentido que, sob a capa da defesa da saúde pública, não faz outra coisa que não seja acirrar ódios e dividir a população. Os franceses seguiram as suas pisadas e, imagino, outras carruagens estarão a caminho.

A História julgará. Bem, julgo eu.

Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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